Limites do diálogo. Por que o Papa Francisco tem sido tão duro com os tradicionalistas? Artigo de Austen Ivereigh

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02 Agosto 2022

 

“Tendo em mente a distinção de Bergoglio entre pecado e corrupção, a ausência de contrição real também fala muito. Em resposta ao Traditionis custodes, alguns tradicionalistas reconheceram a possibilidade hipotética do pecado, mas nunca admitiram qualquer transgressão real. Tais reações revelam a profundidade da corrupção. É por isso que Francisco não 'dialogou' com o movimento tradicionalista, mas colocou os bispos de volta para regulá-lo. Ao agir com firmeza, ele criou uma crise que pode trazer, naqueles prontos para isso, um momento despertar a consciência”, escreve Austen Ivereigh, em artigo publicado por Commonweal, 20-01-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Austen Ivereigh, escritor e jornalista britânico e pesquisador em História da Igreja Contemporânea no Campion Hall, na Universidade de Oxford. Seu livro mais recente é “Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor” (Ed. Intrínseca, 2020), uma entrevista com o Papa Francisco

 

Eis o artigo.

 

Em dezembro de 2021, a Congregação para o Culto Divino respondeu a perguntas dos bispos sobre as restrições do Papa Francisco sobre a liturgia pré-Vaticano II. A fúria e o descontentamento com as respostas eram esperados – mais do mesmo que aconteceu depois da publicação do motu proprio Traditionis custodes, no qual as novas restrições foram anunciadas, em julho de 2021. Mas desta vez as conhecidas objeções dos tradicionalistas encontraram ecos em algumas mentes liberais do catolicismo.

 

O teólogo Gregory Hillis, professor da Bellarmine University e pesquisador sobre Thomas Merton, por exemplo, escreveu na revista America, dos jesuítas estadunidenses, sobre a aparente contradição entre o chamado do Papa na Frateli Tutti por um diálogo amável e seu tratamento “atipicamente rude” aos tradicionalistas. “Ao mesmo tempo que nós como Igreja estamos embarcando no caminho sinodal, eu tenho dificuldade de entender por que uma abordagem mais sinodal – dialógica – não está sendo tomada com os tradicionalistas”, escreveu Hillis.

 

Essa crítica é em torno das objeções levantadas. Como Rita Ferrone apontou em Commonweal, Traditionis custodes foi o fruto de um processo muito mais colegial que aqueles produzidos pelos éditos litúrgicos dos predecessores de Francisco: o atual pontífice consultou bispos de todo o mundo antes de publicar as novas regras litúrgicas. Como a abertura ao diálogo, há limites do se pode alcançar com aqueles que reivindicam estar sozinhos na posse da verdade completa. Os enclaves tradicionalistas se tornaram canais de resistência para muitas ideias de uma tradição viva. Bento XVI não previu isso quando relaxou as tradições sobre o Rito Tridentino em 2007, mas isso aconteceu, e agora isso recaiu sobre Francisco, que retorna a Igreja à tradição de um único Rito Romano. A então chamada forma ordinária deste rito não é uma simples alternativa à “forma extraordinária”, mas uma reforma disso – e uma reforma tomada em um concílio ecumênica sob a guia do Espírito Santo.

 

Ainda, Hillis não questionou o direito de Francisco de impor novas restrições, mas pergunta se não haveria uma forma melhor. Seu ponto era que, a parte desses que estavam usando as guerras litúrgicas para minar o Papa e o Concílio Vaticano II, havia aderentes ordinários do rito antigo que não estavam contra o Papa Francisco e o Vaticano II, e sentiam-se, com a Traditionis custodes, machucados e rejeitados.

 

Essa foi a essência de uma carta enviada em agosto do ano passado pelos superiores-gerais das comunidades Ecclesia Dei aos bispos da França. Eles não se reconheciam na descrição de tradicionalistas da Traditionis custodes, que fala que “o uso instrumental do Missale Romanum de 1962 é frequentemente caracterizado pela rejeição não apenas da reforma litúrgica, mas de todo Concílio Vaticano II”. Isso “é um julgamento ríspido”, escreveram, “cria um sentimento de injustiça e produz ressentimento”.

