‘Honestidade, responsabilidade e coragem’, pede o papa Francisco à COP26

Ativistas colocaram fogo simbolicamente na George Square com uma instalação artística de chamas falsas e fumaça antes da COP26 em Glasgow, Escócia. (Foto: Vatican Media)

03 Novembro 2021

 

"A COP26 pode e deve contribuir ativamente para essa construção consciente de um futuro onde as condutas cotidianas e os investimentos econômicos e financeiros possam realmente salvaguardar as condições de uma vida digna da humanidade de hoje e de amanhã num planeta 'saudável'", afirma o Papa Francisco, na mensagem enviada a S.Ex. Sr. Alok Sharma, Presidente da COP26, por ocasião da 26ª sessão da Conferência das Partes na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas (COP26), que se realiza em Glasgow de 31 outubro - 12 novembro de 2021, cujo texto foi lido pelo Secretário de Estado, o cardeal Pietro Parolin, Chefe da Delegação da Santa Sé.

 

Segundo o papa Francisco, "trata-se de uma mudança de época, de um desafio de civilização para o qual é necessário o compromisso de todos e em particular dos países com maiores capacidades, que devem assumir um papel de liderança no campo da finança climática, da descarbonização do sistema econômico e da vida das pessoas, da promoção de uma economia circular, do apoio aos países mais vulneráveis para as atividades de adaptação aos impactos das mudanças climáticas e de resposta às perdas e danos decorrentes desse fenômeno".

 

"Infelizmente, - constata o Papa - devemos notar amargamente o quão longe estamos de alcançar os objetivos desejados para combater as mudanças climáticas. Deve ser dito honestamente: não podemos nos permitir isso! Em diversos momentos, tendo em vista a COP26, ficou claro que não há mais tempo para esperar; a esta altura, são em demasia os rostos humanos que estão sofrendo com esta crise climática: para além dos seus impactos cada vez mais frequentes e intensos na vida quotidiana de numerosas pessoas, especialmente das populações mais vulneráveis, percebemos que se tornou também uma crise dos direitos das crianças e que, em um futuro próximo, os migrantes ambientais serão mais numerosos do que os refugiados dos conflitos. Devemos agir com urgência, coragem e responsabilidade. Agir para se preparar para um futuro em que a humanidade seja capaz de cuidar de si mesma e da natureza".

 

O texto foi publicado pela Sala de Imprensa do Vaticano, 02-11-2021 . A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a mensagem.

 

À sua Excelência o Senhor Alok Sharma

Presidente da COP26, vigésima sexta sessão da Conferência dos Estados Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas

 

Excelência,

 

Enquanto começa a Conferência de Glasgow, todos estamos cientes que ela tem a importante tarefa de mostrar a toda a comunidade internacional se realmente existe a vontade política de destinar com honestidade, responsabilidade e coragem maiores recursos humanos, financeiros e tecnológicos para mitigar os efeitos negativos das mudanças climáticas, bem como para ajudar as populações mais pobres e vulneráveis, que são as que mais sofrem [1].

 

Mas, diante de nós, há mais: esta tarefa deverá, de fato, ser realizada em meio a uma pandemia que assola a nossa humanidade há quase dois anos. A par das várias tragédias que a Covid-19 trouxe, a pandemia também nos ensina que não há alternativa: só conseguiremos vencê-la se todos participarmos neste desafio. Tudo isso, bem o sabemos, requer uma colaboração profunda e solidária entre todos os povos do mundo.

 

Houve um antes da pandemia; será inevitavelmente diferente do pós-pandemia que devemos construir, juntos, confrontando-nos com os erros cometidos no passado.

 

É possível fazer um discurso similar ao contrastar o problema global das mudanças climáticas. Não temos alternativas. Só podemos alcançar os objetivos descritos no Acordo de Paris se agirmos de forma coordenada e responsável. São objetivos ambiciosos, mas inderrogáveis. Hoje, essas decisões cabem a você.

 

A COP26 pode e deve contribuir ativamente para essa construção consciente de um futuro onde as condutas cotidianas e os investimentos econômicos e financeiros possam realmente salvaguardar as condições de uma vida digna da humanidade de hoje e de amanhã num planeta “saudável”.

 

Trata-se de uma mudança de época, de um desafio de civilização para o qual é necessário o compromisso de todos e em particular dos países com maiores capacidades, que devem assumir um papel de liderança no campo da finança climática, da descarbonização do sistema econômico e da vida das pessoas, da promoção de uma economia circular, do apoio aos países mais vulneráveis para as atividades de adaptação aos impactos das mudanças climáticas e de resposta às perdas e danos decorrentes desse fenômeno.

