Um passo do ponto sem retorno? Artigo de Alessandro Castegnaro

Resistência ucrfaniana | Foto: Reprodução do Facebook de Volodymyr Zelensky

10 Mai 2022

 

"Surgem questões difíceis: em que medida e em que países europeus está presente a consciência que Habermas e Morin acenam?", pergunta Alessandro Castegnaro, do Observatório Sociorreligioso do Triveneto, em artigo publicado por Settimana News, 04-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini

 

Eis o artigo. 

 

Como vocês certamente veem, os termos do conflito em curso estão se tornando cada vez mais explícitos e preocupantes. Ao mesmo tempo, a opinião pública italiana não parece ser posta em condições de perceber o que está acontecendo.

 

A crise dos mísseis cubanos e a crise ucraniana

 

A situação, deste ponto de vista, é muito diferente da que foi vivida na época da crise dos mísseis cubanos (1962). Lembro-me claramente, embora eu fosse apenas um garoto entrando na adolescência. Ao colocar um ultimato aos russos, o presidente Kennedy havia informado ao mundo que se os navios carregados de mísseis continuassem sua rota para Cuba, isso não seria aceito e desencadearia uma guerra que os EUA não haviam buscado, mas que também não recusariam.

 

Nos dias em que expirava o ultimato, todos, até nós, garotos, ficávamos grudados no rádio até o momento em que se soube que os navios russos estavam invertendo o curso.

 

Aliás: fiquei impressionado com a resposta dada pela neta de Khrushchev, que atualmente vive nos Estados Unidos e ensina relações internacionais em Nova York, a uma pergunta sobre as diferenças entre a situação de hoje e a de então. A Sra. Krusciova vê duas diferenças, ambas desfavoráveis no contexto atual: “Kennedy e meu avô conversavam entre si; Kennedy era menos ideológico que Biden."

 

Hoje, no entanto, as pessoas ficam no bar, tomando seu aperitivo, esperando que finalmente se chegue ao fim das máscaras contra o covid, tentam planejar suas férias nem sempre com sucesso e se preocupam com a alta no custo de vida. Não parecem muito cientes dos riscos que estamos correndo, nem os líderes e nem governantes políticos fazem muito para aumentar tal conscientização. Basta ver a falta de repercussão da entrevista com Enrico Letta no Il Manifesto de 30 de abril, para citar uma das melhores figuras de líderes em circulação.

 

Justamente nestes dias, como para interromper essa inocente sonolência, surgiram poderosas solicitações de dois grandes da filosofia europeia, Edgar Morin e Jürgen Habermas, de quem eu sinceramente estava no aguardo, que penso que seria bom ouvir e de quem quero falar aqui, apresentando-as com uma premissa sobre Biden.

 

 

O pedido de Biden

 

Um fato chamou minha atenção nos últimos dias e imagino também a vossa. Biden pediu ao Congresso a liberação de 33 bilhões de dólares (dos quais 20 para armamentos) para ajudar a Ucrânia e derrotar Putin. Se pensarmos que até agora os estadunidenses gastaram apenas um décimo desse valor, entende-se que o pedido de Biden visa deslocar a escala dimensional do conflito para outro nível. Não parece haver muitas objeções a esse pedido no Capitólio, mesmo do lado republicano, e o presidente está pressionando para que os fundos sejam disponibilizados ainda no mês de maio.

 

Enquanto isso, Biden está pressionando os aliados europeus a participar do esforço com recursos proporcionais para integrar o esforço estadunidense. Para a Itália, isso significaria cerca de 3 bilhões, o que obviamente não desperta excessivos entusiasmos. Afinal, são os europeus que sofrem as consequências mais pesadas das sanções.

 

Mas a questão vai muito além dos custos. Trata-se da disponibilidade dos europeus em seguir o caminho implícito no pedido de Biden no congresso e, em certo sentido, a própria possibilidade de segui-lo ou não. Em outras palavras, os europeus estão em condições de discutir a orientação estadunidense e eventualmente algum deles pretende fazê-lo?

 

No início do conflito, Biden havia dito que os Estados Unidos ajudariam a Ucrânia, mas de maneiras tais (recusa da “zona de exclusão aérea”, sem envio de soldados) a evitar que uma terceira guerra mundial estourasse. Formalmente essas condições são respeitadas ainda hoje, mas se levarmos em conta a dimensão para a qual se orienta o empenho estadunidense, é fácil entender que os EUA pretendem entrar com tudo no conflito, modificando substancialmente seus equilíbrios em favor da Ucrânia e dos ocidentais. É um caso clássico em que uma mudança quantitativa produz uma mudança qualitativa.

