Desafios da equipe econômica de Haddad vão além das metas. Terá de enfrentar a oposição político-ideológica. Entrevista especial com Luiz Gonzaga Belluzzo

O professor aponta que a maior resistência é de uma elite que não aceita a gestão de um ex-metalúrgico e de um partido que seja dos trabalhadores

Fernando Haddad, que foi anunciado como Ministro da Fazenda do novo governo Lula | Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom - Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | 02 Janeiro 2023

A metáfora de trocar o pneu do carro com ele rodando é, talvez, a mais ilustrativa para representar os desafios da equipe econômica do novo governo Lula, comandada pelo futuro ministro da Fazenda Fernando Haddad. Segundo Luiz Gonzaga Belluzzo, a nova administração precisa resolver problemas emergenciais, como a questão da fome e a manutenção de recursos para programas que deem conta dessa e de outras situações. “É por isso que o Haddad pediu um prazo até a metade do ano para criar a regra fiscal, agora ele tem que cuidar da emergência. E a emergência já foi cuidada pela decisão do Gilmar Mendes e pela passagem da PEC da Transição; está encaminhada essa questão. Agora, há um tempo para discutir, com mais profundidade, a questão da regra fiscal”, completa.

Na entrevista, concedida via videochamada ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Belluzzo detalha o que compreende como uma regra fiscal apropriada. E se a questão emergencial está encaminhada, basta constituir essa regra e buscar atingir as metas? Para Belluzzo, não. Ele reconhece que “é preciso reorganizar as políticas econômicas que foram (…) muito dispersas, desarticuladas no período Paulo Guedes”. Entretanto, o nó está justamente em convencer parte da sociedade dessa reorganização. “Para cumprir esses objetivos, não precisamos apenas definir as metas, etc. Vai precisar enfrentar a oposição política/ideológica do establishment brasileiro”, adianta.

Belluzzo lembra que desde que Lula foi eleito, em meio ao clamor pelo anúncio do novo ministro, havia odes para que não começasse a gastança. “Isso é uma visão tosca de como funciona uma economia monetária financeira capitalista, porque a renda é criada pelo gasto. Infelizmente, o capitalismo inventou isso e, na verdade, criou as instituições incumbidas de regular esta prática”, avalia. Por isso, considera que a questão extrapola um estrito senso de conservadorismo econômico e se funde num sistema social, de um conservadorismo ideológico. “O conservadorismo da direita brasileira é uma coisa pungente e, fundamentalmente, a razão é esta: não pode dar certo um governo que se denomina dos trabalhadores e que tem um presidente que foi metalúrgico”, conclui.

Belluzzo vê o novo momento como “de recuperação e de transição para uma sociedade mais civilizada”. Isso porque, na visão ampla de economia como um processo econômico-social-político, a nova equipe tem condições de superar a pecha de ser a favor do mercado econômico e contra as pessoas ou vice-versa. Essa visão já está dentro do front do Ministério da Fazenda, pois o número dois da pasta é Gabriel Galípolo, jovem muito próximo de Belluzzo e que compactua com seu conceito de civilização moderna de sociedades ocidentais. “Qual é o ideário das sociedades modernas ocidentais da qual o Brasil faz parte? É a boa vida das pessoas, é fazer com que a sociedade proporcione boa vida aos cidadãos. Isso significa transitar, realmente, para uma utilização do potencial que essa economia monetáriacapitalistaindustrial oferece”, explica.

Belluzzo em conferência no IHU | Foto: Ricardo Machado

Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano e Caribenho de Planejamento Econômico e Social – ILPES/CEPAL e doutor em Economia pela Universidade de Campinas – Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. É um dos fundadores das Faculdades de Campinas – Facamp, onde é professor. É autor de Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (São Paulo: Facamp/Contracorrente, 2017), Capital e suas metamorfoses (São Paulo: Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Campinas: Facamp, 2009), Temporalidade da riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo (Campinas: Oficinas Gráficas da Unicamp, 2000), entre outros livros.

Confira a entrevista.

IHU – Como avalia a nomeação de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda? O que a indicação do ministro sinaliza sobre possíveis mudanças de rumo na pasta?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Fernando é um velho membro do PT, militante, foi prefeito, tem experiência administrativa. Também tem uma formação ampla, é formando em Direito, com mestrado em Economia e doutorado em Filosofia. Então, podemos dizer que é uma pessoa bem calibrada para exercer o cargo, além da experiência política que ele tem.