 

Os superiores-gerais continuaram citando Amoris laetitia, que, dada a ferocidade da rejeição tradicionalista daquela exortação apostólica na época, parecia um pouco oportunista, senão hipócrita. Mas também foi astuto. Onde estava o rosto misericordioso de Deus em um documento que ordenava que as missas tradicionalistas não fossem anunciadas nas paróquias? Onde estava a atenção às particularidades? E os excêntricos destacados por Stephen G. Adubato em artigo do National Catholic Reporter – os tradicionalistas não ideológicos, neurodivergentes, aqueles com Asperger ou introversão extrema? Esses inocentes não foram também martelados?

 

A pergunta me incomodou durante o Natal. Qual foi a chave para o discernimento de Francisco neste caso? Então me lembrei de uma palestra que ele havia dado em março de 1991, que mais tarde foi publicada como um ensaio com o título “Algumas reflexões sobre o tema da corrupção”. E ao reler, eu entendi.

 

Corrupción y Pecado” é um dos escritos mais bem argumentados e detalhados de Jorge Mario Bergoglio da época de seu chamado “exílio em Córdoba” no início dos anos 1990. Foi uma época de grande desolação e sofrimento para o antigo líder da província jesuíta argentina, mas também de grande fecundidade, período em que produziu seus melhores escritos. A distinção de Bergoglio entre pecado e corrupção é clara e fascinante. E a conclusão que se segue dessa distinção – que pecado e corrupção exigem respostas muito diferentes – explica por que Francisco escolheu agir como agiu diante da insurgência tradicionalista.

 

Embora a corrupção esteja obviamente ligada ao pecado – resultante de pecados repetidos e aprofundados ao longo do tempo – em aspectos cruciais ela é diferente, principalmente no modo distinto de proceder da pessoa corrupta. Por isso, escreve Bergoglio, “poderíamos dizer que enquanto o pecado é perdoado, a corrupção não pode ser perdoada”, pois na raiz da corrupção está a recusa do perdão de Deus. A pessoa ou organização corrompida não vê necessidade de arrependimento, e seu senso de autossuficiência gradualmente passa a ser considerado natural e normal.

 

A menos que seja corrigida, a corrupção se aprofunda com o tempo, pois os corruptos, longe de serem na realidade autossuficientes, são de fato escravos de um “tesouro” que conquistou seus corações – por exemplo, dinheiro, poder, honra ou privilégio. Para ocultar essa escravidão, os corruptos cultivam energicamente uma aparência de retidão e boas maneiras. Sempre se justificando, eles finalmente se convencem de sua própria superioridade moral.

 

Por outro lado, o pecador – mesmo quando não está pronto para se arrepender – sabe que é um pecador e anseia por se entregar à misericórdia de Deus. Esta é a distinção chave: o pecador permanece, ainda que obscura e inconscientemente, aberto à graça, enquanto os corruptos negam que pecam. Fechados por seu orgulho, eles excluem a possibilidade da graça.

 

Ao contrário do pecado, a corrupção não é perdoada, mas “curada”. Mais do que o diálogo, que serviria apenas para alimentar a autojustificação do corrupto, a resposta adequada é colocá-lo em crise. Como Bergoglio observa em uma nota de rodapé, o Senhor cura os corruptos não por meio de atos de misericórdia, mas por meio de grandes provações: doença grave, falência, morte súbita de entes queridos, o FBI invadindo seu escritório. Esses traumas têm o potencial único de “derrubar a armadura da corrupção e permitir que a graça entre”, escreve Bergoglio.

 

Francisco muitas vezes usou a armadura como uma metáfora para descrever o coração fechado para Deus. Ele o fez recentemente na Missa da Epifania, quando disse que a “fé não é uma armadura que nos envolve”, mas “uma jornada fascinante, um movimento constante e inquieto, sempre em busca de Deus, sempre discernindo nosso caminho a seguir”. Tratar a fé como uma armadura – um meio de autodefesa – é corromper ela e si mesmo.

 

Certos tipos de comportamento servem como indicadores de corrupção. Os corruptos normalmente se justificam com comparações com outros, como o fariseu em Lucas 18, 11. Outro sinal de alerta é o triunfalismo. Enquanto o pecador sente não apenas culpa, mas vergonha, o corrupto é triunfantemente sem vergonha. Eles garantem cúmplices, oferecendo-lhes o mesmo sentimento de superioridade e autossatisfação.

