Catolicismo pós-secular: a Igreja e os católicos na era da ''autonomia interpretativa''

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29 Novembro 2018

“Pós-secular” é um pouco como “pós-moderno”. Por ser definido negativamente como um “não” àquilo que veio imediatamente antes dele, é um termo amplo que escapa de toda definição fácil. O “pós”, em pós-moderno, é uma palavra crítica ou apenas o reconhecimento da era que vem depois daquela que a precedeu?

O comentário é do teólogo estadunidense Paul Lakeland, professor da cátedra Pe. Aloysius P. Kelley, S.J. de Estudos Católicos e presidente do Centro de Estudos Católicos da Fairfield University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em National Catholic Reporter, 28-11-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Para Michelle Dillon – em seu livro Postsecular Catholicism: Relevance and Renewal [Catolicismo pós-secular: relevância e renovação], Oxford University Press, 224 páginas), a era que está acabando é a modernidade, em que a chamada teoria da secularização se espalhou amplamente e a religião foi entendida como algo que estava de saída.

Foto: Divulgação

Como todos sabemos agora, a notícia da sua morte iminente foi muito exagerada. Vivemos em um mundo em que o secular e o religioso existem lado a lado, em que eles podem e devem dialogar, e, de fato, em que os habitantes de uma visão de mundo religiosa também habitam o saeculum. Esse é o marco de referência pós-secular. Então, o que uma situação tão nova significa para o futuro do catolicismo? Essa é a preocupação de Dillon.

A resposta de Dillon para a sua própria pergunta se estende por sete capítulos. No primeiro, ela explora o mundo em que o triunfo da modernidade não parece tão garantido quanto antes. A “virada” pós-secular, como ela a nomeia, inclui uma nova abertura às vozes religiosas em geral e ao catolicismo em particular, entrando em diálogo com o mundo secular.

O pós-secular interroga a modernidade e propõe um futuro mais aberto e dialógico. Será, pergunta Dillon, que o secular também pode desafiar a Igreja ao mesmo tipo de ato de contrição que a própria modernidade precisou fazer? Certamente, vemos alguns elementos de uma Igreja contrita nos vários pedidos de desculpas que foram feitos – pelo escândalo dos abusos sexuais (em particular pelo Papa Bento XVI) e pelo antissemitismo (pelo Papa João Paulo II).

O pós-secular castiga a postura irrefletida da sociedade modernista (o mundo do paradigma tecnocrático), e pode similarmente convocar a Igreja a pensar mais profundamente sobre a contribuição da secularidade para a comunidade de fé.

O segundo capítulo de Dillon enfoca os católicos contemporâneos, especialmente os estadunidenses, que são claramente pós-seculares. Eles vivem no mundo secular, e sua experiência mundana modifica sua identidade católica. Sua fé religiosa não controla nem influencia grande parte das suas vidas diárias. Eles tomam muitas decisões que podem não refletir o magistério católico, podem ser pessoas de fé, mas não frequentam a igreja e não veem nenhum conflito em nada disso. São os possuidores daquilo que Dillon chama de “autonomia interpretativa”, autorizada em parte pela tradição das encíclicas sociais e pelo magistério do Concílio Vaticano II.

Juntos, eles reivindicam a voz da Igreja na sociedade e reconhecem que essa é uma responsabilidade predominantemente leiga, o que, é claro, significa que a Igreja-mestra promova o envolvimento dos fiéis no mundo secular, levando exatamente à autonomia interpretativa que marca os católicos de hoje.

Os papas recentes, particularmente Bento e Francisco (capítulo 3), apenas intensificaram essa imagem de uma Igreja engajada no mundo secular e de um fiel leigo que toma as suas próprias decisões. Mas, embora o magistério de ambos os papas encoraje o “discipulado missionário” (termo de Francisco) da atividade secular leiga nos desafios sociais e políticos dos nossos dias, não é tão claro que a mesma autonomia interpretativa seja valorizada em questões de sexo e gênero (capítulo 4).

O dilema da Igreja aqui certamente é a percepção de que a autonomia leiga está deixando em meio à poeira os ensinamentos da Igreja tradicional sobre sexo e especialmente sobre gênero. Contracepção, coabitação, relações entre pessoas do mesmo sexo e até mesmo os casamentos são cada vez mais questões não importantes para os católicos de hoje, embora a Igreja-mestra se esforce para explicar sua contínua oposição. E, se o diálogo com o mundo secular é uma característica da pós-secularidade, e se o diálogo requer uma disponibilidade para reconsiderar as próprias convicções atuais, será que esse é o limite para além do qual um catolicismo institucional pós-secular pode ser capaz de ir?

Os capítulos 5 e 6 examinam dois exemplos atuais de conflito e convergência entre a Igreja institucional, a sociedade secular e os católicos pós-seculares. O capítulo 5 explora a cruzada pela liberdade religiosa em que a Igreja se envolveu, inicialmente diante do requisito do Affordable Care Act de que todos os planos de saúde incluam cobertura contraceptiva. Posteriormente, esse problema presente tornou-se a ocasião para prognósticos sombrios sobre uma perda mais ampla de liberdade religiosa, embora pareça pouco provável que tal medida esteja atualmente em andamento, o que explica muito por que os católicos em geral pareciam totalmente desinteressados em marchar pela liberdade, particularmente porque a maioria deles é intocada pelo magistério da Igreja sobre contracepção.

Mas Dillon ressalta que a posição dos bispos católicos estadunidenses se baseia no princípio secular da liberdade religiosa. Assim, um valor secular motiva um argumento religioso, e certamente percorremos um longo caminho desde o “Sílabo dos erros” do Papa Pio IX! Enquanto isso, o Sínodo dos bispos sobre a família introduziu a diferença e o diálogo nas conversas episcopais, ao mesmo tempo em que destacou o abismo entre o que Dillon chama de “ideias católicas e realidades católicas”. Francisco, é claro, ficou famoso pela sua afirmação de que “a realidade é mais importante do que a ideias”, o que pode explicar por que ele é tão popular entre as pessoas comuns, mas tem um grupo crescente de lideranças principalmente eclesiais, profundamente desconfiadas em relação ao destino ao qual ele poderia estar liderando a Igreja.

O breve capítulo final de Dillon reconhece o desafio do mundo pós-secular, particularmente entre os católicos mais jovens. Nesse aspecto, pouco mudou desde os anos 1960, quando o padre jesuíta John Courtney Murray identificou o maior medo do catolicismo como o medo de mudança. O que Dillon apresenta tão bem neste livro é que, no que diz respeito à secularidade dos católicos, o gênio está do lado de fora da lâmpada. Não vamos voltar para dentro. Então, indo para a frente, como o processo de mudança vai continuar?

Pensando em Francisco, talvez, ela identifica o futuro como um diálogo contínuo de ideias doutrinárias e realidades seculares. Ela está bem certa de que precisamos ir além da “identidade bifurcada” imposta a alguns pelo magistério da Igreja – católicos “mas” gays, ou católicos “mas” divorciados em segunda união.

O argumento dela é abrangente e persuasivo, embora eu teria gostado de ver mais um aceno na direção daqueles católicos mais tradicionais que ativamente resistem à virada pós-secular.

No entanto, nesta era de uma saudável autonomia interpretativa, os católicos só terão futuro se estiverem dispostos a entrar – segundo ela – “na intrincada dança da integração” entre ideias e realidades. A imagem que ela desenha é desafiadora, inspiradora e talvez até um pouco carregada de perigos. Mas não é deprimente, e por isso ela deve ser parabenizada.

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