Quando a liturgia não fala mais. Um colóquio entre teólogos e teólogas

22 Março 2021

A linguagem verbal e simbólica das celebrações é cada vez menos compreensível para as mulheres e os homens de hoje, que custam a captar a sua “dimensão outra”. Além disso, o distanciamento físico imposto pela pandemia acentuou a falta de envolvimento dos fiéis e tornou ainda mais evidente o fenômeno das “igrejas vazias”. A nova tradução [italiana] do Missal Romano e o sinal verde desejado pelo papa para as mulheres leitoras e acólitas não parecem suficientes para inverter a tendência. Discutimos isso com cinco especialistas.

A reportagem é de Paolo Rappellino, publicada na revista Jesus, de março de 2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Muitos cabelos brancos. E agora cada vez menos deles também. A participação na celebração da missa dominical está em crise há muitos tempos: “Não se entende nada”, “é chato”, “é repetitivo”, “não sinto nenhuma emoção”, “só se ouvem frases óbvias e preceitos morais”, dizem os jovens. E o mesmo pensam muitas pessoas de 40 e 50 anos.

Quanto às crianças da catequese, em tempos de Covid-19, elas também desapareceram. Quase apenas os idosos “aguentam firme”: com a eclosão da pandemia, eles aceitaram relutantemente acompanhar as celebrações na TV e fizeram malabarismos com as novas tecnologias, mas, assim que foi possível, foram os primeiros a reaparecer às portas das igrejas. Para eles, ainda vale a ideia de “preceito”, o senso da tradição, um vínculo mais enraizado com a paróquia, provavelmente também uma fé mais sólida. Há exceções, mas esse é o quadro geral.

Além disso, nunca nos últimos tempos o rito da missa esteve no centro do debate público como após a suspensão das celebrações por causa da Covid-19, mas também por causa da nova tradução [italiana] do Missal Romano e a possibilidade, introduzida pelo Papa Francisco, de ter mulheres leitoras e acólitas.

Para continuar e aprofundar o debate destes meses, discutimos essas temáticas com alguns especialistas e vozes autorizadas:

Andrea Grillo, professor de Teologia dos Sacramentos e Filosofia da Religião no Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, e de Liturgia na Abadia de Santa Justina, em Pádua;

Assunta Steccanella, teóloga pastoralista, recentemente nomeada – primeira mulher neste cargo – pró-diretora do ciclo de especialização da Faculdade de Tecnologia do Trivêneto;

Dom Derio Olivero, bispo de Pinerolo, convicto defensor da linha prudencial na suspensão das missas em tempos de Covid-19;

Pe. Luigi Berzano, pároco do distrito de Valleandona, em Asti, e um dos maiores especialistas na Itália em Sociologia das Religiões;

Fulvio Ferrario, pastor valdense e professor de Teologia Sistemática na Faculdade Valdense de Roma.

 

Eis a entrevista.

 

As opiniões sobre a nova tradução do Missal são discordantes. Segundo alguns, é um bom resultado, considerando o ponto de partida e o percurso acidentado. De fato, é preciso lembrar que a nova editio typica do Missal é de 2002, e o trabalho de tradução teve que levar em conta a instrução vaticana Liturgiam authenticam, publicada em 2001, que impunha a fidelidade à letra do texto latino. Depois, a rota mudou em 2017, com o motu proprio do Papa Francisco Magnum principium, que deu mais liberdade às Conferências Episcopais nacionais.

Os defensores destacam a positividade da linguagem inclusiva (“irmãos e irmãs”), as traduções mais fiéis ao sentido para o Glória e o Pai-Nosso, e as outras novidades sobre as quais se falou amplamente.

Outros aspectos mais “teológicos” também são positivos (por exemplo, o fato de ter evitado na consagração a tradução literal do “pro multis”).

Outros, em vez disso, veem aí uma oportunidade perdida: demasiados compromissos, a influência de uma eclesiologia velha, algumas soluções arcaicas e estetizantes (o Kyrie, o “orvalho do Espírito”...), retrocessos na participação dos fiéis com o livro das “Orações dos fiéis”, a fórmula inalterada “Vós que tirais os pecados do mundo” em vez de “Vós que carregais os pecados do mundo”... Qual é a opinião de vocês?

