24 Abril 2020
As subjetividades desgastadas são controladas por um capitalismo que espalha seu poder onipresente por todo o planeta. “A tentativa de transformar cada um de nós em um empresário de si mesmo colidiu com a impossibilidade de expandir o mercado para todos”, escreve Alejandro Galliano em Por qué el capitalismo puede soñar y nosotros no? Breve manual de las ideas de izquierda para pensar el futuro (Siglo XXI), no momento publicado apenas como ebook, um texto fundamental para o debate nos tempos em que o emprego assalariado diminui e o trabalho se torna precário.
O capitalismo sempre propicia continuar sonhando mais - propõe o autor do livro, professor nas disciplinas de História e Ciências da Comunicação, da Universidade de Buenos Aires -, ao passo que o pensamento de esquerda, porta-voz das utopias do século XX, parece encurralado e incapaz de imaginar um mundo radicalmente alternativo.
Galliano, colaborador da revista Crisis - na qual escreve sobre ideias políticas, o impacto social das novas tecnologias e as diferentes concepções sobre o futuro -, adverte que é “muito difícil pensar em algo construtivo, na quarentena, para além de uma espécie de estresse pós-traumático coletivo. É uma situação excepcional, impossível de perpetuar”, diz sobre o impacto da pandemia de coronavírus.
“Dessa experiência em geral, é possível imaginar, não mudanças dramáticas, mas a intensificação de algumas tendências prévias bastante pessimistas: uma sociedade mais vigiada e mais instável, por exemplo. Outras são as que tratei de desenvolver no livro. Em linhas gerais, criando laços mais solidários entre pessoas e entre humanos e não-humanos, seja aproveitando a escassez de recursos, seja acelerando e reorientando transformações tecnológicas. Em ambos os casos, não são futuros predeterminados, mas horizontes para os quais direcionar a ação política”, explica o historiador.
A entrevista é de Silvina Friera, publicada por Página/12, 21-04-2020. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Como será o capitalismo pós-pandemia? Será um capitalismo com empregos mais precários, mais “uberizados” e desiguais?
Sou bastante cético em relação a uma redefinição total do capitalismo. A história desse tipo de crise demostra que a saída apenas acentua tendências prévias, as sociedades não tiram soluções da galeria. A saída da “peste negra” do século XIV, por exemplo, consolidou a centralização do estado e o desenvolvimento comercial que já vinha ocorrendo. Essa crise pode estimular maior automação da produção e os serviços, maior desregulamentação das relações de trabalho e maior centralização de dados, seja por parte de estados ou de empresas.
Nada de novo, apenas outra intensidade. Na esquerda, é necessário entender as tendências prévias para dar um sentido progressista a essas mudanças. Não procurar voltar a um passado de ouro, mas trabalhar com o que existe para construir uma sociedade mais viável. Por fim, as plataformas de delivery que tanto combatemos, hoje, facilitam a quarentena, o “capitalismo de vigilância” que tanto condenamos, permitiu rastrear contágios na China e Coreia. Os males presentes podem ser usados para bens futuros.
Quais perigos implica não podermos nos movimentar nas ruas? Estamos nas vésperas de uma espécie de “totalitarismo 5.0”?
É verdade que a quarentena desmobiliza, mas ao menos em um país tão conflituoso e pouco institucionalista como a Argentina, duvido que freie a movimentação por muito tempo. Ao contrário, a vejo cedendo por esse lado. E existem as formas digitais de mobilização. Qualquer tecnologia de comunicação é uma faca de dois gumes que você precisa saber como usar.
A rádio era a ferramenta para alienar as massas até que apareceram as rádios independentes, a web 1.0 era uma invenção da DARPA para nos controlar até que o open source e a tecnologia p2p nos permitiram socializar conhecimentos e criar comunidades. A web 2.0, em princípio, privatiza com plataformas a velha internet e facilita a mineração de dados.
É preciso aprender a domá-la com leis estatais e práticas civis. Mais do que um totalitarismo 5.0, estou preocupado com o avanço de formas nada novas de vigilância e autoritarismo, muitas delas endossadas em nome da pandemia, mesmo por setores aparentemente progressistas.
Há uma frase muito repetida e desgastada que você recorda no livro: “Hoje, é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Como opera esta frase agora, trancados e consumindo informação?
