Papa Francisco: “A guerra é o sinal mais claro da desumanidade”

Foto: Vatican News

18 Outubro 2022

 

"À rejeição explícita de meus predecessores, os eventos das duas primeiras décadas deste século me obrigam a acrescentar, sem ambiguidade, que não existe ocasião em que uma guerra possa ser considerada justa. Nunca há espaço para a barbárie bélica. Muito menos quando a disputa adquire um dos seus aspectos mais iníquos: aquele das chamadas “guerras preventivas".

 

A reportagem é publicada por Il Sismografo, 16-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Trechos do livro do Papa “Peço em nome de Deus”, na livraria a partir da próxima terça-feira, uma antologia de reflexões do Pontífice fruto das conversas com o jornalista argentino, correspondente da Télam, Hernán Reyes Alcaide.

 

Vi chiedo in nome di Dio. Dieci preghiere per un futuro di speranza

 

Em nome de Deus, peço que se pare a loucura da guerra

Papa Francisco

 

Mais de dois mil anos atrás o poeta Virgílio deu forma a este verso: "A guerra não salva!" É difícil acreditar que desde então o mundo não tenha tirado ensinamentos da barbárie que habita os conflitos entre irmãos, compatriotas e países. A guerra é o sinal mais claro da desumanidade.

 

Esse grito sincero ainda ressoa. Durante anos não prestamos atenção às vozes de homens e mulheres que se desdobravam para acabar com todos os tipos de conflitos armados. O Magistério da Igreja não poupou palavras ao condenar a crueldade da guerra e, durante os séculos XIX e XX, os meus predecessores a definiram "um flagelo" que "nunca" pode resolver os problemas entre as nações; afirmaram que sua explosão é um "massacre inútil" com o qual "tudo pode ser perdido" e que, em última análise, "é sempre uma derrota da humanidade". Hoje, enquanto peço em nome de Deus que se coloque um fim à loucura cruel da guerra, também considero sua persistência entre nós como o verdadeiro fracasso da política.

 

A guerra na Ucrânia, que colocou a consciência de milhões de pessoas no centro do Ocidente diante da crua realidade de uma tragédia humanitária que já existe há tempo e simultaneamente em vários países, nos mostrou a maldade do horror bélico. No século passado, em apenas trinta anos, a humanidade enfrentou a tragédia de uma guerra mundial duas vezes. Ainda há pessoas entre nós que carregam os horrores daquela loucura fratricida gravada em seus corpos. Muitos povos levaram décadas para se recuperar das ruínas econômicas e sociais provocadas pelos conflitos. Hoje estamos assistindo a uma terceira guerra mundial em pedaços, que, no entanto, ameaçam se tornar cada vez maiores, até assumir a forma de um conflito global. […]

 

"À rejeição explícita de meus predecessores, os eventos das duas primeiras décadas deste século me obrigam a acrescentar, sem ambiguidade, que não existe ocasião em que uma guerra possa ser considerada justa. Nunca há espaço para a barbárie bélica. Muito menos quando a disputa adquire um dos seus aspectos mais iníquos: aquele das chamadas “guerras preventivas". A história recente deu-nos exemplos, até mesmo de "guerras manipuladas", em que se criaram falsos pretextos e falsificaram-se provas para justificar ataques a outros países. Por isso peço às autoridades políticas colocar um freio às guerras em curso, não manipular as informações e não enganar os seus povos para atingir objetivos bélicos.

 

A guerra nunca é justificada. De fato, nunca será uma solução: basta pensar no poder destrutivo dos armamentos modernos para imaginar quão altos são os riscos de que tal disputa desencadeie confrontos mil vezes superiores à suposta utilidade que alguns veem neles.

 

A guerra também é uma resposta ineficaz: nunca resolve os problemas que pretende superar. Por acaso o Iêmen, a Líbia ou a Síria, para citar alguns exemplos contemporâneos, estão melhores do que antes dos conflitos?

