Comunhão e beleza. Artigo de Enzo Bianchi

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19 Novembro 2022

"Se a liturgia não é bela mesmo na simplicidade, se não é celebração do Evangelho, não pode atrair ninguém. A unidade católica, além disso, não pode e não deve ser uniformidade, mas harmonia multiforme, comunhão plural, na qual todos e cada um encontram a possibilidade de uma participação viva. A Eucaristia deve ser vivida como comunhão e não como ocasião de divisão eclesial", escreve Enzo Bianchi, monge italiano e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por Vita Pastorale, novembro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

O Papa Francisco escreve em Desiderio desideravi que as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, não podem ser julgadas como uma simples divergência de sensibilidade em relação a uma forma ritual, mas devem ser entendidas como divergências eclesiológicas. Por isso sentiu o dever de afirmar que "os livros litúrgicos promulgados pelos Santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II são a única expressão da lex orandi do Rito Romano" (TC art. 1).

A expressão é forte e peremptória, mas não nega que o Vetus Ordo em vigor até a Reforma litúrgica tenha sido naqueles séculos uma expressão da lex orandi do Rito Romano.

A atual liturgia católica, que necessita de reforma, exprime a oração do Rito Romano, mas sobretudo exprime a fé da Igreja hoje, uma fé na tradição, mas aprofundada, enriquecida, porque a liturgia cresce com a sua celebração sempre renovada. Por outro lado, a tradição é o que transmite o fundamento da fé. O perigo é se ater às tradições e não ao que elas transmitem. Uma tradição não vive se não for renovada.

Por isso, o Papa Francisco, em Desiderio desideravi, reitera que o mandato recebido como sucessor de Pedro o obriga a salvaguardar e confirmar a comunhão eclesial católica numa busca inesgotável de unidade. Mas a ninguém escapa que essa unidade é contrariada por parcelas de fiéis que querem ser e se dizem fiéis à tradição e, no final, quebrada pela realidade nascida do cisma de Monsenhor Marcel Lefebvre. É verdade que na Itália essa presença de tradicionalistas é muito limitada e circunscrita, mas sabemos bem que em outros países europeus e nos Estados Unidos, os tradicionalistas são uma minoria bem estabelecida, muito eficaz em termos de comunicação e visibilidade. Sua presença é significativa e se expressa com uma militância perseverante.

No entanto, é preciso ressaltar que se trata de uma presença variegada, que mostra diferentes faces, estilos e modos de estar na comunhão eclesial: de uma crítica ponderada e branda, a uma contestação quase contínua, até chegar a uma deslegitimação da Igreja Católica, do Papa Francisco e dos bispos. Às vezes assistimos à mudança de uma crítica necessária e filial em uma acusação dura e convicta de traição à fé e, portanto, uma acusação de heresia.

A situação é grave. E é hora de parar de sorrir desta porção da Igreja, ou até mesmo de zombar e desprezar. Praticar o ecumenismo com tantas comunidades cristãs e não saber dialogar e caminhar com os tradicionalistas certamente não é sinal de autêntica caridade fraterna, nem de consciência de estar unidos pelo único batismo. Podemos chegar a um discernimento pacífico dessa realidade?

Na minha existência como monge e como cristão católico, como sempre frequentei igrejas e mosteiros de comunidades cristãs ortodoxas ou reformadas, da mesma forma sempre frequentei comunidades ou mosteiros que, querendo ser fiéis à tradição anterior à reforma litúrgica, obtiveram a possibilidade de continuar a viver a liturgia celebrando-a com o Vetus Ordo. Certamente não me bastava contemplar e desfrutar a beleza dos ritos, mas observava atentamente a vida humana e espiritual daquelas comunidades, e sempre constatei um amor sincero pela liturgia, uma fidelidade séria e profunda à tradição monástica, vivida com intenção evangélica, rica de iniciativas e trabalho, uma vida comum capaz de grande caridade. Nas minhas estadias na abadia francesa de Le Barroux, uma comunidade próspera, e em outros mosteiros tradicionalistas, pude verificar que também com eles “é bom e doce conviver”. Senti que eram irmãos, e confesso que me senti melhor entre eles do que em alguns mosteiros que se dizem fiéis ao Vaticano II, mas que vivem uma vida de residência religiosa não monástica.

A entrevista que o novo abade de Solesmes concedeu depois da audiência com Francisco no dia 5 de setembro passado é significativa. Dom Geoffroy Kemlin dirige uma congregação de mosteiros em que alguns celebram com o Vetus Ordo pré-conciliar, enquanto outros seguem a reforma de Paulo VI. Era seu dever informar o Papa sobre as reações a Traditionis custodes registradas na França e perguntar-lhe como deveria se comportar em seus mosteiros.

Francisco lhe teria dito que cabe a ele, abade de Solesmes, fazer o discernimento, e não ao Papa, porque mora a dois mil quilômetros de distância. Literalmente: “Você é um monge, e o discernimento é próprio dos monges. Não te digo sim ou não, mas deixo-te discernir e tomar uma decisão”. Conselhos que o Papa deu a alguns bispos franceses. Francisco quer a unidade, mas não impede uma diversidade de rito, desde que seja honrada a fé católica do mistério eucarístico.

Em uma audiência em 2014 o Papa me perguntou o que eu pensava dos tradicionalistas, e eu disse a ele: "Sua Santidade, se aceitam o Vaticano II e realmente o seu ministério como sucessor de Pedro, se declaram válida a reforma litúrgica e a Eucaristia normatizada por Paulo VI, os deixe viver... A Igreja deve aceitar uma comunhão plural, não pode mais ser monolítica nas formas”. Continuo com a mesma opinião depois de todos estes anos em que a Eucaristia de vínculo de unidade se tornou causa de divisão. E sobre isso é preciso que se assumam as responsabilidades não só aqueles que recaem no saudosismo do passado, mas também aqueles que nunca foram claros com os tradicionalistas, foram duplamente ambíguos, empurrando-os sem aparecer para posições de contestação e de ruptura com a Igreja.

A Ecclesia Dei sempre agiu com lealdade e transparência ao estabelecer um diálogo com essas porções da Igreja? E alguns cardeais e bispos de que lado ficaram depois do Concílio: aderindo ao Vaticano II e a consequente reforma ou criticando-o até diminuir sua autoridade? Hoje vivemos muitas tensões e oposições na Igreja que não podemos permitir-nos falhar numa paz eucarística. A missa não pode ser lugar de contestação e de divisão fraterna. E para que se abra um caminho de verdadeira comunhão, é mais do que nunca necessário que a celebração do Novus Ordo seja praticada evitando desleixo, banalidade, feiura. Há demasiado protagonismo do presbítero, muita verbosidade, cantos pouco cuidados e pouco dignos, homilias que agora se alimentam quase exclusivamente das ciências humanas: encantam a todos, mas não convertem ninguém.

Se a liturgia não é bela mesmo na simplicidade, se não é celebração do Evangelho, não pode atrair ninguém. A unidade católica, além disso, não pode e não deve ser uniformidade, mas harmonia multiforme, comunhão plural, na qual todos e cada um encontram a possibilidade de uma participação viva. A Eucaristia deve ser vivida como comunhão e não como ocasião de divisão eclesial.

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