 

Andrea Grillo – As expectativas em torno dessa tradução foram inevitavelmente frustradas. Estou ciente da gravidade do que digo: as premissas até 2017 – as imposições da Liturgiam authenticam – impossibilitavam uma tradução eficaz. Depois do Magnum principium do Papa Francisco, cometeu-se o erro de não tomar mais tempo para deixar sedimentar uma tradução verdadeira. Assim, o resultado é um híbrido, que contém soluções impostas por um critério rígido de suposto primado da tradução literal do latim. Parece mais um Missal em uma liturgia latina, disponibilizado também a quem fala italiano, do que uma liturgia em italiano. Mas, por trás disso, existe um modo de pensar a liturgia que considera que pode abrir mão de falar a língua de uso comum. Porque o italiano já havia adquirido, em 50 anos, uma tradição própria. Em vez disso, pretendeu-se zera-la, para recomeçar do latim. No fundo, isso incidiu de modo marginal sobre o efeito geral, mas apenas porque houve uma intervenção externa. Um claro exemplo disso é a fórmula do Pai-Nosso, que mudou por vontade do Papa Francisco. Esse é o problema.

 

Derio Olivero – Efetivamente, esse é o processo que conhecemos. Eu me tornei bispo quando o Missal já estava praticamente aprovado e só vivi na CEI [Conferência Episcopal Italiana] a discussão sobre a tradução do Pai-Nosso. Foi uma longa discussão, nascida precisamente da tomada de posição do Papa Francisco. Deveríamos ter nos dado mais tempo, mas acho que essa tradução pode ser uma oportunidade não para debater se “orvalho” fazia sentido, mas para refletir efetivamente sobre a celebração e sobre as tantas coisas que não funcionam. A questão mais abrangente é a linguagem da celebração, a linguagem simbólica, a modalidade celebrativa, a compreensão de um rito no mundo moderno que transforma a verdade em certeza e tudo ao útil. É claro que uma pessoa que entra em uma missa entra em um rito onde não se há a certeza e onde não se produz nada. Portanto, para além das palavras, não se entende a dinâmica geral: esse é o grande problema.

 

Assunta Steccanella – Teria sido necessária uma séria ação de apropriação do Missal por parte das comunidades, uma apropriação consciente, que não aconteceu. Em vez disso, foi uma adoção “automática”, exceto por algumas admoestações do padre, das quais particularmente não sentíamos necessidade durante a celebração eucarística: “Eu peço que fiquem atentos, porque temos o Pai-Nosso novo”; “segurem o folheto em mãos”; “lembrem-se de que agora dizemos ‘os homens amados pelo Senhor’ e não ‘os homens de boa vontade’”. Tudo isso é sinal de um problema eclesiológico grave, sintoma de um profundíssimo clericalismo, para o qual a celebração eucarística é coisa do ministro ordenado, e o resto do povo deve simplesmente responder em uníssono, segundo as indicações que foram dadas. Há louváveis exceções, mas a deriva automática não permite formar no povo de Deus a consciência de que são atores e protagonistas como assembleia celebrante, nem de que devem assumir a sua voz.

 

Fulvio Ferrario – Um pastor protestante, ao frequentar as liturgias católicas – e eu faço isso com bastante frequência – fica impressionado com a distância, na liturgia propriamente eucarística, entre a formulação da teologia eucarística católica no seu desenvolvimento atual, do modo como ela me foi apresentada no diálogo ecumênico – em particular sobre a missa como sacrifício –, e a linguagem da celebração, que ainda é muito “sacrificial” e não recebe a discussão ecumênica. A nova tradução, nesse sentido, não traz novidades.

 

Luigi Berzano – O novo Missal foi introduzido de forma significativa na pequena comunidade paroquial na qual eu vivo: foram os jovens que o levaram ao altar. Antes, eles fizeram uma pesquisa sobre o monge Próspero de Aquitânia, a quem se devem os dois princípios da lex orandi, lex credendi. Hoje, a relação entre esses dois princípios não é mais consequente como no passado. O Missal está apenas na perspectiva da lex orandi. É cada vez mais fraca a relação entre aquilo que se diz na oração litúrgica e aquilo que se acredita individualmente. É o problema que, no passado, era definido como “cisma submerso” ou secularização radical. É preciso voltar a pensar sobre dois conceitos fundamentais da antropologia: mito e rito. Quantos são os rituais que são órfãos de um mito? Portanto, o problema é o de tornar mais fascinante o mito, o midrash do qual tudo nasce, isto é, tornar mais fascinante a mensagem do Evangelho e o jovem rabino que a anunciava (o Pe. Berzano fala disso no livro que publicou recentemente: “Un altro Gesù. Il tempo e le parole di un uomo” [Um outro Jesus. O tempo e as palavras de um homem], Ed Elledici). E esse é um problema que vai muito além da mera revisitação do Missal.

 

Mas então o que deveria ser a celebração festiva na vida das Igrejas cristãs? Um instrumento de anúncio? Poderia haver propostas graduais e diferenciadas para quem está na porta das igrejas? Para as crianças? E há um problema de linguagem? De compreensibilidade das palavras e também dos gestos (entrar, caminhar, ficar de pé, ficar sentado, comer pão e vinho juntos)? Há um problema de tempo (ritos muito longos para os ritmos de hoje)?

