Roma em missão: a reforma da Cúria do Papa Francisco. Artigo de Austen Ivereigh

Papa Francisco reunido com a Cúria Romana | Foto: Vatican Media

05 Mai 2022

 

"Uma Cúria Romana sinodal, marcada pela reciprocidade e pela participação, impulsionada pelo Espírito para a missão, dedicada ao serviço, segundo o modelo dos Atos dos Apóstolos? Não seria um milagre? Esse pensamento pode ter ocorrido ao Papa Francisco, pois a nova constituição entra em vigor no dia 5 de junho, solenidade de Pentecostes".

 

O comentário é de Austen Ivereigh, escritor e jornalista britânico e pesquisador em História da Igreja Contemporânea no Campion Hall, na Universidade de Oxford. Seu livro mais recente é “Vamos sonhar juntos: o caminho para um futuro melhor” (Ed. Intrínseca, 2020), uma entrevista com o Papa Francisco. O artigo foi publicado por Commonweal, 27-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Muitos de nós que estamos interessados na reforma do órgão central de governo da Igreja fomos enganados: disseram-nos que a nova constituição da Cúria Romana conteria poucas surpresas. Sabíamos que ela se chamaria Praedicate Evangelium (“Preguem o Evangelho”), e que a sua ideia unificadora, tirada da Evangelii gaudium, seria tornar a Igreja apta para a evangelização do mundo (secular) de hoje, e não para a sua autopreservação em uma cristandade que desapareceu.

Sabíamos que os órgãos vaticanos não seriam mais divididos em ovelhas e cabras – “congregações” superiores com influência jurídica e “conselhos” inferiores para produzir relatórios que ninguém lê –, mas seriam classificados como “dicastérios”, do grego dikastērion, tribunais.

Também sabíamos de outras coisas: que as mulheres e os leigos teriam altos cargos em alguns dos dicastérios, que os dicastérios fundiriam departamentos existentes e que toda a operação seria reduzida.

Então, o que haveria de verdadeiramente novo no governo eclesial da Cidade Eterna? Afinal, a reforma estrutural está em processo experimental desde 2015, visível a olho nu. A Praedicate Evangelium, assumimos nós, apenas tornaria “de jure” aquilo que já era “de fato”.

Isso acabou não sendo verdade, mas você não conseguiria adivinhar isso pelo modo como o Vaticano lançou a Praedicate Evangelium, amortecendo o rufar dos tambores. A primeira nova constituição da Cúria Romana em mais de 30 anos chegou às caixas de entrada em um sábado, sem o habitual aviso, sem comentários e apenas em italiano. A coletiva de imprensa dois dias depois também parecia destinada a manter as rolhas nas garrafas: três clérigos italianos leram um comentário de 23 páginas, que incluía um relato minucioso da forma como a Praedicate Evangelium foi redigida e corrigida durante um período de nove anos, em 40 reuniões do Conselho de Cardeais que aconselham o papa, depois enviada aos cardeais e aos chefes da Cúria e a todas as conferências episcopais, até finalmente ficar pronta em junho de 2020 – para ser ainda mais modificada pela Congregação para a Doutrina da Fé e pelo Conselho para os Textos Legislativos, que, aliás, em breve serão renomeados.

Uma coisa ficou clara: a quinta constituição apostólica sobre a Cúria Romana na história da Igreja – depois das de Sisto V em 1588, Pio X em 1908, Paulo VI em 1967 e João Paulo II em 1988 – é fruto de um nível exaustivo de consulta, segundo o antigo princípio de que “o que afeta a todos deve ser discutido por todos”. A Praedicate Evangelium foi construída para durar até a próxima geração.

 

A verdadeira novidade

 

Então, o que havia de novo? A principal manchete era que qualquer batizado podia agora chefiar qualquer dicastério, “dependendo da sua competência, poder de governo e função”, como afirma o quinto dos “Princípios e Critérios”. O modo como isso foi noticiado (“Papa permite…”) não era, de fato, novidade: o Dicastério para a Comunicação é chefiado por um leigo, Paolo Ruffini, há anos, e meia dúzia de mulheres (principalmente religiosas e membros de movimentos) ocupam há muito tempo cargos importantes na Cúria – mulheres como Francesca di Giovanna, encarregada das relações da Santa Sé com as Nações Unidas e outros organismos multilaterais.

