"A Igreja deve aprofundar na vida do povo, ver como aproveitar essa riqueza cultural". Entrevista com Ribelino Ricopa

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07 Março 2019

Um dos grandes desafios da Igreja na Amazônia é entender a vida e o pensamento dos povos indígenas, suas cosmovisões de mundo, tão distantes do pensamento ocidental, que ainda constitui o paradigma, quase exclusivo, entre os católicos.

Você precisa ouvir, e deixar de lado ideias preconcebidas, que negam o que é óbvio para um indígena. "Um padre me disse, como uma árvore vai ser seu avô, ou como ele será o seu primo, ou como vai ser seu parente. Esse animal, como será a sua família, como vai proteger você, você é humano e ele é animal. Esse espírito como você vê, como você sente, é difícil".


Ribelino Ricopa Alvis (Foto: Luis Miguel Modino)

Quem passou por essa situação é Ribelino Ricopa Alvis, indígena do povo Kukama, que vive no rio Marañon, no distrito de Parinari, Amazônia peruana. Catequista na comunidade, não hesita em dizer que "os kukamas acreditamos que temos três mundos", o que não impede afirmar a existência do Deus cristão, que percebem na natureza, nas estrelas.

O indígena Kukama afirma que "também nós cremos em Deus, aquele Deus que desceu para para tornar-se homem, que se humilhou aqui", que o leva a dizer que "a Igreja deve aprofundar no povo e ver como pode aproveitar essa riqueza cultural que o povo tem". Para os Kukamas é muito importante o mundo dos sonhos, onde encontram o caminho a seguir, e o mundo dos espíritos, que estão presentes nas árvores, na água, que os protegem.


Mapa do Rio Marañon. Fonte: Sierra Rios

Aos poucos, a Igreja Católica está ajudando a trazer na vida da comunidade aquilo que faz parte da cultura e tradição local. A Igreja também se tornou suporte para as demandas que os povos da Amazônia fazem aos diferentes governos.

A entrevista é de Luis Miguel Modino.

Eis a entrevista.

Como é a vida do povo Kukama?

A vida do povo Kukama está muito interligada com os seres rituais. Nós Kukamas acreditamos que temos três mundos, mas todos os mundos estão conectados com o povo. Por exemplo, temos um mundo habitado por espíritos, bons e maus, que está nos céus, e depois outro mundo subaquático onde há pessoas.

Muitas vezes, parentes de nós vão para lá para serem protegidos. Quando na Terra não se sentem seguros, eles vão lá e de lá também estão protegendo os familiares que ficam aqui na Terra. Tudo o que é relacionado com os peixes, com as árvores, nós kukamas dizemos que não são apenas árvores ou peixes, eles também vêm fazer parte da nossa família.

Uma árvore medicinal não é apenas uma árvore, nós dizemos que pode ser o nosso avô ou o médico da aldeia, ou o nosso primo, ou o nosso irmão. Todos os sobrenomes kukamas nascem de algumas plantas, de animais, de peixes. Por exemplo, o nome Pacaya é um sobrenome Kukama, o que significa coração de majás. Quando alguém em nossa família fica doente, a primeira coisa que eles fazem nossos xamãs é chamar os espíritos de outro mundo para vir aqui e nos tratar, curar-nos.

Agora o povo Kukama corre um grande risco por causa de todos os projetos promovidos pelo Estado, que, por vezes, não consideram estas coisas de nosso povo. Agora está o tema da hidrovia, porque nós kukamas estamos relacionados com as pessoas que vivem na água. Há também pessoas que são nossos parentes estão lá, que de lá eles estão protegendo a terra, suas famílias, está cuidando de seus entes queridos que deixaram na terra.

Nós, nos comunicamos com eles através de sonhos, eu sonho com ele, ele me diz tudo o que tenho que fazer e o que eu não tenho que fazer, ou o que está por vir, ou o que vai ser. Nós Kukamas sabemos o que vai vir, se vai ser uma abundância de alimento, ou vai ser uma grande crise, nós sabemos. Nós preparamos o armazenamento de produtos, ou, por vezes, dependendo dos sonhos que temos, o que nos fazem sonhar os espíritos, vamos ver como nos acomodar para poder reagir ao que vem.

Portanto, para nós, se não há nenhuma conversa dos espíritos, o povo Kukama se sente só, não está protegido, porque não há força para os Kukamas se não falar dos espíritos, e olhar para as árvores, não apenas como árvores. O que é muito importante para o povo Kukama é que todas as coisas que o mundo ocidental olha como coisas materiais, nós as vemos como pessoas. Porque estamos lá, nos relacionamos com esse peixe, aquela árvore ou esse espírito.

Falando sobre a interconexão, se acontecer alguma coisa aqui vai acontecer na Europa, mas se algo acontecer com os espíritos que estão na água, a quem vai doer? Então eu não o vejo, não está tão dentro da gente, o mundo ocidental não olha para ver se algo acontece com esse espírito, que não é visto.

Como o povo kukama combina tudo isso com o cristianismo?

Nós também acreditamos em Deus, que Deus desceu para se tornar um homem, que se humilhou aqui. Se você quer entender tudo isso, a Igreja tem que aprofundar no povo e ver como pode aproveitar essa riqueza cultural que o povo têm. Eu falo isso como povo Kukama, mas como na Amazônia existem muitos povos, cada povo tem seu modo de pensar, agir, viver, mas sem se afastar do Deus em quem cremos, que criou toda a criação.