 

Assunta Steccanella – O problema da compreensão e da imersão na celebração eucarística é real e complexo. A primeira questão é que a festa é quase considerada algo evidente e, portanto, se torna um automatismo. Assim, o cuidado pela sua beleza e pela sua encarnação na história por parte de todo o povo cristão se enfraqueceu. Um exemplo típico disso é o fato de que as orações dos fiéis, 90 em cada 100 vezes, são lidas no folheto, sem espelhar, de modo algum, a vida da comunidade que as está rezando. Portanto, é preciso uma revisão da participação na Eucaristia, que, porém, deve ser acompanhada e deve ser gradual.

Na Igreja antiga, os catecúmenos da iniciação cristã participavam da celebração gradativamente, primeiro apenas na liturgia da Palavra e só depois participavam de toda a celebração eucarística. Essa participação por etapas faz parte da nossa tradição mais profunda. É um grande problema ter reduzido a Eucaristia à sua dimensão celebrativa no sentido estrito da palavra, perdendo o seu papel de “culmen et fons”, como diz a Sacrosanctum Concilium.

Isso não significa que a liturgia é o único ápice da vida do fiel, nem que a liturgia é a única fonte da vida do fiel, mas que as vidas eucarísticas se conformam e se formam em um caminho alimentado pela Eucaristia e que alimenta a participação na Eucaristia. São todas dimensões que precisamos redescobrir e fazer redescobrir, desvinculando-nos do medo de cometer um sacrilégio se mudarmos uma palavrinha. Trata-se de acompanhar as pessoas a captarem como esse é um momento culminante e fontal para a sua vida, em que a sua vida está toda ali.

 

Fulvio Ferrario – No fundo, o catolicismo está fazendo um longuíssimo caminho – que talvez começou com o Concílio, mas talvez sempre existiu – do preceito, da repetição, para uma maior participação e consciência. O protestantismo, em particular o reformado e ainda mais particularmente o protestantismo italiano, deveria fazer um caminho oposto: recuperar a função do culto como interrupção da cotidianidade secular. Portanto, o escândalo que vem do fato de que se fala outra linguagem na celebração, a meu ver, tem uma dimensão saudável: não estamos no nível de um “encontrar-se” normal: no culto, há uma alteridade. E essa alteridade tem um aspecto saudavelmente traumático. Eu acho que, desse ponto de vista, a sabedoria litúrgica católica tem algo a ensinar.

 

Luigi Berzano – No passado, as paróquias eram comunidades de pertencimento. Agora temos predominantemente paróquias de referência, que são escolhidas porque a proposta agrada, mesmo que não se viva ou se trabalhe ali. Mas, precisamente porque são cada vez mais referências e menos “obrigatórias”, “de preceito”, importa muito o fato de que a missa deve ser uma experiência, uma “bela experiência”, em que se sentem emoções. É quase uma dimensão estética, não compatível com a celebração apressada dos párocos, que devem rezar três missas em uma manhã e só podem chegar e ir embora correndo.

É claro, além disso, também na linguagem, devemos dizer que esse é um dia de festa, um dia especial, diferente. A celebração como experiência envolvente é o único modo de tornar o domingo “o dia de festa”, além dos dias úteis e dos dias de folga. O dies Domini como um terceiro tipo de tempo.

 

Andrea Grillo – Como assinalava Steccanella, parece-me que há uma questão de fundo que diz respeito ao papel da iniciação na vida cristã: a Eucaristia é fonte e ápice porque pressupõe, antes de si e depois de si, não simplesmente a vida cristã, mas também outras experiências de culto. Isso me coloca em sintonia com Ferrario, que, falando do ponto de vista de quem tem mais culto do que Eucaristia, mostra bem como nós temos Eucaristia demais e muito pouco culto.

Explico-me melhor: fizemos da Eucaristia uma espécie de tapa-buracos que inclui tudo, de modo que tudo o que é liturgia tende a se identificar com a Eucaristia. Assim, você não pode deixar de ter subsídios pré-impressos com as orações dos fiéis. Em vez disso, você deveria chegar à Eucaristia com a oração dos fiéis amadurecida em outros momentos de mediação: oração, penitência, escuta da Palavra... Mas isso não existe.

Eis o ponto: o sistema não prevê mediação e pretende que a Eucaristia, sic et simpliciter, faça tudo. Outra questão: sobre o conceito referido por Ferrario, que citava o teólogo reformado Jüngel e definia o culto como “interrupção”, podemos ser ainda mais corajosos: a Eucaristia é experiência de transgressão. E às vezes é preciso procurar isso com a lanterna, porque as estruturas sociológicas da prática parecem garantir que a Eucaristia seja o ponto em que você se reconhece simplesmente por aquilo que é. Em vez disso, na Eucaristia, você deveria se reconhecer dentro de uma dilaceração, e as estruturas rituais (as verbais, de um modo, as não verbais de um modo muito mais potente) estão aí precisamente por esse motivo.