No entanto, havia algo novo aqui, algo importante, na justificativa desse princípio: “qualquer fiel” pode, em princípio, chefiar um dicastério, porque a autoridade na Cúria é exercida vicariamente, em nome do papa, com poder delegado diretamente por ele.

Ora, é verdade que a constituição de João Paulo II também deixava claro que o poder da Cúria é exercido vicariamente, por meio do poder recebido do papa. Mas a Pastor bonus assumia que esse poder era delegado apenas aos cardeais e bispos, porque, bem, desde 1588 era assim.

Na coletiva de imprensa de lançamento da Praedicate Evangelium, no entanto, o canonista jesuíta Pe. Gianfranco Ghirlanda mostrou que a suposição deveria, no mínimo, ser a oposta. Se o poder é o mesmo (vicário, delegado pelo papa) seja ele exercido por um bispo, padre, religioso ou leigo, então isso resolve uma longa disputatio eclesiológica – ou seja, se o poder de governo é conferido pelo sacramento da Ordem. Se fosse, então os leigos não poderiam receber nenhum ofício na Igreja que envolvesse o exercício desse poder.

O Concílio Vaticano II não quis resolver a questão, que foi deixada em aberto no Código de Direito Canônico revisto de 1983. Mas agora, de acordo com Ghirlanda, cujo trabalho foi sobre esse mesmo tema, a Praedicate Evangelium “confirma que o poder de governo na Igreja não vem do sacramento da Ordem, mas da missão canônica”.

Ouviram isso? Roma falou; a questão está resolvida. O fato de Ghirlanda ter sido solicitado oficialmente a apresentar a constituição só pode significar que essa implicação mais ampla é aquilo que o papa pretende e é lei. Nunca o clericalismo recebeu um golpe final tão letal.

Dessa e de muitas outras formas, a apresentação discreta da Praedicate Evangelium contrastava com a sua importância, como o papa, que odeia o triunfalismo, sem dúvida pretendia. Pois a Praedicate Evangelium destila em lei a essência da reforma de Francisco, mostrando não apenas para que serve a Cúria Romana, mas também para que serve a Igreja – e que forma e cultura ambas devem ter se quiserem praticar com credibilidade o Evangelho que pregam no terceiro milênio.

 

Mudanças e transformações

 

Esta, enfim, é a reforma “desejada vivamente pela maioria dos cardeais no âmbito das congregações gerais antes do conclave” em 2013, como a Praedicate Evangelium lembra no final de seu preâmbulo. A data da publicação da constituição – 19 de março, nono aniversário da missa inaugural do Papa Francisco – é um lembrete daqueles dias, quando os cardeais, após a renúncia de Bento XVI, se levantaram um após o outro para exortar o próximo papa a transformar uma corte de comparsas disfuncional, voltada para dentro e autoengrandecida em um organismo de serviço a toda a Igreja, eficaz e voltado para fora.

Eles queriam que a Cúria Romana, que passou grande parte de 2011 e 2012 mergulhada em escândalos, fosse uma inspiração e um modelo, não um constrangimento; que facilitasse ao invés de bloquear as relações entre os bispos e o papa; que fosse uma ajuda na evangelização ao invés de um contratestemunho.

Qualquer um que ouviu esses apelos veria imediatamente como a Praedicate Evangelium os aborda especificamente. Enquanto a constituição Pastor bonus, de São João Paulo II, foi chamada simplesmente de “Constituição Apostólica sobre a Cúria Romana”, a Praedicate Evangelium de Francisco é chamada de “Constituição Apostólica sobre a Cúria Romana e o seu serviço à Igreja no mundo”.

A queixa mais comum — depois das finanças, que ocuparam os primeiros anos da reforma de Francisco — era de que a Cúria era uma lei em si mesma, autorreferencial e altiva, enfiada entre a Igreja local e o papado. A Cúria tratava os bispos notoriamente com desprezo, como eles constatavam em suas visitas ad limina a Roma (assim chamadas porque a cada cinco anos os bispos de um país fazem uma visita oficial ad limina apostolorum, “ao limiar dos apóstolos”, percorrendo os dicastérios e reunindo-se com o papa).