Ele vai enfrentar muitas dificuldades. É preciso reorganizar as políticas econômicas que foram, para dizer o mínimo, muito dispersas, desarticuladas no período Paulo Guedes. E mesmo se considerarmos que Guedes tem um ideário liberal, ele não conseguiu executar. Estava olhando algumas manifestações de economistas sobre a gestão dele e todos tentaram isentá-lo pela desarticulação que ocorreu no país. É claro que podemos argumentar que houve a pandemia, a guerra na Ucrânia, e outras circunstâncias que agravaram a elevação dos preços dos combustíveis. Ainda assim, foi uma gestão bastante desorganizada, apenas com declarações bastante ideológicas; não gosto muito da palavra ideologia porque ela quer dizer outras coisas também, mas é o que usamos.

Desafios para a reorganização

Qual é o problema da reorganização? É preciso enfrentar problemas de curto prazo, como o de garantir recursos para o Auxílio Brasil, e de longo prazo, como o planejamento do investimento público em infraestrutura que caiu aos níveis mais baixos dos últimos anos. O investimento que está determinado não consegue nem sequer cumprir o dever de enfrentar a degradação, a depreciação dos ativos.

Para cumprir esses objetivos, não precisamos só definir as metas, etc. Vamos precisar enfrentar a oposição política/ideológica – vou repetir de novo essa palavra – do establishment brasileiro. Estamos observando que, desde que Haddad foi indicado, e mesmo antes, quando a imprensa estava pedindo a indicação do ministro, surgiu uma série de restrições e ataques. É o caso da ideia de muitos jornalistas que colocaram nas manchetes a ideia de gastança. Isso é uma visão tosca de como funciona uma economia monetária financeira capitalista, porque a renda é criada pelo gasto. Infelizmente, o capitalismo inventou isso e, na verdade, criou as instituições incumbidas de regular esta prática.

Não é que o Haddad ou o Gabriel Galípolo, [1] que escreveu livros comigo, têm a ideia de que se pode gastar absurdamente. Na verdade, é preciso organizar o gasto porque se não fizer, nem mesmo o setor privado terá um impulso de investir por se sentir desamparado e inseguro.

Então, há uma questão que estou chamando impropriamente de ideológica porque não é o que corresponde imediatamente aos interesses de uma maneira geral do setor privado, para simplesmente uma tentativa de restringir um governo que consideram não conveniente para eles. Digo isso porque marca sobretudo a presença de um presidente que foi metalúrgico e de um partido que é dos trabalhadores. Isso eles não podem admitir, porque o conservadorismo da direita brasileira é uma coisa pungente e, fundamentalmente, a razão é esta: não pode dar certo um governo que se denomina dos trabalhadores e que tem um presidente que foi metalúrgico. Isso é que define as reações e restrições deles, não é nenhuma questão mais racional. Sempre digo que a economia dos economistas conservadores não quer explicar, quer justificar o poder deles. É isso. Não é para explicar nada, porque não explica coisa alguma.

IHU – Iria perguntar se o que está por trás dessas reações e oposições a Lula e o PT é um conservadorismo econômico, mas o senhor demonstra que não é nem isso. É quase uma “pecha”, correto?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Precisamos olhar e compreender a multiplicidade das formas que assumem as posições das camadas sociais e isso não se restringe a um debate econômico. É um debate sociopolítico-econômico. Aí entram todas as dimensões da vida social. É artificial essa separação entre sociologia, economia e política. Academicamente é verdade, mas no movimento da vida não é verdade.

IHU – Alguns economistas avaliam que a nomeação de Haddad sugere que Lula não cederá às pressões do financeirismo, enquanto outros dizem que haverá um inevitável financeirismo na gestão. Como vê tudo isso? O que podemos esperar da relação do novo governo com o ente chamado mercado financeiro?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Você colocou muito bem ao qualificar o mercado como ente. É um ente mesmo que deseja seu funcionamento, suas opiniões e as especifica a partir de uma visão abstrata da sociedade. Sou muito empenhado em recordar que Marx criou o conceito de abstração real. É criar formas que suprimem as características vitais, individuais ou humanas das pessoas para os transformar em engrenagens de uma forma social.