Portanto, não me admira que o regime verbal da missa pós-conciliar não esteja à altura das ações que são feitas, porque usa uma linguagem de 500 anos antes, pensa o ato com as categorias de cinco séculos atrás, e isso, obviamente, torna muito evidente tanto a falta de gradualidade – locais de culto para se exercitar naquilo que a Eucaristia pede no domingo – quanto a diferença entre regime verbal e regime não verbal.

Terceiro ponto: é consolador que, na terceira edição do Missal, tenha se trabalhado mais sobre o não verbal: há um cuidado do canto muito mais forte, há algumas provocações saudáveis, desde que esclarecidas: “Kyrie eleison” está bem, contanto que seja cantado, porque, caso contrário, se for para falar grego murmurando, é melhor o italiano. Mas, para suscitar o canto, o grego, o latim e o hebraico são mais eficazes como sons do que como significados.

 

Derio Olivero – Ecoou uma constelação de termos: preparação, despreparo, e depois interrupção, transgressão, trauma... Efetivamente, a mulher e o homem modernos, quando entram em um culto, chocam-se contra um muro, porque é preciso tempo para se aclimatar a uma ação ritual que remete à ação cotidiana, mas é tão diferente dela. Grillo já disse: em sentido remoto, haveria muitas coisas para se levar à missa; é preciso educação ao silêncio, para invocar, para a oração de bênção, de ação de graças, de louvor. De fato, os jovens não entram mais [nas igrejas], porque dizem: “Lá não se entende nada, é inútil, é demorado, é chato”... É verdade, eles não entendem nem o sentido das palavras individuais, mas o problema é mais abrangente. É a educação à linguagem da celebração. Portanto, digo-o de forma crua, se há um aspecto da missa que não funciona são os ritos de iniciação: deveríamos inventar algo para fazer com que os fiéis entrem não como espectadores. A participação ativa não significa apenas que todos devem fazer alguma coisa: um lê, o outro toca, o outro leva as flores. A participação ativa é entrar no rito, mas entrar nele é uma coisa não imediata, não simples, não se improvisa.

Durante 24 anos, até ser enviado a Pinerolo, celebrei missas mensais para os jovens. A assembleia chegava a contar com 500 pessoas: para “entrar dentro”, eu dedicava 15 minutos antes do sinal da cruz para apresentar e depois ouvir uma canção recente (de Vasco, Jovanotti, Elisa, U2...). Depois disso, apagavam-se as luzes e se ouvia uma música de piano ou de violão, pedindo para ficar de olhos fechados por três minutos. Depois, começava a missa muito normal. Parece banal, mas mudava totalmente o ambiente, a atmosfera, o “estar dentro”.

Obviamente, é uma forma discutível, mas me serve para dizer que é preciso trabalhar os ritos de entrada. Porque, muitas vezes, muitos estão na missa, mas estão “fora”. A participação ativa é precisamente que todos entrem. O outro aspecto diz respeito ao significado dos ritos cotidianos: comer juntos, cumprimentarmo-nos, encontrarmo-nos... Não é tão evidente que captemos o seu alcance; nós os fazemos, mas não é evidente que eles falem. Por exemplo, come-se cada vez menos juntos como família, alimentamo-nos com comidas prontas.

No período da “zona vermelha”, na hora do jantar, eu me conectava em streaming, sentado à mesa também, na minha cozinha, e começava a comer falando uma vez sobre as maçãs, outra vez sobre a mesa, outra vez sobre os garfos.. Quarenta noites. Era para tentar novamente dar uma palavra ao valor do comer juntos. Caso contrário, ir juntos à mesa eucarística é duplamente complicado. Na minha opinião, essas são duas questões importantes para evitar se chocar contra o muro, para evitar uma transgressão-interrupção que se transforme em trauma.

 

Andrea Grillo – O rito, até o Concílio, tinha um ingresso apenas do padre, que demorava oito minutos fazendo as suas coisas. Só naquele ponto ele se voltava para a assembleia e dizia: “O Senhor esteja convosco”. É um modelo paradoxal – muito clerical –, mas distingue os níveis. Hoje é inaceitável voltar a esse rito, mas se deve levantar a questão de que realmente todos devem entrar na celebração.