 

Se alguém pensa que a guerra possa ser a resposta, é porque erra as perguntas. O fato de hoje nos encontrarmos presenciando conflitos armados, invasões ou ofensivas relâmpago entre países manifesta a falta de memória coletiva. Talvez o século XX não tenha nos ensinado o risco que toda a família humana corre diante da espiral bélica?

 

Se realmente estamos todos comprometidos em acabar com os conflitos armados, vamos manter viva a memória para que possamos agir a tempo e detê-los quando estiverem em gestação, antes que explodam com o uso da força militar. E para isso é preciso diálogo, negociações, escuta, habilidade diplomática e criatividade, e uma política clarividente capaz de construir um sistema de convivência que não seja baseado no poder das armas ou na dissuasão.

 

E como a guerra "não é um fantasma do passado, mas tornou-se uma ameaça constante" (carta encíclica "Fratelli tutti", 256), volto a relembrar o escritor Elie Wiesel, sobrevivente dos campos de extermínio nazistas, que dizia que hoje é imprescindível realizar uma "transfusão de memória" e convidava a tomar alguma distância do presente para ouvir a voz de nossos antepassados. […]

 

Vejo contradição entre aqueles que reivindicam suas raízes cristãs, mas depois fomentam conflitos bélicos como formas de resolver interesses partidários. Não! Um bom político deve sempre almejar a paz; um bom cristão deve sempre escolher a via do diálogo. Se chegamos à guerra é porque a política fracassou. E toda guerra que estoura também é um fracasso da humanidade. […]

 

É necessário que todos juntos abramos o caminho para uma esperança comum. Todos podemos e devemos participar nesse processo social de construção da paz. Começa em cada uma de nossas comunidades e eleva-se como um grito às autoridades locais, nacionais e mundiais. Na verdade, é deles que dependem as iniciativas apropriadas para parar a guerra. E a eles, fazendo este meu pedido em nome de Deus, peço também que se diga um basta à produção e comércio internacional de armas. O gasto mundial em armamentos é um dos mais graves escândalos morais da época atual. Manifesta, além disso, quanta contradição existe entre falar de paz e, ao mesmo tempo, promover ou permitir o comércio de armas.

 

É ainda mais imoral que países entre os chamados desenvolvidos às vezes fechem as portas às pessoas que fogem das guerras por eles mesmos promovidas vendendo armas. Isso também acontece aqui na Europa e é uma traição ao espírito dos pais fundadores.

 

A corrida armamentista é a prova do esquecimento que pode nos invadir. Ou, pior ainda, da insensibilidade. Em 2021, em plena pandemia, os gastos militares mundiais ultrapassaram pela primeira vez US$ 2.000 milhões. Quem fornece esses dados é um importante centro de pesquisa em Estocolmo, e eles nos mostram que para cada 100 dólares gastos no mundo, 2,2 foram destinados às armas.

 

Com a guerra há milhões de pessoas que perdem tudo, mas também poucas que ganham milhões. É desanimador até mesmo suspeitar que muitas das guerras modernas são travadas para promover armas. Isso não pode continuar. Peço aos responsáveis pelas nações, em nome de Deus, que assumam o compromisso resoluto de pôr um fim ao comércio de armas que causa tantas vítimas inocentes. […]

 

Legal ou ilegal, em larga escala ou nos supermercados, o comércio de armas é um grande problema difundido em todo o mundo. Seria bom que esses debates tivessem mais visibilidade e que se buscasse consensos internacionais para que, em nível global, fossem impostas restrições à produção, comercialização e posse desses instrumentos de morte.

 

Quando falamos de paz e segurança mundial, a primeira organização em que pensamos é a das Nações Unidas (a ONU) e, em particular, seu Conselho de Segurança. A guerra na Ucrânia evidenciou mais uma vez a necessidade de que o atual arranjo multilateral encontre formas mais ágeis e eficazes de resolver conflitos.