Então, o mercado tem isso, ele se manifesta com as mesmas opiniões coletivamente, pois o mercado é uma forma social constitutiva do capitalismo. Não adianta demonizarmos o mercado. Temos que fazer a crítica e a crítica sugere que eles perseguem seus objetivos exclusivamente. Eles só se preocupam com os movimentos, as relações e os resultados financeiros de suas ações; não têm preocupação com o que acontece com uma pessoa que passa fome.

Quando pergunta se os agentes do mercado não se preocupam com que as pessoas estejam passando fome, é importante perceber que a questão não é que não se preocupam, mas eles não podem se preocupar. Podem até se preocupar como o Joãozinho, Ruizinho, Carlinhos, podem se preocupar humanamente, mas como operadores do mercado eles não podem, porque as regras de acumulação monetária se lhes impõem; eles são constrangidos a funcionar assim. Se exigimos dessa forma social que eles se comportem como uma figura social, como alguém dentro de casa, conversando com a mãe, com as filhas, não vamos conseguir explicar nada. Temos que que entender que quando eles se manifestam como mercado, manifestam-se com essa estrutura de distribuição de recursos que é importante para o capitalismo.

Usando o mercado

Essa estrutura de distribuição de recursos pode ser usada de maneira muito eficaz e produtiva, como foi. É o caso da história da II Guerra Mundial, o pós-guerra, em que na Europa o mercado financeiro foi usado para impulsionar o crescimento, o chamado controle do crédito e a repressão financeira. Na época, esses impulsos foram abafados, eles que são institucionalmente os impulsos menos favoráveis a um avanço social e econômico.

Com isso, o mercado se tornou um servo das melhorias das condições de vida das pessoas. O Brasil, de uma maneira diferente, fiz isso no período do desenvolvimento mais intenso com Juscelino Kubitschek, ou mesmo no caso do milagre brasileiro. Não podemos esquecer que usamos intensamente essa capacidade do mercado de estimular o crescimento da economia. Sobre isso sempre converso com [Antônio] Delfim Netto [economista, e ex-ministro da Economia na década de 1960].

IHU – Sobre o governo eleito: o que esperar da relação com o mercado? O que podemos prever desses primeiros movimentos?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Sinto que vai ser uma relação de aproximação e conflito. Mercado e Estado são irmãos, amigos e inimigos, pois o mercado não pode prescindir do Estado. Veja o que aconteceu em 2007/2008, a crise em que o mercado soçobrou por conta de suas ações sistêmicas. Não é que eles cometeram loucuras, é que a loucura faz parte do jogo. Mas, nessa ocasião, foram salvos, resgatados pelas ações dos bancos centrais que ampliaram muito seus balanços.

E o jogo é sempre este. Nouriel Roubini [2] costuma dizer que o problema é quando tudo funciona bem, pois neste momento é quando as loucuras são cometidas, o que acaba levando a uma situação muito difícil. Aí o Estado precisa se impor porque a gestão monetária financeira, incluída a questão fiscal – da qual eles vivem falando e não conseguem expressar direito o que é –, é uma combinação da ação do Estado com o setor privado.

Falo de uma relação amigo/inimigo. Não é que podemos brigar com o inimigo, não dá para brigar com o inimigo. É preciso restringir ou disciplinar sua ação, mas manter essa relação enquanto a economia for capitalista. Espero que, na transição, não façam como fizeram na União Soviética, em que o Stalin queria acabar com o dinheiro. Se for uma transição para uma sociedade melhor, mais equânime, justa, etc., que seja como Marx achava que o socialismo tinha que nascer.

Quando Marx falava das contradições, não quer dizer que as contradições sejam coisas ruins. A contradição é uma forma de movimento, a contradição impulsiona na direção de outra forma. Isso é o que Marx pensava a partir de Hegel. Embora tenha gente que pense o contrário, um amigo me disse que Marx não era dialético. Tá, bom [risos].

IHU – Não era dialético, apenas lia Hegel.

Luiz Gonzaga Belluzzo – [risos] É isso, não era dialético. Só lia Hegel.

IHU – A partir do que o senhor coloca, seria interessante pensar na distinção entre uma elite, que resiste a esse governo eleito, e o mercado, que pode fazer suas concessões e aproximações. Podemos pensar assim, ao olhar para esse jogo de acomodações?

