Chile. Uma constituição feminista pode substituir a de Pinochet. Entrevista com Alondra Vidal Castillo

Fonte: Wikimedia Commons

29 Agosto 2022

 

A histórica manifestação social que abalou o país andino em 2019 e até que a pandemia se impusesse conseguiu traduzir as vozes e demandas das ruas por uma vida digna em um texto constitucional de forte e transversal cunho feminista. Além disso, a própria Convenção Constitucional serviu para dar vigor e organização às forças políticas que estavam dispersas, como os próprios feminismos ou os povos originários. Alondra Vidal Castillo foi representante dessas forças como integrante da Coordenadoria Feminista 8M e nesta entrevista explica porque a “aprovação” é fundamental para seguir o caminho aberto nas praças.

 

A entrevista é de Camila Baron, publicada por Página/12, 26-08-2022. A tradução é do Cepat.

 

“Nós, povo do Chile, formado por várias nações, nos outorgamos livremente esta constituição, concertada num processo participativo, paritário e democrático”. Assim começa a proposta de Constituição Política que terminou de ser redigida há três meses e que de lá para cá tem sido lida e debatida em todo o território chileno.

 

É a primeira constituição com participação paritária do mundo. Das 77 eleitas, 47 se definem como feministas. Diz-se também, em voz baixa e com orgulho, que se trata de uma constituição (em minúsculas), nascida com o bom sinal que implicam os erros ortográficos quando a linguagem correta é a do colonizador, escrita sem pretensões de alto escalão, com a participação dos povos originários e com um horizonte claro: desarmar a arquitetura neoliberal-colonial e abrir as possibilidades para um novo modelo econômico e social.

 

No dia 4 de setembro, as e os chilenos terão que escolher entre as opções Aprovo ou Rejeito. Mais uma vez um plebiscito marcará um marco na história chilena. Foi um plebiscito, em 1988, o instrumento com que disseram NÃO à continuidade do ditador Augusto Pinochet no poder. Assim começou a chamada transição para a democracia. Uma transição lenta, retardada pelo peso da constituição de 1980, redigida pela junta militar com o apoio incondicional dos economistas ideólogos do neoliberalismo que tomaram o Chile como laboratório de operações.

 

Já se passaram três anos desde as mobilizações de outubro de 2019 que começaram com o slogan “não são 30 pesos, são 30 anos”. Nesse período, rompeu-se a aparente calma de um povo que se acreditava reduzido a um consumidor soberano e que, em vez disso, passou à discussão de como conquistar o direito de viver em paz e como fazer da dignidade um hábito. Foram três décadas de aborrecimentos com uma democracia fedorenta, como diria Lemebel; uma democracia dedicada à administração da precarização da vida, como dirão as feministas. Foram cinco décadas, se voltarmos ao início da ditadura. Quinhentos anos se contestarmos também a herança colonial.

 

Em maio de 2021, um ano e meio após o início das manifestações, houve eleições para a escolha dos membros da Convenção Constituinte (CC). Além dos partidos políticos, foram criadas listas de candidatos independentes. 155 constituintes foram eleitos por voto direto. A esmagadora maioria era constituinte em todos os sentidos do termo: chegaram à assembleia constituinte pessoas comuns. Las12 conversou com uma delas, Alondra Vidal Carillo, porta-voz constituinte da Assembleia Distrital 12 e da Coordenadoria Feminista 8M e integrante dos Movimentos Sociais Constituintes.

 

Eis a entrevista.

 

Como foi o processo para chegar à constituinte depois das manifestações de rua? Como você o vivenciou dentro da Coordenadoria 8M?

 

O Acordo pela Paz Social e a Nova Constituição foi assinado em 15 de novembro de 2019, entre o governo Piñera e parte da oposição daquele momento em plenas manifestações. Nós como Coordenadoria 8M, junto com praticamente todas as organizações do movimento social, saímos com a mesma posição: de crítica desse acordo, que apontamos como um acordo de impunidade e que, além disso, buscava limitar o processo constituinte. Fizemos uma convocatória para superar aquele acordo e manter as manifestações ativas, o que aconteceu.