Muitos bispos dizem que a atitude foi encorajada pela carta apostólica Apostolos suos, de São João Paulo II em 1988, que quase negava qualquer legitimidade às conferências episcopais.

Isso mudou há muito tempo. Os bispos agora estão maravilhados com a sua recepção em Roma com Francisco: as autoridades da Cúria ficam ansiosas para ouvi-los, aprender com eles e ajudá-los. Em seu preâmbulo, a Praedicate Evangelium elogia o papel fundamental das conferências episcopais e dos colegiados regionais, pede uma “saudável descentralização” – isto é, uma autonomia regulada pelo princípio da comunhão – e diz claramente que a Cúria “não se coloca entre o papa e os bispos, mas se põe a serviço de ambos”.

Refletindo a natureza hierárquica da Igreja, que é primacial e também colegial (os bispos governam “com e sob Pedro”), o serviço da Cúria está organicamente ligado aos bispos, assim como o papa; e a sua missão é construir laços de governo colegial e de comunhão, atuando como um centro nevrálgico para ideias criativas e contatos entre as conferências episcopais.

Seis artigos da Praedicate Evangelium (nn. 38-43) são dedicados às visitas ad limina, dando-lhes grande importância e enfatizando o papel da Cúria em facilitá-las.

 

Espírito de serviço e missão

 

Outra reclamação naquelas reuniões dos cardeais em fevereiro e março de 2013 dizia respeito à cultura de trabalho no Vaticano: as autoridades da Cúria eram escolhidas a partir de um restrito grupo italiano, que muitas vezes se revelavam obstrucionistas incompetentes, mas autoimportantes, propensos ao nepotismo, senão até à corrupção de fato, carreiristas e clericalistas espiritualmente secos separados em todos os sentidos do Povo de Deus.

Colocando no papel os anos das reformas de Francisco, o segundo capítulo da Praedicate Evangelium diz que os curiais devem se distinguir pela sua vida espiritual, experiência pastoral, sobriedade de vida e amor aos pobres, assim como pela sua competência e capacidade de discernimento, e que eles devem servir com um espírito de colaboração e corresponsabilidade.

Eles podem ser selecionados entre bispos, clérigos, religiosos e leigos. O que importa não é o seu estado de vida, mas o seu espírito de serviço e missão. Eles devem ser de diferentes culturas para refletir a catolicidade da Igreja e retornar às suas dioceses ou congregações religiosas após cinco anos, que podem ser estendidos por até dez. De acordo com o seu estado de vida, quem trabalha na Cúria deve cuidar da “saúde das almas”, além das tarefas de escritório, empenhar-se na oração pessoal e comunitária regular e realizar o seu trabalho “com a alegre consciência de serem discípulos-missionários a serviço de todo o Povo de Deus”.

De fato, a função da Cúria Romana não é, antes de mais nada, burocrático-administrativa, mas sim pastoral: como diz o artigo 3 das Normas Gerais, a Cúria desempenha “um serviço pastoral de apoio à missão do Romano Pontífice e dos bispos nas respectivas responsabilidades para com a Igreja universal”.

Há muitas outras mudanças importantes na Praedicate Evangelium. A Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores, por exemplo, agora se enquadra no Dicastério para a Doutrina da Fé, resolvendo uma crise de identidade enervante, na qual algumas pessoas tentavam transformá-la em um veículo para responsabilizar o papa perante os grupos de vítimas. Isso significava que ela era mantida à distância pela Cúria, enfraquecendo-a. Agora, ela terá um peso real junto com um grau de autonomia.

Nas finanças, há agora uma saudável distância entre os órgãos que as administram e aqueles que as responsabilizam – e sofisticados mecanismos de supervisão para detectar irregularidades.

Finalmente, toda a operação foi simplificada para evitar inchaço e duplicação. Além da Secretaria de Estado, quatro “órgãos” de justiça, seis de finanças e três escritórios para administrar a casa e as liturgias do papa, a Praedicate Evangelium reduziu as 21 congregações e conselhos de João Paulo II para 16 dicastérios juridicamente iguais, com responsabilidades claramente distintas, ajudando a evitar disputas de território e permitir maior colaboração e corresponsabilidade “interdicasterial”.

