05 Junho 2025
Trump e seu ex-assessor Elon Musk aceleraram a implantação de uma vasta infraestrutura tecnológica que monitora a vida de milhões de pessoas e, no momento, está focada na perseguição de imigrantes.
A reportagem é de Manuel G. Pascual, publicada por El País, 05-06-2025.
Varredura em massa não autorizada de mídias sociais. Análise de dados biométricos, de renda, de saúde e de previdência social. Interceptação de comunicações telefônicas. Geolocalização por meio de celulares. Rastreamento de viagens de carro usando leitores de placas. Desde que Donald Trump retornou à Casa Branca, o governo dos EUA tem usado essas e outras ferramentas baseadas em inteligência artificial (IA) para monitorar e processar milhares de pessoas, principalmente imigrantes, estrangeiros de passagem ou estudantes, tudo sem autorização judicial.
Nos últimos quatro meses, Trump e seu ex-assessor estrela, o magnata Elon Musk, juntamente com o setor privado, aceleraram a construção de um estado de tecnovigilância em massa, sobre o qual, pela primeira vez na história, Washington se gaba em vez de negar sua existência.
“A vigilância nos EUA não começou com Trump, nem terminará quando ele deixar a Casa Branca. As bases para o estado atual da tecnovigilância foram construídas ao longo de décadas, com apoio bipartidário a políticas que normalizaram práticas invasivas na aplicação da lei, nas forças armadas e no controle de fronteiras”, explica ao El País a ativista de direitos civis do Bahrein, Esra'a Al Shafei, que estuda o assunto há anos. “Este sistema é alimentado por grandes orçamentos alocados a agências de inteligência, bem como a provedores privados, tudo sob o pretexto de segurança nacional e prevenção ao crime”, explica. Empresas como Palantir, Anduril e GEO Group estão fornecendo a Washington ferramentas digitais para construir toda essa infraestrutura de vigilância.
Trump continua a adicionar camadas a esse sistema. O Departamento de Segurança Interna confirmou em abril que está usando uma ferramenta chamada Babel X para "coletar informações de mídia social sobre viajantes que podem estar sujeitos a maior vigilância", segundo a própria agência. O Departamento de Imigração e Alfândega, por sua vez, reconheceu o uso de outro programa, o SocialNet, que agrega dados de mais de 200 fontes, incluindo Facebook, Twitter/X, Instagram, LinkedIn e aplicativos de namoro.
Washington reconhece oficialmente que a simples descoberta de "atividade antissemita" em feeds de notícias, como protestos contra o massacre de Gaza, é suficiente para que as autoridades neguem asilo ou cidadania. Autoridades americanas também são incentivadas a denunciar seus colegas caso detectem qualquer "preconceito anticristão", de acordo com uma Ordem Executiva assinada por Trump em fevereiro. "Usar a vigilância das mídias sociais para intimidar, assediar, alienar, deportar, aprisionar ou prender é antitético a muitos dos princípios em que a democracia se baseia", alertou Paromita Shah, diretora executiva da ONG americana de defesa dos imigrantes Just Futures Law.
As mídias sociais são apenas a superfície. Para alimentar essa máquina automatizada de rastreamento de suspeitos, são necessários dados de qualidade sobre os cidadãos. Algumas dessas informações estão sendo obtidas por meio da compra de grandes corretoras de dados, como a Thomson Reuters ou a Lexis Nexis, que criam perfis completos de milhões de pessoas, utilizando até 10 mil tipos de dados sobre cada indivíduo com base em seus rastros online.
Mas a outra parte desse vasto repositório de dados está sendo destilada dentro do próprio governo federal. Isso inclui um dos projetos emblemáticos de Trump e, até agora, de seu principal conselheiro, Elon Musk: o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), liderado pelo próprio Musk, que vem acumulando dados oficiais sensíveis sobre centenas de milhões de cidadãos de outras agências federais há meses, desde a situação fiscal até registros médicos.
