06 Agosto 2019
Até certo ponto, toda figura pública corre o risco de ser vista através das lentes dos interesses ou antecedentes particulares de alguém. Quando você é pastor de uma Igreja global com 1,3 bilhão de membros, no entanto, o risco de ser manipulado – como liberal ou conservador, como um animal político ou como um pároco de aldeia, como um incitador do terceiro mundo ou como um estadista sóbrio – é exponencialmente maior.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada em Crux, 04-08-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando se trata do Papa Francisco, em nenhum lugar da Terra o ciclo de manipulação é tão intenso quanto em sua Argentina natal, onde tudo aquilo que pode ser lido através de uma lente local se torna notícia, e todo o resto é simplesmente ignorado. Isso é tão verdadeiro na Igreja Católica do país, a propósito, quanto é em outras esferas da vida.
Sob essa luz, talvez não seja nenhuma surpresa que Francisco tenha feito uma escolha não convencional para um aliado na Argentina – um pastor evangélico chamado Marcelo Figueroa.
“Os argentinos têm um impulso para a divisão, e nós nos apaixonamos pelo conflito, colocando o papa no meio”, disse Figueroa.
“Os argentinos não podem esquecer que ele vem daqui, e nós o vemos como o embaixador argentino na Santa Sé”, disse o jornalista e biblista. “Mas não! Ele é o papa! Ele não é um emissário da Conferência dos Bispos da Argentina.”
Durante uma conversa com o Crux no fim de julho, Figueroa mostrou-se mais versado sobre a universalidade da Igreja Católica do que a maioria dos católicos da Argentina que não pareciam ouvir Francisco quando ele lhes disse, em um vídeo de 2017, que há coisas mais importantes em escala global do que o que acontece no terceiro país de maior alcance do Sul do mundo.
“A universalidade é a definição do catolicismo”, disse Figueroa. “Quando o papa não se comporta como gostaríamos que um embaixador argentino se comportasse, nós acreditamos que ele está falhando conosco, porque nós o pagamos. É triste pensarmos assim, mas nós pensamos.”
Para além da suposta interferência do pontífice na política local, ao enviar um tuíte a cerca de 40 milhões de pessoas no Dia Internacional dos Trabalhadores rezando pelos desempregados, a classe média-alta da Argentina também não perdoa o papa por não ter voltado para casa – desconsiderando o fato de que, como Figueroa disse, “isso não deve ter sido fácil para um homem que ama o seu povo e a sua família tanto quanto ele. Ele não vê a maioria deles [incluindo a sua irmã] há mais de seis anos”.
No entanto, Figueroa, escolhido para dirigir a primeira edição local do jornal do Vaticano, o L’Osservatore Romano, acredita que, independentemente de quando o pontífice for para casa, ele “nos conquistará” assim que fizer as suas primeiras considerações.
Entre aqueles que estão na periferia da sociedade argentina, geralmente há muito menos divisão em relação ao papa. Figueroa disse que experimentou esse contraste em primeira mão trabalhando na favela de La Cárcova com o Pe. José Maria “Pepe” di Paola, o líder de um grupo de cerca de 40 padres que vivem e ministram nas favelas de Buenos Aires.
O pastor evangélico mora a menos de três quilômetros da favela onde Di Paola trabalha, e os dois vêm praticando aquilo que Francisco descreve como um “ecumenismo de obras”, organizando atividades conjuntas na favela e um programa de rádio.
“Durante esses dois anos com o Pe. Pepe na favela, eu percebi que as pessoas humildes, as pessoas pobres, amam profundamente o papa, independentemente da sua religião”, disse ele. “Todas têm uma foto de Francisco na pequena sala que elas chamam de casa e elas não o reduzem a uma leitura política.”
“Elas não são influenciadas pela grande mídia, que tentou posicionar o papa no meio de uma ideologia política, liquefazendo a sua mensagem", afirmou.
Figueroa disse que se aproximou de Di Paola porque queria entender o movimento dos padres das favelas, uma forma de inculturação amplamente desconhecida para os evangélicos na Argentina. Ele disse que o fato de tomar um mate com Di Paola levou-o a acreditar que os dois poderiam desempenhar um papel na dissipação da violência de motivação religiosa na favela.