Luiz Gonzaga Belluzzo – É um jogo. Nesse jogo, nessa relação, temos aproximações e afastamentos. Há pessoas na elite que têm uma visão diferente dessa de resistência. O que estou falando é que o mercado é um sistema, e quando ele se manifesta, manifesta-se sempre na mesma modalidade. Vimos o que aconteceu no New Deal, por exemplo; foi uma derrocada, depois de um certo tempo. Afinal, quando o sujeito está se afogando, ele aceita qualquer mão para o tirar da água e a mão do Roosevelt tirou, até de uma maneira muito inteligente, mas logo depois começaram a surgir as restrições e oposições.

Como disse, é o fenômeno da abstração real: a pessoa não pode, ela é conformada nessa maneira de ser controlada pelo valor, pelo dinheiro. Na verdade, ela não pode aceitar que o Estado avance demais porque isso é visto como uma ameaça à liberdade de acumular. Veja o caso do J.P. Morgan com o Roosevelt. Ele pedia para os funcionários cortarem a foto do Roosevelt antes de o jornal entrar na sala dele, pois não queria ver nem a cara do [presidente] Roosevelt. Certa vez, Morgan chegou de viagem e deu uma declaração agressiva contra Roosevelt, que fez com que este buscasse um assessor, membro do Departamento de Justiça, porque queria processar o empresário e aí houve uma negociação.

Se vermos a questão em diferentes países e dimensões, vamos observar que ela se repete. É preciso entender que as pessoas não são boas ou ruins, mas ocorrem disfunções da sua situação social.

IHU – É consenso que o teto de gastos representa um entrave à reconstrução do Brasil. A partir das declarações de Lula e Haddad, como essa questão tende a ser enfrentada?

Luiz Gonzaga Belluzzo – O teto de gastos já demonstrou sua disfuncionalidade porque foi rompido por quem o criou. Ele foi rompido em um valor expressivo, mais de R$ 700 bilhões, porque é disfuncional. Em nenhum lugar temos uma regra tão esdrúxula e desmobilizadora como o teto. A regra americana é o teto da dívida. Frequentemente, quando está se aproximando do teto, o que faz o Congresso Americano? Baixa uma resolução e sobe o teto da dívida.

Essa história do teto de gastos no Brasil é, realmente, uma inversão. O pessoal chama de jabuticaba; eu não gosto de falar isso porque gosto muito da fruta [risos]. Mas é uma impropriedade fiscal porque na economia em que nós vivemos – monetária, financeira e capitalista – inexiste uma forma rígida, ela flutua. Há séculos os economistas discutem o caráter cíclico da economia capitalista. O recomendado é que se considerasse, na regra fiscal, essa característica da economia.

Uma política fiscal anticíclica, que é uma característica que deve haver, precisa de um regulador do ciclo. O gasto privado oscila segundo as expectativas dos empresários. Em um momento de auge, é possível entrar numa situação de dificuldade ou em um declínio econômico, como o que aconteceu aqui, com Dilma Rousseff em 2014. Ela estava no ponto mais baixo do ciclo depois ter crescido 7,4% em 2010, até chegar a 0,5% com déficit primário de 0,6%.

A receita flutua segundo a flutuação

Mais uma vez precisamos voltar a discutir como essa economia funciona. Quando houver um declínio da economia, certamente ocorrerá uma queda na receita fiscal, porque a receita fiscal vem da renda monetária. Por exemplo, quando compramos um bem qualquer, estamos pagando um imposto sobre o consumo, um ICMS ou outros impostos. Ao mesmo tempo, se a renda não gira, as pessoas não acumulam renda suficiente para pagar o imposto de renda. Então, primeiro é preciso explicar essa coisa elementar: a receita flutua de acordo com a flutuação.

Em segundo lugar, quando temos uma expansão muito virtuosa da economia, a situação fiscal é boa porque as pessoas conseguem receber. Como dizia [John Maynard] Keynes, uma inflação baixa ajuda a receita fiscal.

O Brasil agora está com superávit. Boa parte desse superávit vem da inflação. As pessoas não sabem, mas Keynes dizia que a inflação baixa é melhor que a deflação, porque na deflação a receita some.

Regra fiscal anticíclica

A regra fiscal é que tem que respeitar essas características; ela tem que ser anticíclica, tem que ter uma regra anticíclica muito bem definida para explicar como o Estado vai usar os recursos do orçamento para administrar. Essa é uma das dimensões importantes da reforma tributária e da fixação da nova regra fiscal. O Estado vai agir de modo a suprir as deficiências do sistema e, portanto, defender o setor privado dos riscos apresentados pela desaceleração. É simples assim, não precisa ser muito complicado, tem que explicar bem explicado.

