09 Mai 2025
Com Donald Trump e Benjamin Netanyahu, está avançando a sugestiva ideia de que existe uma humanidade que é lixo que pode ser despejado em estados-lixeiras, ou seja, nações com uma estatalidade inconsistente, incapazes de opor resistências, não muito mais do que meros espaços, carcaças à mercê dos abutres. Trata-se de uma evolução do pensamento colonial que já havia despontado na Europa em formas radicais (por exemplo, o nazismo num primeiro momento havia planejado deportar os judeus para o Madagascar, na época considerada a terra mais insalubre do planeta) e não totalmente estranha a experimentos mais brandos em andamento na UE.
A informação é de Guido Rampoldi, publicado por em Domani, 08-05-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
O criativo presidente estadunidense está prestes a despachar imigrantes ilegais para a Líbia, que não tem governo, pois tem dois, um dos quais é controlado por uma família, os Haftars, com quem a CIA tem certa familiaridade.
O primeiro-ministro israelense pensa mais alto: propõe atormentar os palestinos de Gaza, fazendo com que pequenas cotas deles morram diariamente de dificuldades e bombas, até que os sobreviventes vejam o exílio como uma libertação.
Em ambos os casos, a Europa, como de costume, resmunga, mas, na prática, parece incapaz de contrastar. No entanto, não se pode dizer que o assunto não lhe diga respeito, não apenas porque as “transferências” de humanidade-lixo aviltam seus valores fundamentais, mas também por considerações práticas: em Gaza ou na Líbia, onde mais os expulsos poderiam buscar refúgio se não no lado europeu do Mediterrâneo? E não seria essa, uma imigração em massa e sem controle, o pesadelo da União Europeia? Gostaríamos de considerar a ideia das “transferências” como o parto de duas mentes fracas, obnubiladas por delírios de onipotência, mas não é o caso. A política de Trump sobre a imigração ilegal é o único terreno em que a popularidade do presidente não está caindo. E a ideia de “transferir” os habitantes de Gaza para outro lugar é aprovada pela maioria do parlamento israelense. O que chamamos de “vontade popular”, à sua maneira, é respeitada: mas será que esse é o único requisito de uma democracia? Se Israel é “a única democracia no Oriente Médio, mesmo que amassada”, como garante um editorial do Corriere della sera, então devemos concluir que os “amassados” já deformaram o perfil do estado de direito liberal, a ponto de na Europa não podermos mais distingui-lo de uma democratura, ou seja, de um sistema misto como o regime em vigor na Turquia ou na Hungria.
Será que estamos escorregando nessa direção? Se uma limpeza étnica não passa de um amassado, punir com a deportação o direito de opinião quando exercido por estrangeiros, como já acontece em estados e universidades estadunidenses, seria apenas um arranhão. Mas aos nossos funileiros gostaríamos de lembrar como funciona com os amassados: mais cedo ou mais tarde, a repressão dos não-nativos se estende aos nativos e, quando isso acontece, é tarde demais para tomar medidas corretivas.
Os otimistas argumentarão que os planos de Trump e Netanyahu estão fadados ao fracasso. Os desafortunados que sonhavam com Nova York e se virão escravos de uma gangue líbia serão poucas centenas, inclusive porque o clamor suscitado sugerirá prudência até mesmo a Trump.
Quanto ao governo de Netanyahu, sua busca declarada por Estados falidos nos quais despejar os habitantes de Gaza não produziu nenhum resultado até agora (no máximo, o Sudão do Sul). Resta a opção radical: amassar os palestinos no sul da Faixa (a operação está em andamento) e, em seguida, forçar a fronteira com o Egito, de modo a “favorecer” o êxodo (“voluntário”, que fique claro: as democracias não deportam). Depois, também seria necessário forçar a fronteira com a Jordânia para esvaziar a Cisjordânia (“Judeia e Samaria”, em democratês bíblico).
Tudo isso provavelmente levaria a uma grande guerra no Oriente Médio, que Israel só poderia enfrentar se os EUA a apoiassem totalmente. Mas, por mais imprudente que o governo Trump seja em casa, é muito menos imprudente no exterior: é improvável que esteja disposto a se embrenhar em um conflito amplo e duradouro. Quando muito, ele tende a tirar o corpo fora, para grande consternação israelense. Assinou uma paz separada com os Houthis do Iêmen, que estão determinados a continuar disparando mísseis contra Israel até que o país se retire de Gaza.
Prospecta ao Irã um acordo pelo qual os aiatolás poderão desenvolver a energia nuclear para uso civil (com a tecnologia adequada, a transição de nuclear civil para o nuclear militar é questão de meses).
Mantém boas relações com a Turquia de Erdogan, o verdadeiro concorrente de Israel no Oriente Médio. Por fim, não se opôs quando a China realizou manobras militares no Egito, com voos de “advertência” de caças chineses perto de Gaza e o envio de um gigantesco avião espião.
Se ignorarmos as fanfarronices de Trump destinadas à sua audiência e formos à substância, encontraremos tentativas estadunidenses de parcial afastamento dos conflitos no Oriente Médio e nenhuma propensão para se deixar envolver em atritos militares. Nos espaços dos quais os EUA se retiram, entram China e Turquia, que são, considerando tudo, os verdadeiros beneficiários da política externa israelense. O Oriente Médio está mudando e já seria a hora que Itália e União Europeia tomassem ciência. Netanyahu e a direita israelense não só não são nossos amigos, como seu expansionismo só projeta problemas para nós.
A guerra em Gaza, a agressividade dos colonos na Cisjordânia, os bombardeios sistemáticos do exército sírio, que privam Damasco do único instrumento de que dispõe para salvar o país do risco de implodir em uma carnificina étnica, alimentam não apenas a instabilidade perto da Europa, mas também a disseminação do terrorismo islâmico e da imigração para a UE. Também seria útil para Roma adotar uma política externa mais proativa, nem que seja para desmentir a suspeita incômoda de que somos de fato cúmplices, nem que seja por ignávia, de uma repugnante limpeza étnica. Estamos torcendo pelos planos de paz árabes, aqueles sérios, mas rejeitados por Israel.
Talvez devido à resistência de um grande segmento do parlamento (especialmente da direita, mas não só) e ao “pilatismo” praticado por grande parte do jornalismo, não estamos nem mesmo entre os seis países europeus que intimam ao governo de Netanyahu que não prossiga com a expulsão de palestinos e a anexação de territórios (Espanha, Irlanda, Noruega, Eslovênia, Islândia, Luxemburgo), nem entre os que discutem se devem reconhecer o Estado palestino (entre eles, França e Grã-Bretanha). Com relação a um evento que orientará a história deste século, a Itália simplesmente não está presente.