 

No dia 8 de março de 2020 aconteceu a última grande mobilização das manifestações e mostrou que a manifestação ainda estava aberta e que era eminentemente uma manifestação feminista. Depois veio a pandemia. Todas as organizações sociais tiveram que recuar e se dedicar às tarefas que essa situação sanitária impunha: enfrentar a militarização do espaço público e a situação sanitária, e adiamos a discussão sobre o itinerário institucional que havia sido imposto. Já estavam definidas algumas novidades que o processo teria, como a paridade, a presença de vagas reservadas para os povos originários e o que seria a nossa porta de entrada para esse processo: as listas de independentes.

 

Como a Coordenadoria Feminista 8M se organizou para participar?

 

Tivemos um longo processo de debate político interno. Foram 5 assembleias nas quais debatemos como enfrentar o cenário institucional proposto e tomamos a decisão de nos desdobrar simultaneamente em duas frentes: um processo constituinte de nós mesmos como povo, como sujeitos políticos; e no nível constitucional em que a convenção constitucional iria ocorrer. Decidimos fazer este último por meio de listas independentes do movimento social expressivas das manifestações que pudessem trazer nossas próprias vozes para a convenção constitucional, sem delegá-las a outros setores. Trazendo-as para defender esse programa aqui dentro. Foi assim que chegamos até aqui e concorremos às eleições.

 

O que implicava esse processo constituinte “como povo”, diferente do processo “constitucional”, que as converteria em representantes desse povo?

 

Continuou como um exercício de articulação política e programática que ocorreu para definir os conteúdos constitucionais que disputamos. Articulou-se através de iniciativas populares de norma feminista como “Será lei” que chegou aqui através da articulação da Assembleia Permanente pela Legalização do Aborto, que permite que a legislação sobre os direitos sexuais e reprodutivos e o direito ao aborto tenha sido a primeira lei popular na obtenção de adesões a ser discutida pela convenção. As iniciativas que buscam proteger nosso direito a uma vida livre de violências, sobre o direito à educação, à saúde e à moradia. Eles significaram um imenso trabalho, por exemplo, de centenas de comitês de moradia em todo o país. É uma tarefa que está em aberto e terá como um de seus momentos decisivos a articulação social e política diante do próximo plebiscito. E enfrentar mais tarde esse longo processo histórico de implementação, para criar a realidade palpável que advém desse processo.

 

Pode nos dizer em que consistiu o Programa Feminista contra a Precarização da Vida? Como foi gerido?

 

É um esforço do movimento feminista. Tem sua primeira versão no I Encontro Plurinacional de Mulheres Lutadoras em 2018. Decidimos construir um programa porque íamos organizar a greve geral feminista para o 8M e sabíamos que seria uma das maiores mobilizações da história do nosso país, e não queríamos que mais ninguém falasse por nós, que fossemos nós mesmas a fazer todo esse esforço de articulação e mobilização social e que outros depois dissessem por que nos manifestamos.

 

O programa contou com 10 eixos temáticos que foram desenvolvidos em encontros plurinacionais subsequentes. Foram traduzidos em 3 níveis: constitucional, geral e imediato ou urgente. Foi o que mais tarde nos orientou dentro da convenção. O programa transversaliza o feminismo dentro do movimento social. É um programa de síntese do programa do movimento social. Foi uma parte inevitável da discussão de direitos sociais em geral. Defendemos o programa com outras companheiras feministas que inicialmente criaram um espaço: a plataforma feminista constituinte plurinacional, que não chegou ao fim do processo.

 

Que balanço fazem do que restou do texto?

 

O texto tem uma transformação que é muito típica do movimento feminista que construímos internacionalmente nos últimos tempos, que é a transversalidade. O feminismo não é um capítulo, não é uma lei, não é uma seção, não é um título. O feminismo está presente em todo o texto constitucional. Dá conta desse poder que se inaugura neste momento do movimento feminista de massa. Algumas dessas normas constitucionais são a democracia paritária que estabelece que em todos os órgãos colegiados do Estado, nossa presença seja pelo menos a metade. Garante também (porque a perspectiva que defendemos é transfeminista) a representação de identidades e dissidências e diversidades sexuais e de gênero.

 

Os direitos sexuais e reprodutivos estão consagrados como norma constitucional, incluindo expressamente a interrupção voluntária da gravidez, e o direito à proteção da maternidade, da gravidez e o direito de explorar a sexualidade na perspectiva do prazer. Todas questões que estão consagradas como norma constitucional. Os padrões habitacionais também foram criados por comitês feministas pela moradia e revelam que uma moradia digna e adequada deve ter espaço doméstico e comunitário suficiente para a produção e reprodução da vida. Também que qualquer política habitacional deve considerar a construção de abrigos para mulheres em situação de violência de gênero.