 

Assunta Steccanella – Outro grande problema é em nível cultural: perdeu-se o significado de muitas das palavras que nós enchemos de sentido e consideramos “clássicas”. Por exemplo, se eu pergunto o que significa “salvação”, todos me dizem: “Ir para o paraíso”, que certamente é uma dimensão da salvação, mas eu não posso reduzir a salvação a isso. Se eu ousasse perguntar o que significa “ressurreição”, muitos me diriam que é a reanimação de um cadáver (e acham que a ressurreição de Lázaro e de Jesus são idênticas), ou se refeririam a algo semelhante à reencarnação. Assim, a “paz” é interpretada como uma simples ausência de guerra, e não como uma dimensão que abrange toda a vida da pessoa e as suas relações com os familiares, com Deus, com a Criação.

Nem falemos de “Evangelho”. Na leitura dominical, ouvimos: “O tempo se cumpriu, e o reino de Deus está próximo, convertei-vos e crede no Evangelho”. E, uma vez, uma pessoa, saindo da igreja, me disse: “Desculpe-me, você nos explicou que os Evangelhos foram escritos depois que Jesus já estava morto e ressuscitado. Como essas pessoas aqui faziam para acreditar no Evangelho, se foram escritos depois?”.

Uma pergunta que tem uma lógica impecável. Sem se dar conta, fazemos uma bela homilia sobre o Evangelho, belíssima, maravilhosa, e as pessoas pensam no livrinho. Era assim também no passado: para as minhas avós, mulheres camponesas muito simples, a fé era profunda, enraizada, instintiva, belíssima, mas pouco capaz de “dar razão”, muito baseada no princípio da autoridade.

Hoje, não pode mais ser assim. Devemos mudar a linguagem: utilizar mais o não verbal, mas cuidar também da linguagem verbal. Desse ponto de vista, o Papa Francisco é um exemplo, porque utiliza palavras que chegam [às pessoas]. As idosas da minha localidade dizem: “Este papa eu entendo”. Portanto, não deve ser tirado da Eucaristia o “elemento de interrupção”, o espaço sagrado que dá sentido a todo o tempo, no qual todo o tempo se alimenta, mas, em todo o caso, devemos torná-lo um espaço habitável. É uma operação inevitável.

 

Luigi Berzano – Há também um desafio tipicamente teológico: devemos entender como reavivar o midrash inicial, como reavivar o fascínio da mensagem do Evangelho. Os jovens que passam pelos nossos ritos de iniciação devem experimentar uma forma de “enamoramento” pela mensagem e pelo jovem rabi da Galileia, Jesus, que a anunciava. Mas também é difícil a duração da experiência cristã, se esta não nascer de narrações e experiências emotivas, envolventes, totais, sobre a origem e o fim, sobre os bons e os maus modos de vida, sobre a serenidade da vida. A psicologia chama essas experiências da infância de “mapas emocionais”, sem as quais também no campo religioso crescem sujeitos analfabetos emocionais.

 

A missa também se tornou um momento identitário: na sociedade secularizada, é uma oportunidade de reconhecimento para os católicos. Mas, se o momento é apenas identitário, é óbvio que ele deve ser igual em todos os lugares, e, portanto, a liturgia se enrijece. Vocês não acham que esse é um dos problemas?

 

Assunta Steccanella – Sobre isso, eu ouvi de um teólogo que há muita religiosidade do exoesqueleto, aquela estrutura que os moluscos têm e que os mantém de pé por fora, porque dentro não há uma espinha dorsal. Assim, a religiosidade se torna uma casca protetora e uma garantia de identidade. Por uma série de motivos sociológicos, econômicos, neste tempo também sanitários, a religiosidade é vivida como proteção e como escudo. Uma questão que deve ser resolvida em níveis muito profundos, inclusive o teológico de que falava o Pe. Berzano, ou seja, a reconciliação com o rosto de Deus, do Deus de Jesus Cristo.

 

Fulvio Ferrario – Quero contar um pequeno episódio. Eu estava conduzindo um seminário com Hans-Martin Barth, que defende que devemos usar uma linguagem não religiosa, chegando até a se perguntar se devemos usar a palavra “Deus”. Uma estudante alemã, não crente, disse: “Eu acho que entendo o que ‘Deus’ significa, parcialmente”. Eu pensava: “É claro, nós, crentes, também entendemos parcialmente”. Depois de 2.000 anos de teologia negativa, ninguém dirá: “Entendi tudo sobre Deus ou sobre a Trindade”. Mas ela especificou: “Eu acho que entendo com esses limites, só que não acredito nisso”.

Em suma, uma parte do ateísmo contemporâneo, da rejeição dentro e fora dos muros, é uma “rejeição justa”, no sentido de que não é porque eles não entenderam. Eles entenderam aquele pouco que nós entendemos, só que dizem: “Não, obrigado”. É um problema, acima de tudo, do protestantismo, que deu uma importância particular ao nível cognitivo. Ele é imprescindível (“Eu sei em quem acreditei”, 2Timóteo 1,12), mas não pode ser absolutizado. A fé passa por muitas outras dimensões. Em todo o caso, não se trata apenas de “traduzir a linguagem”.