 

É fácil ver por que a resposta de Francisco à máfia italiana foi não dialógica, até mesmo “impiedosa”: ameaçando o inferno se não se arrependerem, advertindo-os a renunciar à sua “cultura da morte” e assim por diante. Para assassinos violentos do crime organizado que se consideram católicos, receber uma bronca do papa pode, possivelmente, desencadear uma crise suficiente para perfurar a armadura de sua corrupção. Na mesma linha, Francisco frequentemente ordenou que comunidades religiosas abusivas ou corruptas fossem investigadas, ou até mesmo fechadas.

 

Em seu ensaio, Bergoglio discute a corrupção da época de Jesus, sobretudo nas elites religiosas da época: fariseus, saduceus, essênios e zelotes. Todas as doutrinas e rituais desenvolvidos – um legalismo rígido ou um ritualismo de pureza – que escondiam sua corrupção e os permitiam ficar distantes do povo, este desprezado como pecador. A natureza exata da corrupção difere em cada um dos quatro grupos, mas sempre se manifesta na atitude de superioridade remota.

 

Bergoglio observa, também, que a resposta de Jesus aos corruptos envolveu recordar a promessa de redenção que Deus fez a todo o povo, reler as Escrituras à luz dessa promessa e realizar a proximidade de Deus com os pobres em seus atos e palavras. Como o Papa Francisco coloca no livro-entrevista “Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor”: “Jesus teve que rejeitar a mentalidade das elites religiosas de sua época, que se apropriaram da lei e da tradição. A posse dos bens da religião tornou-se um meio de se colocar acima dos outros, outros não como eles, que eles inspecionavam e julgavam.” Ao caminhar com os pobres e marginalizados, diz Francisco, Jesus “derrubou o muro que impedia o Senhor de se aproximar de seu povo, entre seu rebanho”.

 

Francisco vê o movimento tradicionalista como corrupto? Ele não usou a palavra, mas suas ações sugerem isso. Como me disse alguém próximo a ele, o papa se sentiu compelido, em Traditionis custodes, a “lidar com o crescimento dessa ideologia desencarnada com caridade, compreensão e coragem para colocar as coisas em seu lugar”. As palavras “crescimento” e “colocar as coisas em seu lugar” são sugestivas: trata-se de um esforço para estabelecer limites e impedir uma expansão. O arcebispo estadunidense Augustine Di Noia, secretário adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), disse ao Catholic News Service que o tradicionalismo “ficou totalmente fora de controle”, tornando-se “um movimento que promove agressivamente a Missa Tradicional em latim entre os jovens e outros como se esta 'forma extraordinária' fosse a verdadeira liturgia para a verdadeira Igreja”.

 

Di Noia foi vice-presidente da comissão Ecclesia Dei, que supervisiona as relações com os tradicionalistas, e coordenou diálogos com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X. A pesquisa com os bispos que ele realizou a pedido de Francisco mostrou, disse ele, que o movimento tradicionalista “sequestrou as iniciativas de São João Paulo II e Bento XVI para seus próprios fins”. Promoveu a divisão ao rejeitar a reforma fundamental do Concílio Vaticano II, a reforma da liturgia. Em seu “pior”, disse Di Noia, o movimento representa “uma resistência perversa à renovação inspirada pelo Espírito Santo e solenemente confirmada no ensinamento de um concílio ecumênico”.

 

Esses comentários, juntamente com a carta que o Papa Francisco enviou aos bispos quando a Traditionis custodes foi promulgada pela primeira vez, deixam poucas dúvidas de que ele acredita estar enfrentando a corrupção. Embora exteriormente piedoso e religioso, é inconfundivelmente um tipo de ideologia. Esses tradicionalistas se veem como o remanescente fiel de uma Igreja em desordem, da qual precisam se defender. Este é o conhecimento especial revelado apenas a eles, que justifica manter-se distante do catolicismo pós-conciliar dominante e exigir a adesão a rituais e regras especiais para evitar a contaminação da modernidade. Que essa ideologia corruptora agora permeia a cultura do movimento tradicionalista é claro para qualquer um que – como Rachel Dobbs – a tenha visto de dentro.