 

A legislação sobre trabalho e seguridade social acabou com a disparidade salarial na perspectiva de consagrar os direitos sexuais e reprodutivos no local de trabalho. E reconhece o trabalho doméstico e de cuidados como socialmente necessário para a vida em geral, como uma atividade econômica que deve ser considerada pelo Estado como parte das contas nacionais para o planejamento de políticas públicas, que devem ser redistribuídas por meio de um sistema de atenção integral que faça parte da seguridade social do país. Essas são algumas leis que dão conta da enorme capacidade do movimento feminista de se manter consagrado em suas perspectivas programáticas ao longo de toda a constituição.

 

Você acha que o texto da nova constituição dá um norte para um novo modelo econômico?

 

Acima de tudo, há uma mudança no papel do Estado. Teremos um Estado empresarial que tenha iniciativa econômica, que era o que estava proibido no Chile desde a constituição de 1980. E, além disso, teremos o estabelecimento de uma política tributária progressiva que visa explicitamente a redução da desigualdade. No entanto, chegamos a esse processo com uma contradição muito forte, própria da organização econômica de nosso país e das formas de mobilização social que produzem seus efeitos.

 

Nós temos um forte movimento socioambiental em um país cuja economia é determinada pela extração intensiva de recursos naturais para exportação para o mercado mundial. Essa contradição tornou impossível resolver neste processo constituinte como iríamos enfrentar uma política econômica pós-extrativista. Ficaram estabelecidos limites para a atividade extrativista: limites ecológicos, zonas de proteção ecológica para a mineração, ficaram estabelecidos os direitos da natureza, mas a questão de como vamos passar de uma economia rentista para uma pós-extrativista, capaz de articular um horizonte de socialização da riqueza e não da pobreza para a maioria da população, é uma questão em aberto que nosso povo terá que enfrentar diante do que está por vir.

 

Como se deu essa discussão sobre o extrativismo dentro da Assembleia Constituinte?

 

Na constituinte também houve uma discussão com setores ambientais que são da direita. Que diziam coisas, tais como: que as nacionalizações são inúteis, “para que serve a nacionalização da mineração se a mineração polui? Por que não trazemos o Google? Por que não fazemos criptomoedas?”. São pessoas com muito dinheiro, setores independentes liberais (Independentes Não Neutros). Os verdadeiros setores ecológicos vêm representando outra realidade, de empobrecimento em decorrência da atividade extrativista. Propuseram, por exemplo, a “econacionalização”.

 

Os setores dos partidos (especialmente o Partido Socialista) se recusaram a introduzir um quadro de insegurança jurídica em relação aos investimentos econômicos que ocorrem no Chile. Quanto aos termos da nacionalização, decidiram não alterar a concessão para administração de uso para título administrativo, no caso das mineradoras privadas. Ou que seja estabelecido um percentual mínimo de participação do Estado na atividade extrativa. Foram muitos os vetores de resistência que se cruzaram e que terminaram na impossibilidade de consagrar uma norma transformadora nesta matéria.

 

Como foi o debate sobre o cuidado dentro do movimento feminista? Houve a formação de uma rede feminista pelos cuidados. Quais foram as discussões?

 

Discutimos sobre o cuidado nos encontros plurinacionais das mulheres e dissidências que lutam (houve vários nomes nas tentativas de nomeá-lo). Houve uma discussão teórico-acadêmica, outra política. O que chegou foi a definição mais transversal do que construímos. Houve uma discussão sobre se colocávamos como lei que o trabalho doméstico e de cuidados cria valor. Deixamos como sendo uma atividade econômica, porque o estatuto conceitual de valor é uma discussão aberta dentro do movimento feminista. Discutimos se o Sistema Integral deveria ser comunitário e plurinacional. Na perspectiva de outras companheiras, essa ideia de um sistema plurinacional/comunitário de atenção não foi necessariamente processada.

 

Como foi a estratégia para conquistar essas posições?