 

Visão da Igreja

 

Mas a verdadeira força da Praedicate Evangelium – o seu poder evangelizador – está em sua visão da Igreja, extraída da Evangelii gaudium e dos Atos dos Apóstolos. O preâmbulo nos recorda que o mandato de Cristo de pregar o Evangelho é a primeira tarefa da Igreja, e que ela faz isso testemunhando a misericórdia recebida por meio de atos e palavras de serviço humilde: tocando a carne sofredora de Cristo nos pobres e doentes.

Para possibilitar esse testemunho, a Igreja é chamada a uma conversão missionária, com a qual a reforma da Cúria Romana contribui, harmonizando o trabalho diário do Vaticano com aquele chamado mais amplo para evangelizar que Francisco acredita que Deus está fazendo agora à Igreja.

Daí o novo ranking dos dicastérios. Se São João Paulo II colocou a Congregação para a Doutrina da Fé em primeiro lugar, Francisco colocou em primeiro lugar o Dicastério para a Evangelização, com ele mesmo à sua frente. O Dicastério da Fé vem em segundo lugar, seguido pelo novo Dicastério para o Serviço da Caridade, porque o Evangelho é pregado tanto em palavras quanto em ações. Os outros dicastérios seguem sem uma ordem particular: para as Igrejas Orientais; para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos; das Causas dos Santos; para os Bispos; para o Clero; para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica; para os Leigos, a Família e a Vida; para a Promoção da Unidade dos Cristãos; para o Diálogo Inter-Religioso; para Cultura e a Educação; para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral; para os Textos Legislativos; e para a Comunicação.

A novidade aqui é uma discreta, mas definitiva mudança teológica e eclesiológica. A Pastor bonus concentrava quase todos os parágrafos da sua introdução no auxílio da Cúria ao papa na sua tarefa de preservar a unidade de fé e a disciplina. A comunhão, na constituição de São João Paulo II, é idêntica à unidade, descrita como “um tesouro precioso a ser preservado, defendido, protegido e promovido”. Esse é o ministério primeiro, o telos do Sumo Pontífice e, portanto, da Cúria.

Na Praedicate Evangelium, ao contrário, a comunhão não é o objeto dos esforços da Cúria, mas sim a vida possibilitada pela autodoação de Cristo, que a Cúria testemunha pela sua cultura interna. A comunhão “doa à Igreja o rosto da sinodalidade: isto é, uma Igreja da escuta recíproca, na qual todos têm algo a aprender. Povo fiel, Colégio episcopal, Bispo de Roma: um à escuta dos outros, e todos à escuta do Espírito Santo... para conhecer aquilo que Ele diz às Igrejas”.

Essa diferença importa. A Cúria não é um instrumento de poder pelo qual o papa unifica a Igreja por meio dos seus esforços, mas sim um testemunho da comunhão de vida da Igreja possibilitada pelo Espírito Santo. É uma mudança da confiança no poder humano para a receptividade ao Espírito, de uma Igreja vertical de comando e controle para uma na qual a autoridade é serviço.

É uma Igreja sinodal de escuta mútua e reciprocidade, na qual todos participam, seja qual for o seu estado de vida, sob a orientação do Espírito, segundo o modelo da Igreja primitiva. Francisco é explícito sobre esse modelo: a finalidade da renovação da Igreja e, portanto, da Cúria Romana é permitir que “a comunidade dos crentes possa se aproximar o máximo possível da experiência de comunhão missionária vivida pelos Apóstolos com o Senhor durante a sua vida terrena e, depois de Pentecostes, sob a ação do Espírito Santo, pela primeira comunidade de Jerusalém”.

Uma Cúria Romana sinodal, marcada pela reciprocidade e pela participação, impulsionada pelo Espírito para a missão, dedicada ao serviço, segundo o modelo dos Atos? Não seria um milagre? Esse pensamento pode ter ocorrido ao Papa Francisco, pois a nova constituição entra em vigor no dia 5 de junho, solenidade de Pentecostes. Talvez naquela data possamos nos permitir abrir algumas garrafas e finalmente deixar os tambores rufarem.

 

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