 

Hillis e outros críticos irênicos de Traditionis custodes parecem não ter notado isso. Eles apresentam os tradicionalistas como pessoas com gostos litúrgicos inofensivos, embora peculiares – como se o tradicionalismo fosse simplesmente uma questão de preferir rendas e canto gregoriano ao sinal da paz e guitarras folclóricas. Peter Seewald mostra uma ingenuidade semelhante no volume dois do seu livro-biografia “Bento XVI: Uma Vida, em que descreve o gosto pelo Missal antigo como uma tendência cultural, uma reação ao “vinho adulterado e ao fast food” que nada tem a ver com oposição ao Vaticano II. E enquanto o biógrafo de João Paulo II, George Weigel, aceita que “alguns proponentes” do Rito Antigo “se consideram os únicos remanescentes fiéis de uma Igreja decadente”, ele rejeita a sugestão de que “este é o novo normal” para os frequentadores da missa tradicionalista.

 

Mas, nesse caso, por que eles – aqueles que simplesmente amam essa forma de liturgia – não se levantam contra seus líderes autonomeados, para quem o tradicionalismo é claramente muito mais? Onde estão os movimentos internos “não em meu nome”, o repúdio aos ideólogos, os apelos à renovação? No mínimo, pode-se esperar apelos para um rigoroso autoexame. No entanto, é impressionante como raramente se encontram “bons” tradicionalistas repudiando as biliosas denúncias de Francisco e do Vaticano II que inundam a internet, ou o desafio “reconhecer e resistir” dos sumos sacerdotes do tradicionalismo, com suas conspirações QAnon e alegações de conspirações globalistas.

 

Tendo em mente a distinção de Bergoglio entre pecado e corrupção, a ausência de contrição real também fala muito. Em resposta ao Traditionis custodes, alguns tradicionalistas reconheceram a possibilidade hipotética do pecado, mas nunca admitiram qualquer transgressão real. “Estamos prontos, como todo cristão, a pedir perdão se algum excesso de linguagem ou desconfiança da autoridade se infiltrar em algum de nossos membros”, dizem os superiores gerais da Ecclesia Dei. “Estamos prontos para converter se o espírito de partido ou o orgulho poluiu nossos corações.” Por que “se”? “Orgulho e espírito de partido” não é uma coisa que o tradicionalismo reconhecidamente se tornou?

 

Em viés similar, a Sociedade de Missa Latina, sedeada no Reino Unido, diz, “Deus está nos chamando para redimir nossos pecados”, ainda que se procure em vão no seu site qualquer reconhecimento de quais são esses pecados. No lugar da atual contrição, encontra-se indignação, queixas, desconfiança e autojustificativas, um cuidado derramamento de objeções sem fins, e reclama que o papa carece de prerrogativa ou jurisdição para restringir a prática da missa pré-conciliar, juntamente com uma insistência dolorida de que tudo o que todos querem é ser deixados sozinhos para fazer orações como seus antepassados fizeram.

 

Tais reações revelam a profundidade da corrupção. É por isso que Francisco não “dialogou” com o movimento tradicionalista, mas colocou os bispos de volta para regulá-lo. Ao agir com firmeza, ele criou uma crise que pode trazer, naqueles prontos para isso, um momento despertar a consciência. Um membro do Opus Dei tuitou sobre um jovem padre tradicionalista que ela conhece e que veio para ver que Francisco fez a coisa certa. O padre havia celebrado tanto o rito tridentino quanto o rito romano reformado em um hospital, e notou que certas pessoas que vinham esperando a missa antiga se levantavam e saíam se ele celebrasse o rito reformado. Ele percebeu que eles construíram toda a sua identidade como católicos em torno do movimento tradicionalista litúrgico e que não podiam reconhecer a presença de Cristo na Eucaristia da liturgia reformada. Essa identidade, o padre veio a ver, não era espiritualmente saudável e precisava ser desafiada.

 

Uma abordagem sinodal é o “estilo de Deus” com pessoas de boa vontade, por maiores que sejam seus pecados ou divergências. Mas o diálogo não pode curar a corrupção. A resposta misericordiosa aos corruptos é colocar uma pedra de tropeço, um skandalon, em seu caminho, forçando-os a tomar outro. Deve-se primeiro oferecer àqueles que estão prontos para isso uma fuga da corrupção. Então, se eles aceitarem, pode-se recebê-los de volta ao rebanho de braços abertos.

 

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