 

A oposição, o setor da direita que defende a constituição de 1980, tinha uma representação que não permitia encerrar nenhuma discussão ou negar qualquer política. Foi inferior a 25%. Embora seja necessário um quórum muito alto, 2/3 da maioria em exercício, compensamos isso com setores progressistas graças à decisão do voto popular. Portanto, ninguém precisava ser convencido. O que tinha que ser feito era chegar a um acordo entre as feministas de todos esses vários setores progressistas sobre como construiríamos a lei e como iríamos declará-la. Ali as organizações de cuidadoras tiveram o principal protagonismo. Uma delas é representada por Mariela Serey, constituinte, ela mesma cuidadora, parte fundamental da redação da lei.

 

Embora seja verdade que um setor da direita que não entende o Sistema de Cuidados (acreditam que “o Estado deve pagar as empregadas domésticas” – disseram isso em termos inclusive ainda mais brutais durante os debates) é irrelevante para a consagração das leis constitucionais pelo seu peso democrático e porque elas mesmas decidiram retirar-se do debate democrático.

 

A paridade fez com que onze mulheres tivessem que renunciar às suas cadeiras porque foi lida como um teto. Existe alguma particularidade com as mulheres representantes da direita que entraram e que também contam na hora da paridade?

 

Acredito que, pela composição da assembleia constituinte, esse setor não teve um papel no debate. Além das posições, que podemos imaginar: idealizar o trabalho da maternidade, não considerá-lo um trabalho e rir-se dessa consideração. Elas acreditam que é uma aspiração infundada. Acham que queremos expandir a burocracia estatal. No entanto, seu papel foi imperceptível nesse debate. Houve também um setor da direita que demonstrou um genuíno interesse. Por exemplo, nunca tinham ouvido falar do conceito de cuidado. E estavam abertas e abertos para apropriar-se dele.

 

Como continua o trabalho dos constituintes depois de encerrado o texto?

 

Será uma das disputas políticas mais duras e difíceis no Chile que vai recair sobre o movimento popular. Há um setor que rejeitou esse processo e decidiu desde o início se organizar para a rejeição. Eles sabem que tudo está em jogo. Nós, constituintes, vamos partilhar as boas notícias que temos sobre o trabalho constitucional que foi desenvolvido com todas as pessoas do nosso país. Falar especialmente com as mulheres para contar-lhes tudo o que conquistamos. O produto da primeira constituinte paritária da história da humanidade. Uma parte importante do futuro será decidida neste 4 de setembro.

 

Houve pessoas que ficaram desencantadas após o acordo de paz. Que diálogo estabelecem com esses setores? Como é o diálogo para construir a aprovação também dentro dos movimentos sociais?

 

Uma coisa é a posição em que alguns setores ficaram depois de 15 de novembro, e outra é a posição assumida pela grande maioria dentro do movimento social em relação ao processo constituinte. Nós tentamos manter amplos espaços de articulação social. Tanto os que estão dentro quanto os que estão fora da convenção para poder articular e tecer esse trabalho político diante da abertura do próximo momento.

 

Você se refere, por exemplo, a assembleias que foram realizadas?

 

Sim. Entramos com a Assembleia Distrital 12 que se reunia semanalmente para debater, posicionar e ordenar minhas posições aqui dentro em relação ao debate constitucional. Com as assembleias que não tinham representante, houve diferentes esforços de coordenação para manter o canal de comunicação aberto. Faço parte dos Movimentos Sociais Constituintes. Agora nossa tarefa é fazer um balanço disso. Agrupar-nos para realizar as tarefas com a maior capacidade e poder possíveis para 4 de setembro. Há uma profunda dispersão e fragmentação em nosso país do movimento social e das forças transformadoras. Esta convenção serviu para dar a essas forças um lugar e uma voz no cenário público nacional. Mas a verdade é que é uma novidade para o nosso país, onde as forças políticas sempre foram as mesmas que se dedicaram a administrar o legado neoliberal e a tradição pinochetista.

 

A constituinte serviu para a articulação desses movimentos dispersos? Existe um cumulativo para o restante do processo?

 

Sim. Temos diante de nós a tarefa de ter um sujeito que diga: “isso tem que ser traduzido em leis e essas leis têm que ter esse conteúdo”- é isso que tem que ser alcançado. Conseguimos um processo de articulação que não pode retroceder, tem que se aprofundar. As articulações que se rebelaram têm absoluta clareza sobre o que está em jogo no dia 4 de setembro. A questão que ainda está em aberto é o que vem a seguir.

 

 

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