 

Das intervenções que ouvimos, surge um problema de catequese, de formação, de anúncio. Mas mais de um de vocês vai além do problema da nova tradução do Missal e se abre para uma revisão geral do rito da missa. É possível e oportuno? No fundo, não precisamos ainda metabolizar e compreender a renovação litúrgica do pós-Concílio (que alguns ainda chamam de Missa Protestante de Paulo VI)?

 

Andrea Grillo – As opções não podem ser drasticamente em oposição. Por um lado, há um problema teológico, um problema de proclamação, um problema de linguagem; por outro, há também uma forma de entender o ato do culto e da celebração dentro da economia da vida cristã. Sobre isso, o Concílio já abriu um processo, do qual demos apenas os primeiros passos. Tentemos olhá-lo a partir do ponto de vista daquilo que está mudando em termos de ministério: em 50 anos, entendemos que aquilo que Paulo VI dizia para os homens também vale para as mulheres.

Na liturgia, tendemos a pensar sempre de forma tridentina, ou seja, pensamos que existe uma autoridade central que nos faz um livro, e esse livro vale para todos. Isso é injusto com os 1.500 anos antes de Trento, quando as coisas não funcionavam assim. Toda reforma central, quanto mais determina em detalhes aquilo que deve ser feito em Milão como em Palermo, mais está fora da lógica de uma comunhão crescente na diferença. Eu acho que esse é o caminho, razão pela qual os ritos de entrada, a liturgia da Palavra, a liturgia eucarística, os ritos de comunhão, os ritos de despedida são todos sequências que devem ser assumidas pelas Igrejas locais.

 

Derio Olivero – Eu me inspiraria no livro de Dominique Collin, “Il cristianesimo non esiste ancora” [O cristianismo não existe ainda], no qual, basicamente, se diz assim: “Não é que a nossa pastoral não diga mais o Evangelho. É que ela não o diz como Evangelho”. Em suma, é precisamente a modalidade como pregamos. Fazemos discursos de caritas, celebramos, o que não é uma modalidade evangélica, isto é, não transmite a Boa Notícia. A nossa Igreja custa a transmitir o entusiasmo do Evangelho, o estupor do Evangelho, a transgressão do Evangelho, a novidade do Evangelho, a abertura do Evangelho: isto é, essas próprias palavras nos parecem heréticas. O teólogo tcheco Tomáš Halík disse que a pandemia, com as igrejas vazias, nos fez ver o que será daqui a 30 anos. Isso me impressionou muito. Efetivamente, não é que seja necessário discutir se é preciso mudar: ou mudamos ou morremos.

 

A pandemia acelerou processos e expôs problemas. As comunidades se dividiram quanto ao fato de suspender ou não as missas nas semana de emergência máxima, talvez evidenciando aquele significado “identitário” dado à celebração ou talvez até a preocupação de endossar a mensagem equivocada de que a missa na TV ou via internet é a mesma coisa que a presencial. De fato, hoje, as igrejas estão mais vazias do que há um ano. Terminada a pandemia, os fiéis voltarão à igreja? Ou eles descobriram que podem tranquilamente abrir mão de uma participação que era apenas um hábito? Ou talvez entenderam que rezam melhor em casa com a família?

 

Fulvio Ferrario – A Igreja Evangélica reagiu com muita serenidade aos fechamentos decididos pelo governo: não tivemos nada comparável ao trauma da Conferência Episcopal. Eu defendi veementemente a chance ligada à experimentação e acho que se abriu um processo irreversível. Nas comunidades protestantes, há pessoas que viajam 40 quilômetros para vir ao culto. Então, se eu consigo alcançar mais pessoas, quero aproveitar essa possibilidade. Porque, se existe a pregação da Palavra de Deus, o meio é muito secundário, o anúncio absolutamente não é “virtual”, mas sim bastante real. Além disso, acho que as plataformas como o Zoom permitem uma participação mais rica do que o streaming ou até os vídeos no YouTube. Por sua vez, é diferente a questão do sacramento católico, porque a fisicidade faz parte da dinâmica do evento sacramental, é uma parte constitutiva dele. Mas poderíamos refletir também sobre este último aspecto, em perspectiva ecumênica, porque alguns dos problemas que foram evocados estão muito a montante das bifurcações confessionais.

 

Assunta Steccanella – Estou na mesma linha de experimentar tudo, com toda a imaginação possível, porque estamos enveredando por estradas novas e precisamos descobrir como habitá-las. O digital não é um espaço virtual, mas sim uma expressão diferente do real, porque muitas pessoas passam muito tempo nele, principalmente as gerações mais jovens. Transmitimos as missas de todas as formas possíveis e imagináveis porque a nossa pastoral era somente isso. Houve experiências que, depois, ganharam corpo gradualmente, até muito bonitas, mas, inicialmente, a desorientação foi total.