 

Disso há obviamente consciência naqueles comentaristas russos que se fazem passar - quem sabe se o são - como consultores do Kremlin, que veem na determinação dos ocidentais uma tentativa de reduzir a estatura internacional da Rússia e falam explicitamente de um conflito com a OTAN.

 

Ao mesmo tempo, apesar das dificuldades encontradas, eles parecem convencidos de estar em condições de vencer e, mais ainda, de que não podem perder, custe o que custar. Se tivessem que ser colocados em condições de sofrer uma derrota, portanto, isso se deveria ao empenho exorbitante dos países da OTAN e naquele ponto a reação dos russos não poderia excluir "nada", visto que, com toda evidência, a OTAN teria se tornado uma força beligerante. Afinal, o próprio Putin falou da possibilidade de uma resposta "imediata e fulminante" caso determinadas condições fossem estabelecidas.

 

A intervenção de Habermas

 

No dia 28 de abril, o filósofo Jürgen Habermas, agora com 92 anos, publicou um longo e importante artigo no Süddeutsche Zeitung intitulado “Guerra e indignação” [em tradução livre]. Como muitos de nós sabemos, Habermas nunca deixa de opinar sobre os desdobramentos fundamentais da história europeia e muitas vezes suas palavras nos pareceram esclarecedoras. Também nesta ocasião parece-me que nos permitem dar um passo em frente na compreensão do que está acontecendo, e acrescento um preocupante passo em frente.

 

Um detalhe: talvez de forma não casual a imprensa italiana quase não falou sobre o artigo de Habermas, exceto por dois resumos bastante obscuros que apareceram no Domani e no Huffington Post.

 

A síntese que proponho baseia-se em uma tradução do inglês que Paolo Feltrin gentilmente me enviou.

 

O debate na Alemanha

 

Algumas observações sobre o contexto. Provavelmente porque gostamos das contraposições simples e "absolutas", na Itália o debate se concentrou na alternativa "enviar / não enviar armas para a Ucrânia". Na Alemanha, por outro lado, a discussão, mais séria na minha opinião, ocorreu sobre as modalidades e extensão da assistência militar à Ucrânia.

 

Na República Federal - enfatiza Habermas - desenvolveu-se uma crítica por parte dos "acusadores moralmente indignados", com os quais se diz "incomodado", em relação a um governo federal que, ao contrário, lhe parece positivamente "reservado e prudente".

 

O chanceler federal Olaf Scholz, em entrevista ao Der Spiegel , resumiu assim a linha de cautela seguida: "Estamos enfrentando os terríveis sofrimentos que a Rússia está infligindo à Ucrânia por todos os meios possíveis, sem criar uma escalada incontrolável que causaria sofrimentos imensuráveis em todo o continente, talvez até em todo o mundo"; uma declaração equilibrada, segundo a opinião de Habermas (e minha), que apareceu em sintonia com aquelas iniciais de Biden, mas que hoje parece a alguns, mesmo na Alemanha, moderada demais e capaz de suscitar reações não favoráveis do governo ucraniano, além de muitos liberais estadunidenses.

 

Essas críticas são feitas - observa Habermas - sobretudo por personalidades ex-pacifistas (o caso mais conhecido é a ministra das Relações Exteriores Annalena Baerbock), que não viveram a experiência da guerra fria. Elas "foram arrancados de suas ilusões pacifistas pela realidade completamente nova da guerra" e hoje parecem profundamente indignadas com as evidentes violações de Putin do direito internacional e humanitário.

 

Portanto, manifestou-se na Alemanha, com mais força do que na Itália (algo assim, contudo, também está presente aqui), uma acalorada dialética entre aqueles que “se apressaram com ênfase em assumir a perspectiva de uma nação que luta por sua própria liberdade” e aqueles que, por outro lado, foram educados pela Guerra Fria a uma visão diferente. "Os primeiros só podem ver a guerra pelas lentes da vitória ou da derrota, enquanto os segundos sabem que uma guerra contra uma potência nuclear não pode ser vencida no sentido tradicional da palavra."

 

Posições arriscadas dos ex-pacifistas

 

As "exigências exageradas" dos primeiros aparecem aos olhos de um homem como Habermas, que viveu pessoalmente a Guerra Fria, bem pouco orientadas por considerações de tipo "realistas" e vice-versa "transbordantes de [um] idealismo" que parece cada vez mais colidir com a moderação do governo alemão.

 

Essas pessoas parecem assoberbadas por seu sentimento de indignação e, assim, induzidas a não ver os perigos presentes hoje. Para ele, são posições muito arriscadas tanto estratégica quanto culturalmente.