 

Por sua vez, a Santa Sé, como indiquei na High Level Virtual Climate Ambition Summit de 12 de dezembro de 2020, adotou uma estratégia de redução a zero das emissões líquidas (net-zero emission) que se move em dois níveis:

 

1) o compromisso do Estado da Cidade do Vaticano para atingir esse objetivo até 2050;

2) o empenho da própria Santa Sé em promover a educação para a ecologia integral, consciente de que as medidas políticas, técnicas e operacionais devem ser conjugadas com um processo educativo que, também e sobretudo entre os jovens, promova novos estilos de vida e fomente um modelo cultural, de desenvolvimento e sustentabilidade centrados na fraternidade e na aliança entre o ser humano e o meio natural. Milhares de iniciativas nasceram desses compromissos em todo o mundo.

 

Também nesta perspectiva, no último dia 4 de outubro, tive o prazer de encontrar-me com vários líderes religiosos e cientistas para assinar um Apelo conjunto tendo em vista a COP26. Na ocasião, ouvimos vozes de representantes de muitas religiões e tradições espirituais, de muitas culturas e âmbitos científicos. Vozes diferentes e com diferentes sensibilidades. Mas o que se percebeu claramente foi uma forte convergência de todos em se comprometerem diante da necessidade urgente de iniciar uma mudança de rumo capaz de passar com decisão e convicção da "cultura do descarte" prevalente em nossa sociedade para uma "cultura do cuidado" da nossa casa comum e daqueles que nela habitam e habitarão.

 

As feridas trazidas à humanidade pela pandemia Covid-19 e pelo fenômeno da mudança climática são comparáveis àquelas resultantes de um conflito global. Assim como depois da Segunda Guerra Mundial, é necessário que hoje toda a comunidade internacional priorize a implementação de ações coletivas, solidárias e com visão de futuro.

 

Precisamos de esperança e coragem. A humanidade tem meios para enfrentar esta transformação que requer uma verdadeira conversão individual e comunitária, e a firme vontade de tomar este caminho. Trata-se da transição para um modelo de desenvolvimento mais integral e integrante, fundado na solidariedade e na responsabilidade, uma transição durante a qual deverão ser considerados atentamente também os efeitos que ela terá sobre o mundo do trabalho.

 

Nesta perspectiva, uma atenção particular deve ser dada às populações mais vulneráveis, para as quais amadureceu uma "dívida ecológica", ligada tanto aos desequilíbrios comerciais com consequências ambientais, quanto ao uso desproporcional dos recursos naturais do próprio e de outros países [2]. Não podemos negá-la.

 

A "dívida ecológica" lembra, em alguns aspectos, a questão da dívida externa, cuja pressão muitas vezes impede o desenvolvimento dos povos [3]. A pós-pandemia pode e deve recomeçar levando em consideração todos estes aspectos, também ligados ao início de cuidadosos procedimentos negociados para o perdão da dívida externa associada a uma estrutura econômica mais sustentável e justa, visando apoiar a emergência climática. É "necessário que os países desenvolvidos contribuam para resolver a dívida [ecológica], limitando significativamente o consumo de energia não renovável e contribuindo com recursos para os países mais necessitados de promover políticas e programas de desenvolvimento sustentável" [4]. Um desenvolvimento ao qual, finalmente, todos possam participar.

 

Infelizmente, devemos notar amargamente o quão longe estamos de alcançar os objetivos desejados para combater as mudanças climáticas. Deve ser dito honestamente: não podemos nos permitir isso! Em diversos momentos, tendo em vista a COP26, ficou claro que não há mais tempo para esperar; a esta altura, são em demasia os rostos humanos que estão sofrendo com esta crise climática: para além dos seus impactos cada vez mais frequentes e intensos na vida quotidiana de numerosas pessoas, especialmente das populações mais vulneráveis, percebemos que se tornou também uma crise dos direitos das crianças e que, em um futuro próximo, os migrantes ambientais serão mais numerosos do que os refugiados dos conflitos. Devemos agir com urgência, coragem e responsabilidade. Agir para se preparar para um futuro em que a humanidade seja capaz de cuidar de si mesma e da natureza.

 

Os jovens, que nos últimos anos nos têm pedido com insistência para agir, não terão um planeta diferente daquele que deixarmos para eles, daquele que poderão receber em função das nossas escolhas concretas de hoje. Este é o momento da decisão que deve lhes dar motivos de confiança no futuro.

 

Eu gostaria de estar presente com você, mas não foi possível. No entanto, eu vos acompanho com a oração nessas importantes escolhas.

 

Receba, Senhor Presidente, as minhas mais sinceras e cordiais saudações.

 

Vaticano, 29 de outubro de 2021.

 

Francisco

 

Notas

 

[1] Cf. vídeo-mensagem à Cúpula do Clima, Nova York, 23 de setembro de 2019.

[2] Enc. Laudato si', 51.

[3] Enc. Fratelli tutti, 126.

[4] Enc. Laudato si', 52.

 

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