Quanto à dimensão da fisicidade na dinâmica sacramental, dou um exemplo pessoal. Sou avó de quatro netos, e, durante o período do lockdown, quando eu não podia me encontrar com eles, as videochamadas foram providenciais. É claro que esse formato não substituiu o meu desejo de um abraço com os meus netos! Mas, sem isso, teria sido pior.

Da mesma forma, as celebrações eucarísticas em formato digital certamente não podem substituir a dinâmica sacramental, mas podem alimentar a espiritualidade e o vínculo com a própria comunidade. E a celebração online poderia ter assumido um peso verdadeiramente eucarístico, se tivéssemos conseguido buscar a presença real do Senhor nos pobres, se tivéssemos de algum modo nos aproximado de alguém com um telefonema ou levando uma sacola de compras. Podíamos substituir a presença real no pão e no vinho consagrados pela ideia igualmente forte e teologicamente central da presença real na pessoa dos pobres.

 

Luigi Berzano – Eu experimentei como um dado inesperado mas positivo as famílias pequenas igrejas. Hoje, a família redescobre a capacidade ministerial do pai ou da mãe de abençoar. Eu diria que o risco dos ritos digitais está sobretudo na percepção da experiência religiosa como espetáculo. A “sociedade do espetáculo” de que Guy Debord falava no fim dos anos 1960 é a sociedade em que os indivíduos não praticam mais esporte, mas o veem; os indivíduos não fazem experiências espirituais, mas as veem.

Hoje se discute se é possível uma religião sem Deus, mas eu me pergunto se é possível uma religião sem matéria, ou seja, uma religião que se torna apenas espetáculo. A experiência de uma comunidade religiosa não é a de um espetáculo a ser visto, mas é um espetáculo a ser vivido. A experiência religiosa também pode se tornar espetáculo. Junto com a desmaterialização do trabalho, da escola, da vida relacional, é necessário – na medida do possível – não acrescentar também a da experiência religiosa. Além disso, no mundo cristão, toda a vida religiosa é tecida de corporeidade: lugares, comunidades locais, sacramentos, festas, edifícios, tempos, ministros e muito mais. Como podemos abrir mão disso?

 

Derio Olivero – A pandemia nos ensinou a fragilidade de nós, católicos, sobre casa e Palavra. Se você tira a missa, tira tudo, não existe mais nada, principalmente em casa, no sentido de que não há rituais, espaços, símbolos que possam de algum modo sustentar a vida de fé. Deveríamos aprender com os restaurantes: nos lockdowns, eles se organizaram com as tele-entregas, ou seja, as entrega em casa. Nós deveríamos ajudar a ter em casa coisas necessárias para a própria vida de fé. Talvez pudéssemos ser criativos com símbolos e pequenos rituais que o digital pode suportar.

A outra é a questão da Palavra. Terminada a Eucaristia, tínhamos pouquíssimo respeito pela leitura, pela meditação, pelo estudo, pelo anúncio da Palavra. Enfim, a pandemia nos ensinou que o distanciamento na missa nos deixa desconfortáveis: vamos comungar, não fazer a comunhão. Isso, provavelmente, poderá nos estimular a uma modalidade celebrativa e a uma preparação para celebrar todos juntos de um modo um pouco mais fraterno, mais em relação.

 

Andrea Grillo – A sociedade está dividida em três camadas: existem os locais privados, os locais públicos e os locais comunitários. Com a pandemia, o comunitário foi totalmente sugado pelo público, porque comunitário e público têm as mesmas regras. Em vez disso, precisamos de locais comunitários diferentes dos locais públicos, e por isso estamos sofrendo.

Paradoxalmente, eu vejo o fato de as pessoas não irem à missa também como algo positivo: isso significa que elas se dão conta de que, no local comunitário, elas são obrigadas a se comportar como se estivessem em um local público, ou seja, a manter as distâncias, o que significa não poder ser comunidade.

Obviamente, fazemos bem em respeitar as disposições de segurança, mas devemos saber que perdemos de vista não apenas quem perde o hábito, mas também quem não está lá, quem não se sente interpretado na sua necessidade de comunidade por uma forma ainda mais bloqueada do que antes. São fiéis que zelam pela saúde, mas também pela sua comunidade.

 

O motu proprio do Papa Francisco Spiritus Domini, que introduz a possibilidade de as mulheres exercerem o ministério do leitorado e do acolitado, vai em que direção? Que relação ele tem com tudo o que dissemos até agora? Ele é o pressuposto para a ordenação diaconal e presbiteral feminina? E, do ponto de vista ecumênico, é uma aproximação com as Igrejas protestantes ou uma pedra de tropeço com as Igrejas da Ortodoxia?