 

Habermas também parece preocupado neste segundo plano, porque a atitude manifestada por essas pessoas chega a advogar uma "virada histórica na mentalidade alemã" que amadureceu no pós-guerra (uma visão não por acaso sempre contestada pela extrema-direita), orientada para pôr fim àquela predisposição "pró-diálogo e focalizada sobre a manutenção da paz" que a caracterizou.

 

Algo assim também não está ausente entre os italianos e pode ser visto na multiplicação de jornais cada vez mais orientados para uma cultura de guerra, que usam a justificativa da crítica aos pacifistas "absolutos", para orientar aquilo que, em linguagem significativa, se chama de "front interno".

 

 

Um limiar de risco indeterminado

 

Mas a questão decisiva obviamente diz respeito à possibilidade de extensão e de uma escalada do conflito. O Ocidente decidiu - com razão, segundo Habermas - apoiar a resistência ucraniana, mas o fez propondo não intervir no conflito como beligerante. Trata-se de uma escolha "moralmente fundada" de limitação do conflito, da qual, no entanto, surge inevitavelmente a existência de um limiar de risco que "impede um empenho ilimitado no armamento da Ucrânia". Em outras palavras, o Ocidente está diante de uma escolha entre dois males: o risco de escalada para uma terceira guerra mundial e a possibilidade de uma derrota da Ucrânia.

 

O primeiro mal. Por um lado, a Guerra Fria ensinou que "uma guerra contra uma potência nuclear não pode mais ser 'vencida' em nenhum sentido razoável". Portanto, nunca será possível pôr um fim à guerra através de uma vitória plena no campo, mas na melhor das hipóteses "através de um compromisso que permita que ambos os lados salvem a cara".

 

Uma potência nuclear como a Rússia, que não exclui o uso desse tipo de armamento (hipótese acreditada pela própria CIA, observa Habermas), desfruta, portanto, de "uma vantagem assimétrica", porque induz forças como as representadas pela OTAN a não entrar diretamente no conflito.

 

Aqui Habermas faz a pergunta-chave de seu raciocínio: mas então quem pode "decidir quando o Ocidente terá cruzado aquele limiar, além do qual poderá ser considerado o apoio militar à Ucrânia uma verdadeira e própria entrada em guerra"? Só pode ser Putin, responde Habermas com realismo.

 

Ora, a indeterminação desta (sua) decisão “não permite nenhum espaço para especulações arriscadas”. "O Ocidente deve, portanto, pesar cuidadosamente cada grau adicional de apoio militar para avaliar em que condições poderia cruzar aquela fronteira indeterminada", o que levaria ao envolvimento direto na guerra.

 

O segundo mal. Por outro lado, não se pode pensar que o Ocidente seja continuamente chantageado e, assim, induzido a deixar a Ucrânia à sua própria sorte. Porque, nesse caso, futuras chantagens a outros países teriam que ser aceitas e isso nos levaria a um "beco sem saída". Em outras palavras: se nada for feito, aceita-se a política do medo seguida por Putin e termina-se por deixá-lo livre para fazer o que quiser. Também neste caso estamos perante uma situação que nos parece “essencialmente imprevisível”, que, no entanto, deve ser levada em conta nas considerações que antecedem as decisões.

 

 

Não ultrapassar uma assistência militar autolimitada

 

A única possibilidade é que nós possamos dar uma interpretação "do limite que nos autoimpomos" de modo que possa "ser compartilhado também por Putin ". Por outro lado, quem pensa não levar em conta essas considerações assume uma grande responsabilidade. "A retórica bélica é inconsistente quanto às consequências trágicas a que poderia levar", porque não leva em conta adequadamente a imprevisibilidade do adversário.

 

Habermas é, portanto, a favor de uma avaliação sóbria da "assistência militar autolimitada" a ser fornecida à Ucrânia.

 

Há outra dificuldade, que depende das interpretações dadas no Ocidente sobre os motivos que levaram à invasão. Neles prevalece a ideia de um Putin como um excêntrico visionário que sonha com a reconstrução do império. Nesse tipo de leituras não se deveria exceder - observa o filósofo -; elas não ajudam a progredir na busca de uma solução e no mínimo deveriam ser acompanhadas por "uma estimativa racional dos interesses russos".