 

Em tempos de guerra é essencial defender que precisamos de mais multilateralismo e de um multilateralismo melhor. […]

 

Ficou mais do que claro o quanto são necessárias essas reformas após a pandemia, quando o atual sistema multilateral mostrou todas as suas limitações. Da distribuição das vacinas tivemos um exemplo claro de como às vezes a lei do mais forte pesa mais que a solidariedade. Portanto, prospecta-se uma oportunidade imperdível para pensar e realizar reformas orgânicas, visando fazer com que as organizações internacionais recuperem sua vocação essencial de servir a família humana, cuidar da casa comum e proteger a vida de cada pessoa e a paz. […]

 

Nenhum arcabouço legal pode sustentar-se sem o compromisso dos interlocutores, a sua disponibilidade para uma discussão leal e sincera, a vontade de aceitar as inevitáveis concessões que surgem do diálogo entre as partes. Se os países membros desses órgãos não demonstrarem vontade política para fazê-los funcionar, estamos diante de um evidente retrocesso. Vemos, no entanto, que preferem impor suas ideias ou interesses de forma muitas vezes precipitada. […]

 

Somente se aproveitarmos a oportunidade pós-pandemia para redirecionar esses organismos poderemos criar instituições com quem enfrentar os grandes e cada vez mais urgentes desafios que temos pela frente, como as mudanças climáticas ou o uso pacífico da energia nuclear. Nesse sentido, assim como em minha carta encíclica Laudato si' exortei a promover uma "ecologia integral", da mesma forma acredito que o debate sobre a reestruturação das organizações internacionais deve ser inspirado no conceito de "segurança integral". Ou seja, não mais limitado aos cânones dos armamentos e da força militar, mas consciente do fato de que em um mundo que atingiu um nível de interconexão como o atual, é impossível ter, por exemplo, uma efetiva segurança alimentar sem segurança ambiental, sanitária, econômica e social. […]

 

Diante de tal cenário, nos perguntamos: quem possui esses armamentos? Que controles existem? Como pode ser contida a lógica que se alicerça no acúmulo de ogivas nucleares para fim de dissuasão?

 

[...] Nesse contexto, faço minha a condenação de São Paulo VI a esse tipo de armamento, que depois de mais de meio século não se tornou menos atual: "As armas, especialmente aquelas terríveis, que a ciência moderna vos deu, antes mesmo de produzir vítimas e ruínas, geram sonhos ruins, alimentam sentimentos ruins, criam pesadelos, desconfianças e intenções tristes, exigem enormes despesas, interrompem projetos de solidariedade e trabalho útil, distorcem a psicologia dos povos”.

 

Não há motivos para ficar condenados ao terror da destruição atômica. Podemos encontrar maneiras que não nos deixem pendurados por um fio a uma iminente catástrofe nuclear causada por poucos. Forjar um mundo sem armas nucleares é possível, desde que tenhamos a vontade e os instrumentos; e é necessário, dada a ameaça que esse tipo de armamento representa para a sobrevivência da humanidade.

 

Ter armas nucleares e atômicas é imoral. Quem pensa que elas são um atalho mais seguro para o diálogo, o respeito e a confiança, ou os únicos caminhos que levariam a humanidade à garantia de uma convivência pacífica e fraterna, está no caminho errado. Hoje é inaceitável e inconcebível que recursos continuem a ser desperdiçados para produzir esse tipo de armas enquanto se perfila uma grave crise que tem consequências na saúde, na alimentação e no clima e para a qual nenhum investimento será suficiente.

 

[…] A existência das armas nucleares e atômicas põe em perigo a sobrevivência da vida humana na Terra. E, portanto, qualquer pedido em nome de Deus para que a loucura da guerra seja contida também inclui um apelo para extirpar esse armamento do planeta. O reverendo Martin Luther King […] expressou isso claramente no último discurso que proferiu antes de ser assassinado: “Não se trata mais de escolher entre violência e não-violência, mas entre não-violência e não-existência”. A escolha cabe a nós. [...]

 

 

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