Os dados coletados pelo DOGE estão sendo usados pela Palantir, que tem mais de US$ 2,7 bilhões em contratos com o governo, para construir uma nova plataforma de deportação para o Serviço de Imigração e Alfândega, o InmigrationOS. Ela servirá para "apoiar a análise abrangente das populações-alvo" e contribuir para o sistema de rastreamento individual, de acordo com o resumo do contrato.
A infraestrutura inclui ferramentas como drones de vigilância com reconhecimento facial, coleta de dados biométricos, leitores de placas de veículos, torres de vigilância equipadas com câmeras e sensores de alta resolução, ferramentas de policiamento preditivo e rastreamento de localização.
O Departamento de Segurança Interna adquiriu diversas licenças para software espião de celulares da Cellebrite, Paragon Solutions, Venntel e NSO Group, os desenvolvedores do Pegasus, nos últimos meses, de acordo com dados coletados pela Just Futures Law. Uma investigação da revista Time mostrou que mulheres que cruzam divisas estaduais e se aproximam de clínicas de aborto para interromper a gravidez têm sido alvos dessa forma sem mandado.
Uma análise do inventário de casos de uso de IA do Departamento de Segurança Interna, realizada pela Just Futures Law, revela que pelo menos 23 novas tecnologias de IA para fiscalização aduaneira foram registradas nos últimos meses. De acordo com uma investigação do New York Times, o governo federal investiu US$ 7,8 bilhões em tecnologias de imigração desde 2020, em parceria com 263 empresas.
"Esse processo aconteceu extremamente rápido. Trump tornou mais fácil para as grandes empresas de tecnologia fazerem o que já queriam fazer, mas sem qualquer verniz de greenwashing ou democracia", disse Timnit Gebru. A engenheira etíope foi codiretora da equipe de Ética em IA do Google até 2020. Um ano depois, ela fundou o Instituto DAIR, onde pesquisa os danos que a IA causa aos grupos mais vulneráveis.
“Desde que Trump retornou à Casa Branca, a expansão das ferramentas de vigilância se acelerou”, disse Al Shafei. “Também estamos recebendo mais solicitações de propostas dessas agências governamentais, buscando empresas que possam fornecer ferramentas de vigilância mais invasivas e sofisticadas”.
Toda essa estrutura está sendo utilizada com objetivos claros. "Essas medidas afetaram desproporcionalmente imigrantes, refugiados, estudantes e comunidades marginalizadas e de baixa renda. Embora a escala e a intensidade da vigilância estejam aumentando, o problema não é novo", enfatiza Al Shafei.
Ninguém ignora as implicações da maquinaria que Trump está polindo e lubrificando. Um relatório preparado por diversas ONGs para a ONU fala da "evaporação dos direitos humanos" em referência ao que está acontecendo nas fronteiras terrestres dos EUA. "Uma relação mais próxima entre o governo e as empresas de vigilância, aliada à intensificação da vigilância nos EUA, representa uma ameaça real aos direitos e liberdades fundamentais", afirma Michael De Dora, pesquisador especializado em política americana na organização de direitos digitais Access Now. "O governo Trump valoriza a segurança nacional acima, ou mesmo em detrimento, dos direitos humanos e da privacidade. Membros de seu governo não estão apenas vigiando pessoas, mas até mesmo discutindo a suspensão de princípios democráticos fundamentais, como o habeas corpus".
A Europa não está imune ao que está acontecendo nos EUA. "Agências como a Frontex e a Europol estão investindo em bancos de dados biométricos, reconhecimento facial e ferramentas de monitoramento baseadas em IA que se assemelham muito aos sistemas já existentes nos EUA", explica Aljosa Ajanovic, analista do Instituto Europeu de Direitos Digitais (EDRi).
Voltando aos EUA, muitos observadores acreditam ser muito difícil limitar a aplicação de todos esses controles tecnológicos a estrangeiros. Nem mesmo os trumpistas mais ferrenhos, acredita De Dora, deveriam apoiar a implantação do Estado de tecnovigilância. "Uma vez que esse mecanismo seja aceito e esteja operacional, ele poderá ser usado contra qualquer um".