 

O ponto de vista pacífico e orientado a resolução de conflitos pela via diplomática, que se impôs no pós-guerra na Europa, não implica "a paz a qualquer preço", como gostariam os pacifistas radicais. “O foco em acabar com a destruição, o sofrimento humano e a descivilizarão o mais rápido possível não é sinônimo de disponibilidade de sacrificar uma existência politicamente livre no altar da mera sobrevivência”, mas no contexto da guerra moderna não podemos nos deixar levar pelo idealismo dos princípios. "Não que o criminoso de guerra Putin não mereça ser levado perante o Tribunal Internacional", mas os idealistas deveriam levar em conta o fato de que tal tribunal não é reconhecido nem mesmo pelos EUA e pela China, além pela Rússia, que Putin pode continuar a ameaçar seus adversários com uma guerra nuclear, que ainda tem direito de veto no Conselho de Segurança da ONU, e que, portanto, “o fim da guerra, ou pelo menos um cessar-fogo, ainda deve ser negociado com ele. Não vejo justificativa convincente para as exigências de uma política que - apesar dos sofrimentos excruciantes e cada vez mais insuportáveis das vítimas - colocaria em risco a decisão [inicial] bem fundamentada de não participar desta guerra".

 

Com extrema cautela e prudência. Uma síntese

 

O Ocidente enfrenta um dilema perigosíssimo, que "requer extrema cautela e prudência" (a fórmula é do Frankfurter Allgemeine Zeitung). A Ucrânia deve ser ajudada a "não perder a guerra". Mas como uma potência nuclear não pode realmente ser "vencida", é "com este Putin que a paz, em última instância, terá de ser negociada", uma paz que deverá levar em conta também (não apenas, obviamente) uma compreensão racional dos interesses estratégicos russos.

 

Às perguntas “Como é possível reduzir a oligarquia que comanda na Rússia? Como é possível evitar uma escalada catastrófica da guerra?”, infelizmente não é possível dar respostas ambas positivas, como agradaria a Washington e a todos aqueles que estão justamente enojados com as flagrantes violações dos direitos fundamentais de parte de Putin e dos seus. E uma escolha, em algum momento, terá que ser feita.

 

O erro da OTAN segundo Sachs

 

Dois dias após a publicação do artigo de Habermas, em 1º de maio de 2022, Il Corriere publica uma entrevista com um intelectual bastante conhecido, o economista da Columbia Jeffrey Sachs, especialista em desenvolvimento econômico sustentável e luta contra a pobreza, recentemente nomeado pelo papa como membro da Pontifícia Academia para as Ciências Sociais.

 

Trata-se de uma intervenção muito dura com os Estados Unidos, a quem Sachs atribui graves responsabilidades inclusive sobre o começo da guerra, indo além daquelas que eu tendo a pensar tenham sido as responsabilidades estadunidenses efetivas. Mas não é isso que eu gostaria de ressaltar.

 

A intervenção de Sachs é importante por alguns elementos que tem em comum com Habermas. Em primeiro lugar, a ideia de que não seja possível vencer a Rússia: “O grande erro - escreve Sachs - é acreditar que a OTAN vai derrotar a Rússia: típica arrogância e miopia estadunidense. É difícil entender o que significa ‘derrotar a Rússia’, já que Vladimir Putin controla milhares de ogivas nucleares. (…) Melhor chegar a um acordo de paz que destruir a Ucrânia em nome da ‘derrota’ de Putin”.

 

 

Segundo Sachs, nos Estados Unidos prevaleceu a ideia de que esta é a oportunidade para redimensionar a Rússia e, portanto, os estadunidenses hoje parecem relutantes em relação a uma paz negociada. Tanto é verdade que eles nunca esclareceram qual poderia ser o conteúdo de um possível acordo, nem deram sinais de disponibilidade quando o presidente Zelensky tentou falar sobre uma possível neutralidade da Ucrânia. "Para salvar a Ucrânia, devemos acabar com a guerra e, para acabar com a guerra, precisamos de um compromisso", conclui Sachs.

 

Quando ele tenta dizer algo sobre os termos desse compromisso, parece-me muito superficial (retirada da Rússia em troca da não adesão da Ucrânia à OTAN). Mas o interessante aqui é que, segundo ele, hoje os EUA estão cometendo justamente o mesmo erro que, na opinião de Habermas, deveria ser evitado: acreditar que ainda seja possível raciocinar em termos de vitória e derrota, subestimar a base nuclear do poder russo e, portanto, não levar suficientemente em conta aquela "extrema cautela e prudência" que Habermas considera necessárias para evitar a escalada da guerra.

 

Morin e a "queda da humanidade"

 

Dois dias depois, em 3 de maio, foi publicada uma intervenção do ultra centenário Edgar Morin, mais concisa que a de Habermas, mas substancialmente convergente com ela e, se possível, ainda mais atormentada.