Essa é uma frase que foi memorizada sem que ninguém se fizesse totalmente responsável por sua autoria (é de Fisher, Zizek ou de Jameson?). Serviu para descrever o fechamento de alternativas pós-thatcherista, especialmente nos países anglo-saxões. Acredito que na América Latina a sensibilidade foi diferente. O problema hoje seria muito mais que o fim do mundo não nos deixe pensar no fim do capitalismo. Que a paralisia que esse clima apocalíptico produz (e que vem cumprir as fantasias mórbidas de décadas de cinema catastrófico e distópico) nos impeça de pensar sobre o dia de amanhã como algo sob o nosso controle.
Se “o capitalismo não alcança a todos e talvez o planeta terra também não”, quais consequências teriam o fato de o pensamento utópico ter como fronteira a lógica da escassez e como horizonte um desejo “ilimitado”? Para onde você considera que essa tensão se dirige?
Suponho que o pensamento utópico sempre viveu com essa tensão e continuará assim. A história passa por como cada época a calibrou. A escassez hoje tem duas faces: a finitude dos recursos naturais, que é um dado há pelo menos cinquenta anos, e nossa capacidade de gerenciar esses recursos, que melhorou graças ao maior volume de informações e novas possibilidades tecnológicas.
O que falta são novos formatos políticos (instituições, identidades), de acordo com essas novas capacidades. Esses novos formatos políticos deveriam ser a direção adotada por um pensamento que não é tanto utópico, mas, sim, como disse Ezequiel Gatto, “pós-utópico”. Que não seja um caminho reto para o futuro, mas que deixe espaço para a improvisação e a contingência. As utopias muito fechadas e direcionadas se saíram muito mal.
Diante da pandemia de coronavírus, com parte da população que não pode trabalhar, a renda familiar de emergência pode ser uma ferramenta para repensar o papel do Estado na distribuição de uma renda básica universal?
Sim, obviamente, e no livro trato do tema. Aqui, é preciso fazer uma distinção entre duas versões da renda básica universal. Uma delas é sustentada por pessoas como Milton Friedman, que entende que é preciso desmontar todo o Estado de Bem-Estar Social e substituí-lo por um pagamento de subsistência calculado de acordo com o mercado, sem forças sociais capazes de negociá-lo.
A outra, que encontramos com variações desde a Atenas clássica até Keynes, supõe que é um direito do cidadão sobre a riqueza compartilhada. Em um momento em que o capitalismo se estrutura sobre bens como os dados, as energias renováveis e o solo, é possível pensar uma renda básica universal como renda sobre essa riqueza coletiva, contando com toda a gama de organizações sociais como forças negociadoras.
“Pensar o futuro hoje, requer pensar depois do fim do mundo, porque o apocalipse já chegou e nós continuamos aqui”, escreveu em seu livro. Como essa frase ressoa hoje?
Quando a escrevi, obviamente não esperava uma pandemia assim, mas essa crise acabou reforçando o sentido da ideia. A humanidade já passou por vários apocalipses. Os trinta anos que vão de 1914 a 1945 foram os mais parecidos com um colapso civilizatório: genocídios, pestes, crises, guerras totais, revoluções. Mas no dia seguinte, os sobreviventes permaneceram neste mundo e tiveram que reconstruir suas vidas em grande parte sobre as ruínas do anterior. São momentos de sacrifícios coletivos, mas também de certa criatividade e oportunidades.
O sentido da frase é que não nos paralisemos diante do apocalipse que nos tocou e vejamos como nos organizar coletivamente para aproveitar essas oportunidades. E ter em vista horizontes de sociedades alternativas é um primeiro passo, se não para alcançá-las, ao menos para se aproximar delas.
No final do livro, se pergunta qual é a política pós-apocalíptica para o tempo e o lugar que vive. Segue em pé sua proposta de parasitar o capitalismo, lutando por um ócio civilizatório, pelo controle social das rendas naturais, digitais e financeiras?
Continua em pé. Quando escrevi o livro, pensava nas “novas direitas”, que são pré-apocalípticas. Propõem posicionar toda a sociedade diante de um risco sempre iminente: os imigrantes, o comércio chinês, a “ideologia de gênero”. O efeito era paralisar a sociedade diante de um risco que nunca se concretizava. São justamente essas novas direitas que pior enfrentaram a ameaça concreta da pandemia, negando-a.
Então, sim, hoje, uma esquerda pós-apocalíptica faz ainda mais sentido, porque a página da sociedade pós-pandemia está prestes a ser escrita e a nova direita finalmente não esteve à altura da tarefa. Não tinham nenhuma ideia de futuro, apenas ressentimento e nostalgia. É uma oportunidade para que uma esquerda ultimamente defensiva, nostálgica e melancólica volte a se apropriar do futuro.
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“Hoje, uma esquerda pós-apocalíptica faz ainda mais sentido”. Entrevista com Alejandro Galliano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU