O relatório McCarrick confirma: o clericalismo fortalece a crise de abusos sexuais

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13 Novembro 2020

“Uma cultura de clericalismo, construída em torno do privilégio e ambições dos padres e bispos da igreja, é exatamente o que tornou possível o encobrimento e a perpetuação do abuso e das mentiras de McCarrick”, escreve Sam Sawyer, padre jesuíta estadunidense, em artigo publicado por America, 12-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

Eis o artigo.

As pessoas têm “varrido” as 461 páginas do Relatório McCarrick a fim de encontrar alguma bomba de fumaça que definitivamente explica o que ocorreu de errado e quem deveria ter sido responsável pela tão grande falha da Igreja em levar a sério as acusações de abuso contra o cardeal Theodore McCarrick. Mas ali não há apenas uma bomba de fumaça. Pelo contrário, o relatório documenta décadas de fumaça durante as quais ninguém procurou pelo fogo real que a produzia. Mais que isso, nos dá uma visão aproximada de camadas concêntricas de negações plausíveis e ignorância culpável, fortalecida pelo clericalismo, que permitiu McCarrick de evadir das descobertas ou accountability.

Lá estão, para ser preciso, eventos específicos no relatório que são particularmente chocantes, mais especificamente a decisão irresponsável do papa João Paulo II em aceitar os protestos de inocência de McCarrick acima do conselho de múltiplos assessores quando o transfere para se tornar arcebispo de Washington D.C.. Mas mesmo se João Paulo II tivesse recusado promovê-lo, McCarrick teria permanecido como bispo de Newark, com a esperança que os rumores sobre ele simplesmente sumissem no pano de fundo, e nunca fosse investigado.

Essa escura e enganadora esperança, focada em evitar escândalos, é talvez o tema mais singular do relatório. Isso é demonstrado quando McCarrick é aprovado para ordenação em Chicago e Nova York, quando ele é escolhido para Washington e quando o Vaticano gasta anos de insucesso tentando limitar suas viagens e atividades públicas. Repetidamente, os pastores da igreja foram confrontados com rumores persistentes e proliferantes e, eventualmente, com alegações específicas de que um de seus irmãos abusou e maltratou aqueles que foram confiados aos seus cuidados. Porém, repetidas vezes, eles se perguntavam não se os membros do rebanho haviam sido feridos e precisavam de cuidados, mas qual a probabilidade de a mídia notar e divulgar o assunto. Para ser franco, a esperança dos responsáveis por ele não era que McCarrick não tivesse feito essas coisas das quais era acusado – uma esperança que poderia ter levado a investigações e supervisão –, mas sim que seria possível evitar qualquer acerto de contas perante o público se ele tinha ou não.

É claro que veio o acerto de contas, mais imposto à Igreja do que procurado com responsabilidade. Aconteceu quando um sobrevivente que havia sido abusado por McCarrick como menor de idade encontrou coragem para fazer uma acusação formal em 2017, um ato que finalmente desencadeou um processo canônico e denúncia civil que a Igreja não pôde ignorar e o então cardeal não pôde fugir. Mesmo neste extenso novo relatório há uma expressão de transparência em forte contraste com o habitual muro de pedra do Vaticano, encomendado em resposta às tentativas desacreditadas do arcebispo Carlo Maria Viganò de colocar a culpa de McCarrick principalmente no papa Francisco.

Mas não importa a gênese do relatório, sua riqueza de detalhes reforça o quão profundamente o clericalismo e a ambição impulsionaram a crise dos abusos sexuais da Igreja. Mais do que uma história de maus atos individuais, este relatório deve resolver qualquer dúvida de que a crise dos abusos é uma história de falhas abrangentes de governança eclesial. Pior, essas falhas não são apenas acidentes trágicos, mas o resultado previsível dos incentivos e atitudes que moldaram a hierarquia da Igreja Católica.

Um exemplo relativamente inicial dessas falhas incluído no relatório captura essa dinâmica perfeitamente. Em 1994, quando o planejamento estava em andamento para uma das visitas de João Paulo II aos Estados Unidos, o então arcebispo McCarrick estava trabalhando para incluir uma parada em Newark na agenda da viagem (Seção X.B. do relatório). Durante esse processo de planejamento, vários relatórios e rumores circulando em torno de McCarrick chegaram ao núncio. Observe que a preocupação aqui, caracteristicamente, não era se McCarrick era ou não um perigo para alguém sob seus cuidados, mas que uma parada em Newark durante a visita papal aumentava o risco de que rumores sobre McCarrick viessem à luz. O núncio procurou o cardeal James A. Hickey, então arcebispo de Washington, D.C., para obter seus conselhos.

Depois de elogiar McCarrick efusivamente, o cardeal Hickey sugere que as reformas que ele vinha implementando em Newark podem ter “conquistado alguns inimigos ao longo do caminho”. Em seguida, ele sugere que a falta de exemplos anteriores reduz a probabilidade de má conduta de McCarrick, uma vez que “tais tendÊncias não surgem aos 50 ou 60 anos, mas sim no início da idade adulta. Se o arcebispo tivesse essas tendências, seria muito surpreendente que ninguém as tivesse detectado”.