Nosso povo Kukama não está dizendo que o Deus cristão, católico, não existe, dizemos que Ele existe. Nossos antepassados, quando os primeiros missionários vieram, disseram-lhes que eles, como missionários, chegaram para lhes dar a cruz, porque a cruz é o sinal dos cristãos. Os mais antigos, que não tiveram contato com o cristianismo, disseram que a cruz já sabiam disso. Onde? No céu. O povo Kukama, no céu, é dirigido pelas estrelas, por outras coisas que mostram que Deus está vivo, presente, e acreditamos que Deus existe. Por exemplo, em maio, uma cruz aparece no céu, e por essa cruz o povo Kukama também se guiou, para ver se haveria uma abundância de comida.

Nas estrelas, quando alguém vai morrer, é visto nas estrelas que se juntam, se vai haver casamento no povo Kukama, é visto nas estrelas, na lua, no sol. O povo Kukama não está dizendo que isso do cristianismo não é verdade, mas que você tem que ver, como você diz, como combinar isso. Muitas vezes temos párocos que não são da região e é difícil de entender. Para o mundo ocidental, é difícil entender tudo isso. Um padre me disse como uma árvore pode ser seu avô ou como pode ser seu primo ou como pode ser seu parente. Esse animal, como pode ser a sua família, como ele vai lhe proteger, você é humano e ele é animal. Esse espírito como você vê, como você sente, é difícil.

O Papa Francisco insiste na necessidade de escutar, conhecer a realidade, para que aquele que é missionário, especialmente entre os povos indígenas da Amazônia, possa penetrar nessa realidade. Você acredita que há um esforço por parte da Igreja, dos missionários, de poder conhecer e realizar esta enculturação do Evangelho?

Tenho certeza que a Igreja na Amazônia está se esforçando para chegar aos necessitados, os mais pobres, para ver como o povo Kukama crê. Vejo que a Igreja e os responsáveis das paróquias estão trabalhando nessa questão, porque estão coletando muitas coisas. O povo Kukama tem sido muito invadido em seu território, porque eles foram assentados nas margens dos rios maiores, ao contrário de outros povos. O que a Igreja está fazendo é tentar recuperar a linguagem, ser capaz de traduzir algumas coisas, porque não é o mesmo falar em sua própria língua do que em espanhol. A Igreja está fazendo o esforço para poder entrar nessa realidade e ser capaz de proclamar o Evangelho como nós.

Existe algum material na língua kukama para poder celebrar os sacramentos?

Na minha região, o Pai nosso já estamos rezando na língua Kukama, a explicação da Palavra não é mais algo trazido de fora. Alguns meios são usados, por exemplo, no batismo, já que vivemos em um mundo de espíritos e precisamos de alguém para nos proteger, fazemos uma imposição da Bíblia e no que acreditamos.

No povo Kukama, nossos ancestrais não sabiam ler, não sabiam interpretar a Bíblia. Embora não soubessem ler, queriam a Bíblia, para colocá-la no travesseiro e que a Bíblia os fizesse sonhar, para que pudessem encontrar outra maneira do povo conhecer. Desta forma, o Kukama se sente evangelizado. Além disso, quando a água é derramada, se a água é vida, temos que cuidar dela, protegê-la. Para o povo Kukama, a água é muito importante, não só para o povo Kukama, mas também para outros grupos. Alguns grupos se guiam pela montanha, mas para nós, se não houver rios, o povo Kukama não existe.

Em uma Amazônia, onde cada vez mais, é possível que os rios e a selva acabem, como o povo Kukama reage?

Estamos tentando fazer incidência, chamar a atenção para mais grupos, que nossa voz seja ouvida nas reuniões, para que ela possa promover ações em defesa de todos. Já estamos tomando consciência que os animadores, ou os próprios kukamas, precisam entender o protagonismo, que não podemos esperar mais de nossos governantes ou de outras pessoas.

Nesse sentido, a Igreja está ajudando?

Sim, está ajudando muito, porque faz uma ponte com as instituições. Se eles não escutarem nossas demandas, nós vamos à paróquia ou ao vicariato, e através deles eles nos formam em reuniões e nos ajudam a conversar com as instituições correspondentes.

O Papa Francisco, em Laudato Sí e no Documento Preparatório do Sínodo para a Amazônia, fala da ecologia integral. Como o conceito de ecologia integral é entendido pelo povo Kukama?

Tivemos várias reuniões como povo, tentando ver a mensagem do Papa sobre a ecologia integral, a Casa Comum e tudo mais. Se acreditamos que temos três mundos, ver se esses dois mundos, dos quais o Papa fala, estão interligados. Nós pedimos aos nossos párocos, e eles tentaram nos explicar que o Papa fala em geral, ele se refere aos espíritos e tudo o que existe.

Se as pessoas só se relacionam com as pessoas, para nós, isso não é algo integral. Na mensagem do Papa, queremos ver que essa integração ocorre não só com as pessoas, mas também com a natureza, com os seres que habitam esse espaço. Não estou convencido, porque podemos falar sobre a ecologia integral, mas se não nos adentrarmos lá, isso não é essencial para nós. Se eu não respeitar que essa planta tem mãe, tem um espírito que te serve e que te protege, não estou me integrando a essa planta. Eu posso me integrar à pessoa, ou me relacionar com outras pessoas, mas se eu não me relacionar diretamente com o espaço da Amazônia, não tenho muita clareza sobre isso.

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"A Igreja deve aprofundar na vida do povo, ver como aproveitar essa riqueza cultural". Entrevista com Ribelino Ricopa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU