A mensagem de paz de Mourad, o monge fundador com Paolo Dall’Oglio da comunidade monástica de Mar Musa, sequestrado pelo ISIS

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24 Junho 2019

Andrea Riccardi, juntamente com a Comunidade de Sant'Egidio, promoveu um encontro com o padre Jacques Mourad, cofundador da comunidade monástica de Mar Musa, sequestrado pelo ISIS em 2015 e autor do livro "Un monaco in ostaggio” (Um monge como refém, em tradução livre, publicado pela Effatà editrice). 

"Estava começando o oitavo dia de cativeiro. Quando eu vi um homem completamente vestido de preto, apenas seus olhos descobertos, seguidos por três indivíduos armados, entrando no banheiro que servia como minha prisão: eu disse a mim mesmo que a hora tinha chegado, era o fim, aquele homem teria me decapitado ali em breve. E, ao invés disso, ele estendeu a mão, apertando a minha. Naquele momento, a imagem mudou completamente. Não existe, não é possível que um líder do ISIS segure a mão de um padre cristão. Não é uma hipótese que possa ser tomada em consideração. Em vez disso, ele me disse para sentar, convidou os três homens armados para nos deixarem a sós e depois me perguntou como eu estava. Então ele usou uma palavra que eu nunca teria imaginado ouvir naquele contexto. É uma palavra que podemos traduzir com "retiro espiritual". Sim, ele me disse para aproveitar aquele tempo que iria passar com eles como um retiro espiritual. É uma palavra que os sufis usam, e não é concebível que um sufi milite no ISIS. Aquela palavra em árabe significa ‘tempo para ficar sozinho com Deus’. Eu acredito que é seja um tempo muito importante para todos". 

A reportagem é de Riccardo Cristiano Porpora, publicada por Formiche, 19-06-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.

O encontro com Jaques Mourad 

Esse foi um dos momentos mais intensos do encontro profundo e comovente promovido pela Comunidade de Sant'Egidio com o padre Jacques Mourad, cofundador da comunidade monástica de Mar Musa, sequestrado pelo ISIS em 2015 e autor do livro “Un monaco in ostaggio”(Effatà editrice, 15 euros). Quando o professor Andrea Riccardi, conversando com ele entre aplausos estrondosos e emoções profundas, pediu-lhe para entrar no relato daqueles "quatro meses", Jacques Mourad, sorrindo, gentilmente o corrigiu: "Quatro meses e vinte dias". São épocas ou períodos da vida que não aceitam descontos, mesmo para homens reservados como o padre Jacques. O resultado foi outro momento libertador, que permitiu recuperar o fôlego durante uma conversa profunda, na qual Riccardi e Mourad acompanharam pela mão as muitas pessoas que lotaram o grande salão nos complexos meandros dos dramas, dos pesadelos e dos sonhos dos homens do Oriente Médio. Não é sempre que se consegue fazer isso sem barreiras, sem muros ideológicos que encerrem em um único recinto todos os crentes de uma religião, e fazê-lo com um sobrevivente da barbárie do ISIS certamente tem um enorme valor cultural, que Sant'Egidio ofereceu a Roma, na sua Transtevere, a poucos metros do lugar onde a estampa em algumas camisetas determinou uma feroz agressão. Esse testemunho do padre Jacques não encontrou data e lugar mais apropriados. 

Seu sequestro foi duro, mas para aqueles que o ouvem falar também rocambolesco, que viu Mourad ser sequestrado na Síria central, depois ser conduzido pelo deserto, entre paradas cheias de sadismo, até a capital do ISIS, Raqqa, depois para Palmira, onde ele encontrou, praticamente na situação de sequestrados, todos os seus paroquianos. A graça da vida por não ter pegado em armas permitiu que eles retornassem ao seu pequeno centro, com a condição de que os serviços religiosos fossem celebrados sem o badalar dos sinos, em um porão, não na igreja. Eles ainda eram prisioneiros, mas em sua casa, e um grupo de muçulmanos amigos desde sempre organizou sua fuga em massa sob condições incríveis, transportando-os para um lugar seguro escondido em vagões de gado ou sob fardos de trigo ou outros meios providenciais, através do deserto. Alguns desses amigos muçulmanos pagaram por isso com suas vidas, mas nunca foi possível averiguar pela mão de quem. As suspeitas mais óbvias não parecem coincidir com aquelas que talvez sejam as mais bem fundadas.