Mas é claro, o que “ninguém detectou” significa, na prática, é que ninguém conseguiu fazer com que os oficiais da igreja tomassem conhecimento das preocupações sobre McCarrick, que em 1994 não havia apenas sido relatado em cartas anônimas acusando-o de pedofilia, mas também por vários padres que contaram a seus bispos sobre o abuso que sofreram de McCarrick em seus anos de seminário. É bem provável que o próprio cardeal Hickey não soubesse desses outros relatórios – mas ele não sabia porque outros bispos não haviam lidado completamente com os relatórios que chegaram a eles, e ele tratou essa ignorância um produto da autoproteção clerical, como evidência para justificar ignorar as mesmas afirmações novamente.

Esse padrão de autoproteção clerical, o cultivo da ignorância e negação, também está em exibição na carta do cardeal Hickey. Além de especular que esses rumores eram de “inimigos” que McCarrick havia feito em Newark, o cardeal Hickey lança calúnias sobre o padre cujo relatório chegou ao núncio, descrevendo-o como “doutrinariamente sólido”, mas com uma “forte tendência ideológica” porque havia criticado McCarrick sem considerar a possibilidade de que o cardeal o conhecesse.

O relatório também documenta que o núncio, após sua conversa com o cardeal Hickey, ficou com a impressão de que o padre possivelmente estava caluniando ou exagerando seu relato e que um superior de uma comunidade religiosa feminina, que notificou o núncio sobre as alegações, havia feito então porque “ela queria se fazer parecer importante”. Em outras palavras, a substância das alegações não precisa ser mais explorada porque os motivos dos envolvidos – atores nas bordas dos círculos de poder da igreja – foram contestados.

O cardeal Hickey então recomenda ao núncio que ele não entrevistasse pessoalmente o padre que fez as acusações, mas em vez disso tivesse outro membro da equipe da nunciatura para entrevistá-lo sob juramento, e “se o acusado estivesse relutante em avançar”, ele sugeriu que o assunto caísse. Mas claro, essa abordagem telegrafa para o acusador – que nesse caso era também vítima de McCarrick – que é a sua reputação, não a de McCarrick, que está em risco.

Finalmente, o cardeal Hickey conclui que os planos para a visita a Newark devem prosseguir e que McCarrick deve ser “considerado completamente inocente por causa de seus muitos anos de serviço devotado e sua merecida reputação como um homem irrepreensível da Igreja”. Há uma confusão aqui entre a presunção de inocência devida a qualquer um que seja acusado e uma presunção devida a McCarrick por causa de seu status clerical.

O que o cardeal Hickey – e o cardeal O’Connor, o núncio e vários outros bispos que receberam relatos – parecia incapaz de imaginar é que McCarrick poderia ser um clérigo dedicado, talentoso e pastoralmente vigoroso e, ao mesmo tempo, ainda ser culpado de abusar das pessoas vulneráveis sob seus cuidados. Seu sucesso dentro do sistema de incentivos e valores clericais o isolou de qualquer preocupação séria de que as vítimas estivessem dizendo a verdade sobre como ele as havia atacado.

O cardeal Hickey não é de forma alguma o pior exemplo de clericalismo no Relatório McCarrick. Ele simplesmente cristalizou todo o padrão em uma carta relativamente curta em três páginas (114-116) das mais de 400 do relatório. E esse padrão não precisa ser intencionalmente malicioso para ter efeitos devastadores e malignos. Ele simplesmente precisa ser isolado, permitindo que aqueles no poder se assegurem de que sua própria ignorância das falhas de um colega é o mesmo que falta de evidências, para que possam descartar preocupações trazidas por “inimigos ou detratores de fora”.

Ao mesmo tempo, essa cegueira serve para reforçar a prudência superficial de “investigações” limitadas e parciais, que preservam a capacidade do círculo interno de clérigos de sentir que lidou com uma acusação, mesmo sem aprender nada de substancial sobre ela. E em torno de tudo isso, a linguagem elíptica sobre “tendências” e “fraqueza moral”, em vez de crimes, agressões e abusos, serve para manter qualquer reconhecimento do dano real sendo feito às vítimas à distância.

O Relatório McCarrick conclui citando a “Carta ao povo de Deus” do papa Francisco, de 2018, na qual ele afirma que “nenhum esforço deve ser poupado para criar uma cultura capaz de evitar que tais situações aconteçam, mas também para prevenir a possibilidade de seu ser encobertas e perpetuadas”. Uma cultura de clericalismo, construída em torno do privilégio e ambições dos padres e bispos da igreja, é exatamente o que tornou possível o encobrimento e a perpetuação do abuso e das mentiras de McCarrick. E se nós, como Igreja, estivermos verdadeiramente comprometidos em prevenir essa possibilidade no futuro, precisaremos de todos os recursos que podem ser reunidos: processos melhores e mais transparentes com responsabilidade clara, especialmente para os bispos; conversão espiritual completa por parte de toda a Igreja, clérigos e leigos igualmente, para rejeitar o clericalismo; e talvez o mais crítico, o envolvimento real de leigos quando as decisões sobre esses casos e processos são tomadas.

Essas “situações” – esses crimes e abusos – foram encobertas e perpetuadas não primariamente por malícia, mas por interesses e autoproteção clericais. Eles não serão eliminados até que as necessidades de todo o povo de Deus sejam melhor representadas nos círculos do poder clerical na igreja.

 

 

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