 

Morin vê claramente que, com o fornecimento cada vez maior de armas ocidentais e as represálias cada vez mais amplas da Rússia (...) "o caráter internacional da guerra está crescendo". O conflito, na sua opinião, deve ser enquadrado "no agravamento das relações conflituosas entre os Estados Unidos e a Rússia". Trata-se de uma "guerra indireta", mas agora já estamos "em plena escalada".

 

Exatamente como Habermas, ele observa que "se um certo limiar não especificado de hostilidade ou interferência ameaçasse a Rússia", Putin já disse, e repetidamente, que haveria uma resposta muito violenta.

 

Mas - como também acredita Sachs - "essa ameaça não é levada a sério pelos Estados Unidos e seus aliados" que lhe parecem vítimas das mesmas argumentações com as quais durante a Guerra Fria um conflito nuclear era considerado improvável, ou seja, o racional desinteresse em fazer uso dele, porque não haveria nem vencidos, nem vencedores.

 

Morin objeta exatamente como os pessimistas faziam em seu tempo, ou seja, que "o argumento racional não leva em conta uma possível acidentalidade e uma possível irracionalidade". Portanto, ele acredita ser provável, se não certo, que a guerra se estenda a outros territórios europeus e empregue armas não convencionais e "táticas".

 

 

Morin também se mostra preocupado com os efeitos que a guerra corre o risco de produzir, ou já está produzindo, em nossos países em termos de "controle, vigilância, eliminação de qualquer opinião que se desvie da linha oficial e desencadeamento de propaganda para justificar permanentemente os próprios atos e criminalizar ontologicamente o inimigo". E só se pode concordar com ele.

 

O medo de uma ampliação do conflito agora imparável é muito forte em Morin e ele se expressa com palavras muito duras, que o Papa Bergoglio provavelmente compartilharia: "Estamos na escalada da desumanidade e na queda da humanidade, na escalada do simplismo e na queda da complexidade. Mas acima de tudo, a escalada para a guerra global é a queda da humanidade no abismo”. A única possibilidade é chegar a um acordo cujos termos já estão claros hoje, mas "a radicalização e a ampliação da guerra estão inegavelmente reduzindo suas possibilidades".

 

E conclui assim: vivemos num mundo “dominado pelos antagonismos entre as superpotências e entregue a delírios étnicos, nacionalistas, racistas e religiosos. Por mais repugnante que as superpotências possam ser, a distensão em seus conflitos é uma condição sine qua non para evitar desastres generalizados. Devemos, portanto, esforçar-nos por chegar a um compromisso. Isso não salvaria a humanidade, mas ganharia uma trégua e, talvez, uma esperança”.

 

 

E as opiniões públicas europeias?

 

Se tudo isso tem um sentido, se os conselhos de Habermas, de Morin e de outros são fundamentados e as decisões de Biden não parecem orientadas a levá-los em consideração e, portanto, quem governa os EUA não dá sinais reveladores de uma atitude que pretende "pesar cuidadosamente cada grau adicional de apoio militar”, isso significa que a decisão de estabelecer qual o limite além do qual os ocidentais podem ser considerados como tendo entrado em guerra com a Rússia é deixada para Putin sem excessivas preocupações. Mas isso nos expõe seriamente ao risco de uma escalada de vastas proporções, cuja decisão, inclusive, não é controlada no Ocidente. Em outras palavras, existem todas as condições pelas quais um resultado catastrófico seja o resultado de um mecanismo que ninguém mais controla.

 

Parece-me que preocupações desse tipo também estejam presentes na entrevista concedida em 3 de maio pelo Papa Francisco, na ideia de que estejamos indo além da guerra mundial em pedaços, em suas repetidas e insistentes tentativas de obter um encontro com Putin em Moscou, na percepção de que Putin não esteja disposto a parar, na menção daquele "ladrar da OTAN à porta da Rússia" que poderia ter "facilitado" sua ira e, por fim, na afirmação que "para a paz não há vontade suficiente" .

 

 

E surgem questões difíceis: em que medida e em que países europeus está presente a consciência que Habermas e Morin acenam?

 

Se existir, haverá uma tentativa concertada, pelo menos entre alguns países europeus, de fazer refletir os aliados estadunidenses (para não falar dos ingleses...) sobre os riscos implícitos na situação e exortá-los a um maior equilíbrio entre exigências de apoio à resistência ucraniana e tentativas de encontrar uma saída diplomática aceitável e necessária?

 

E finalmente: decisões dessa natureza, que dizem respeito ao destino de todos e de cada um, só podem ser deixadas a quem governa, seja ele "técnico" ou político? Não existe um espaço aqui para que as opiniões públicas europeias façam ouvir a sua voz como fizeram durante a invasão do Iraque? Ou vamos todos tomar o aperitivo no bar?

 

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