O livro 

É o herói da força da mansidão, da força da fraqueza, Jacques Mourad, que por cerca de duas horas lembrou seu cativeiro sem jamais mencionar aquele homem que o açoitou sem motivo. Quantos pensamentos devem ter se sobreposto em sua cabeça para manter clara e reta a linha de um relato que o professor Andrea Riccardi coadjuvou desde o início: o livro, a história e a vida de Jacques Mourad não falam de "nós e eles", não relatam um mundo que opõe blocos pré-estabelecidos e compactos. Aqueles blocos não existem, e Andrea Riccardi quis partir exatamente disso, da apresentação desse livro de Jacques Mourad, "Un monaco in ostaggio”, e de seu autor, como é feito com um livro e um autor que se acompanham em mundos que por serem assim, são articulados, compostos de pessoas, por rostos e, portanto, por histórias diversificadas entre si. O padre Jacques Mourad valorizou essa diversidade e quis prestar tributo, em outro momento de imensa intensidade, a seu amigo Paolo Dall'Oglio por tê-la mostrada a ele, por ter-lhe permitido vivê-la e amá-la. Possível? 

Mourad falou sobre o momento em que foi acompanhado pela primeira vez a Mar Musa, o mosteiro no deserto que Dall'Oglio estava restaurando. Mais que Dall'Oglio ou o mosteiro, foi o deserto que o atraiu. Uma atração que ele sempre sentiu e nunca satisfez. Chegando lá ele se apresentou ao jesuíta romano, dizendo de si mesmo: "Sou um seminarista" e enfatizando com satisfação o nome da cidade onde se localizava o seu seminário. Dall'Oglio limitou-se a responder: "Bem, nos vemos mais tarde na missa". Não foi uma abordagem fácil, o orgulho de si mesmo e o aborrecimento por aquele sermão em que ele falou muito sobre o Islã, mesmo assim levaram o padre Jacques, ao longo do tempo, a ver que ele vivia entre os muçulmanos, mas sem conhecê-los. Assim nasceu uma amizade profunda, que os viu logo se tornarem fundador e cofundador de uma comunidade que abre suas portas como as mães fazem. 

"Nossos mosteiros na terra do Islã - disse Dall'Oglio certa vez - são a melhor prova de que não há melhor proteção do que a boa vizinhança". Uma mensagem tão simples e profunda que ontem Jacques Mourad, comovido por lembrar em público o amigo que foi sequestrado em 2013 e de quem nada se sabe, contou com tantos desdobramentos, tantas viradas. "Nós, cristãos do Oriente árabe, temos orgulho das nossas identidades como coptas, maronitas e assim por diante. É um orgulho... poderoso, e toda vez que eu falava com Paolo isso me deixava tremendamente irritado, eu achava que ele não me entendia. Depois eu compreendi: aquele orgulho poderia se tornar um muro e ele queria me ajudar a me livrar dele. E fazia isso com suas mãos, cavando dentro de mim, para me libertar daquele muro e me fazer ver todo o panorama".

A figura de Dall'oglio 

Tradutor de árabe para muitos encontros de diálogo promovidos pela Comunidade de Sant'Egidio, Paolo Dall'Oglio foi como um terceiro dialogante com dois amigos, Jacques Mourad e Andrea Riccardi, e sua espiritualidade de “ apaixonado pelo Islã, crente em Jesus”, acompanhou o amigo sírio e o professor romano em infinitos desdobramentos de uma noite que no final trouxe à tona, nas palavras do monge sírio, também a urgência de comprometimento social. Aconteceu quando o padre Jacques, subitamente esquecendo seu sorriso, gritou a infinita necessidade de justiça de milhões de sírios. Aqueles expulsos da Síria e aqueles despejados em campos de refugiados dentro da Síria: "Estamos falando de milhões de pessoas, dentro e fora da Síria", mas deles não se fala. A justiça pela qual o padre Jacques invocou urgência, mas que ninguém exige, é aquela da qual parte seu ser cristão da Síria, certo de que, para sê-lo realmente, todos os dias deva buscar justiça para milhões de muçulmanos sírios, seus irmãos. Para aqueles que nos sofás romanos falam sobre guerras entre religiões (não entre impérios) o livro do padre Jacques dificilmente poderá ser um antídoto, e ao seu erguer muros contra os migrantes "invasores", não será capaz de abrir os olhos a profunda reflexão do professor Riccardi sobre a recente viagem à península arábica do Papa Francisco, onde o Papa celebrou diante de cerca de duzentos mil fiéis: os cristãos dados como extintos no Oriente Médio, talvez estejam retornando? E retornam sob a veste de pobres migrantes? De pobres trabalhadores sem cidadania, sem direitos? Estaria nascendo ali, entre aqueles trabalhadores nunca mencionados, nunca vistos, o novo cristianismo de uma terra cansada de sofrer a violência do ódio e das ideologias? O cerco mediterrâneo estava se fechando, o olhar do historiador captava o que não queremos ver, como a sede de justiça com a qual encerrou seu discurso o monge sequestrado pelo ISIS, Jacques Mourad.

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