“Alguns grupos evangélicos fundamentalistas foram violentamente postos contra a Igreja Católica, principalmente quando se trata dos santos e da Virgem Maria”, disse Figueroa. “No contexto das famílias e das comunidades multirreligiosas, isso levou à violência, porque as pessoas voltavam para casa após os cultos e destruíam a imagem da Virgem que seu cônjuge católico guardava em casa.”
A ideia foi que os dois criassem laços de unidade, mostrando que, apesar das diferentes formas de entender a fé, tanto evangélicos quanto católicos estão unidos em Cristo. Acostumado a praticar o ecumenismo com teólogos e nas universidades, ele disse que a vida que ele vive na favela é bem diferente.
“É um ecumenismo da base, com pessoas incrivelmente humildes, que vivem a religião com um alto nível de intensidade, às vezes vítimas do fanatismo”, disse Figueroa. “Que o nome de Deus não seja usado para a violência, mas para a paz, para o encontro e para a reaproximação entre todos.”
Embora percebida como um país católico, apenas 66% da população da Argentina compartilham a fé do papa, enquanto 10% são evangélicos. Também há um número crescente de pessoas de outras religiões e daqueles que não estão filiados.
Essa diversidade tem sido uma realidade no país desde o fim do século XIX e a primeira metade do século XX, quando a Argentina experimentou duas grandes ondas de imigração. Embora a maioria das pessoas que chegaram nos navios superlotados à “Paris da América do Sul” fossem da Itália e da Espanha, também havia milhares de ucranianos, poloneses, russos, franceses, turcos, libaneses e alemães.
A Argentina também experimentou a convivência entre cristãos, muçulmanos e judeus, assim como uma importante presença de Igrejas protestantes históricas, como os luteranos, metodistas e anglicanos, o que é relativamente incomum na América Latina.
Em 1936, quando Jorge Mario Bergoglio (hoje Papa Francisco) nasceu, apenas metade dos 2,6 milhões de bonaerenses era de origem argentina. Essa diversidade, argumentou Figueroa, torna o diálogo inter-religioso e ecumênico “natural” na Argentina, e isso influenciou a decisão de Figueroa de incluir as vozes cristã, muçulmana e judaica na edição argentina do L’Osservatore Romano.
“Como o papa da Argentina é um homem que ‘fala argentino’, você não pode separá-lo do diálogo inter-religioso”, argumentou. “Muitas vezes, os pontos de vista dos judeus, protestantes e muçulmanos nos ajudam a entender o que ele disse, porque muitas vezes não é só para os católicos, mas também para as pessoas de todas as religiões e interessadas em conhecê-lo.”
A impressão da edição local do L’Osservatore Romano está atualmente suspensa devido à crise econômica da Argentina, que fez os custos de impressão dispararem.
Figueroa está interessado em divulgar a mensagem do papa porque, “em um contexto em que falamos de um mundo pós-moderno que está além das religiões, com uma sociedade líquida, a verdade é que as religiões não são uma coisa do passado”.
“Infelizmente, em muitos países, as religiões mais uma vez desempenham um papel relacionado com a violência e o mal, por isso o diálogo é fundamental”, disse.
Além disso, segundo Figueroa, as indústrias como o tráfico ilegal de pessoas, de drogas e de armas “conversam entre si, alimentando-se mutuamente, de modo que é natural que aqueles que tentam combatê-las conversem entre si também”.
Ele citou vários outros assuntos sobre os quais ele acredita que a voz do Papa Francisco é importante, incluindo “o ressurgimento de setores políticos que deixam a pessoa humana de lado, o crescimento de coisas horríveis que a humanidade está fazendo e as mudanças climáticas”.
“Diante dessas situações, o único líder que eu vejo como escolhido por Deus, como uma pessoa que pode criar uma contracultura contra esse sistema complexo, é Francisco”, disse Figueroa. “Mesmo como protestante, eu sou humilde e sensível o suficiente para reconhecer isso.”