 

Assunta Steccanella – Levamos 50 anos para entender que esses ministérios, que são ministérios leigos, abrangiam todo o povo de Deus. Um grupo de leigos estavelmente instituídos para prestar um serviço à comunidade serviria também como garantia de continuidade, como elemento de ruptura do clericalismo. Do ponto de vista das mulheres, isso tem um grande significado, principalmente em nível simbólico, ou seja, de mudança de representações. Se ligarmos os ministérios instituídos ao ministério ordenado, já clericalizamos também os ministérios instituídos, e não é isso que devemos fazer, não é isso que queremos fazer.

Depois, há outro aspecto: a Igreja Católica latina tem uma dimensão mundial, e o fato de tirar as três palavrinhas “do sexo masculino” do Código de Direito Canônico pode ter efeitos verdadeiramente importantes do ponto de vista social e cultural em países onde o machismo e o patriarcado são muito mais fortes do que na Itália. Portanto, eu estou muito feliz com isso e acho que, se nos ajudarmos juntos – leigos, presbíteros e bispos – a dar um caráter difuso, público e estrutural a essa possibilidade, prestaremos um grande serviço à Igreja de amanhã.

 

Andrea Grillo – Seguramente, a aquisição do Spiritus Domini é o cumprimento da Ministeria quaedam: ele leva em frente o grande passo dado nos anos 1970. E o reconhecimento de que os ministérios instituídos estão abertos a todos: leigos e leigas. Isso deixa totalmente intocado o discurso sobre o acesso da mulher ao ministério ordenado, e eu não gostaria que, uma vez que se deu o passo no nível do ministério instituído, a questão do ministério ordenado deva ser considerada encerrada. A questão não é clericalizar a mulher, fazendo-a entrar no ministério ordenado, mas sim desclericalizar o ministério ordenado, fazendo com que a mulher entre nele. O Spiritus Domini deixa intocado o problema de dar acesso às mulheres também ao ministério ordenado. O Papa Francisco não devia se ocupar com isso naquele contexto, mas a questão permanecerá no coração da Igreja.

 

Luigi Berzano – Eu acho que esse motu proprio simplesmente aproxima da mensagem do Evangelho e, só por essa razão, devia ser feito: não para dar um sinal ou para dar um passo no sentido das mulheres-padre ou por outras razões instrumentais. Além disso, quanto à interrogação de que ele foi feito para dar um sinal ou para dar um passo no sentido da ordenação diaconal e presbiteral feminina, será a história futura que nos dirá quais serão os ministérios que as mulheres exercerão nos próximos séculos para manter viva a mensagem evangélica, tanto nas Igrejas Católica, Ortodoxa e Protestante.

 

Derio Olivero – Eu também espero que agora não se encerre o debate sobre a ordenação das mulheres. Eu acrescentaria apenas isto, ou seja, que o livro de Armando Matteo “La Chiesa che manca” [A Igreja que falta] me impressionou muito. O autor lembra que as mulheres foram a força da Igreja durante séculos, enquanto agora nós perdemos aquelas que estão na faixa dos 30 aos 50 anos. Perguntemo-nos por que não falamos mais e não nos interessamos mais, como Igreja, pelas mulheres.

 

Fulvio Ferrario – Pode ser que, como afirmam alguns setores do mundo católico, se trate de uma abertura. Porém, falar, como também se fez, de um “gesto profético” me parece, no mínimo, excessivo. No campo do reconhecimento dos carismas, sem discriminações de gênero, todas as Igrejas estão atrasadas, e, certamente, as diferenças atuais entre católicos, ortodoxos e evangélicos, por um lado, e protestantes, por outro, são secundárias em relação a esse atraso. A diferença sobre a ordenação das mulheres, sobre a qual Francisco pensa como os seus antecessores, está entre as principais razões de contraste sobre o ministério; também por causa desse contraste, a Igreja Católica se opõe à hospitalidade eucarística interconfessional. Eu não me escandalizo com essa atitude: quem a adota assume a sua responsabilidade. A Igreja Evangélica não tem dificuldade em reconhecer a eclesialidade de quem pensa diferente. Em todo caso, ela acredita que, no que diz respeito aos seus dons, o Espírito Santo não faz discriminação de gênero.

Andrea Grillo – Eu, porém, não posso deixar de fazer o mais singular em todo este caso: o italiano do motu proprio Ministeria quaedam, de Paulo VI, teria nos condenado a não podermos prosseguir com o leitorado e a acólita. Mas, como o texto latino diz “venerabilis”, e não “veneranda”, sobre a tradição que exclui as mulheres, então ela pode ser mudada. Esta é a cereja do bolo: o latim nos salvou, enquanto o italiano teria nos condenado.

 

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