Em geral, o que passa pela cabeça das pessoas, e a imprensa ajuda a difundir a ideia, é que o dinheiro está dentro de uma caixinha em que vamos lá e pegamos. Não é assim; ele é criado ao longo do processo de expansão, ou não é criado no período de retração da economia. Logo, tem que ser uma regra fiscal adequada à natureza dessa economia.

É por isso que o Haddad pediu um prazo até a metade do ano para criar a regra fiscal. Agora ele tem que cuidar da emergência. E a emergência já foi cuidada pela decisão do Gilmar Mendes e pela passagem da PEC da Transição; está encaminhada essa questão. Agora, há um tempo para discutir, com mais profundidade, a questão da regra fiscal.

IHU – Quais são os três pontos que destacaria como críticos a serem enfrentados pelo novo governo a partir dos levantamentos da equipe de transição? Que ações devem ser desenvolvidas para atacar esses pontos?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Há um ponto emergencial, que é o socorro às pessoas que estão em situação de precariedade, a questão da fome.

O segundo ponto, que está relacionado com o primeiro, é cuidar das relações do mercado de trabalho, por conta dos trabalhadores de plataforma; é preciso dar um destino a essas pessoas que estão trabalhando sem nenhuma segurança e sem nenhuma promessa de qualquer aposentadoria. Essa é uma questão muito importante que está se disseminando mundo afora. Precisamos caminhar na direção da formação de grupos que possam se administrarem; uma espécie de cooperativa. Tenho insistido nisso junto dos meus amigos que estão próximos do governo.

Não estou dando pitaco, porque isso não se faz, mas tenho sugerido que se pense bem nessa formação de cooperativas, tanto para os motoristas de Uber quanto para os entregadores de comida, porque é um trabalho muito precário e intenso. É preciso discutir como serão formadas as cooperativas. Esse é um ponto fundamental porque a ideia começa a se disseminar por todo o espectro das relações de trabalho capitalista.

A questão ambiental e o papel da Petrobras

A terceira questão, que é urgente e tão óbvia que eu nem precisaria dizer, é a ambiental. Na questão ambiental, o Brasil tem uma condição muito favorável para receber investimentos estrangeiros. Poderia emitir os greens bonds, que seriam acolhidos ou comprados por instituições financeiras privadas do mundo inteiro, além do que virá por conta das ações públicas do Banco Mundial. O Banco Mundial está se preparando para financiar tanto ações de meio ambiente quanto ações a favor do reflorestamento, no sentido de conter a devastação ambiental.

  

 O Brasil pode apresentar projetos – tem gente muito capacitada para isso – importantes, além da transição energética. Minha sugestão é que a Petrobras seja transformada em uma empresa de energia, deixando de ser uma empresa simplesmente de extração de petróleo. Ela pode fazer isso porque tem muita competência e qualidade técnica.

A transição é inevitável, porque não será mais possível nos apoiarmos nesse modo do combustível derivado do petróleo, o combustível fóssil. Por isso, eu aposto na potencialidade da Petrobras. Tenho conversado com o Guilherme Estrela, especialista em energia e Petrobras. Ele está de acordo com esse pensamento acerca da Petrobras e tem muito mais capacidade do que eu para definir as questões tecnológicas.

IHU – Como enfrentar a fome de forma emergencial?

Luiz Gonzaga Belluzzo – A fome mais direta nos leva a pensar de forma mais ampla. Os economistas mais conservadores querem fazer políticas focalizadas: dá-se o dinheiro, e o problema é solucionado. Não. É preciso fazer um programa em que a renda básica, ou a renda de cidadania, seja acompanhada de um programa de educação e do avanço social. Temos que qualificar as pessoas. Isso é muito importante e foi deixado de lado durante muito tempo, e eu digo isso aos meus amigos do PT, pois também foi deixado de lado nos governos petistas. Não basta dar o dinheiro; precisamos integrar as pessoas na sociedade de modo que se sintam respeitadas, que estejam recebendo um afago de dignidade; as pessoas precisam se sentir integradas na sociedade.
Temos a oportunidade enorme de combinar uma política social do auxílio emergencial com a qualificação e elevação da condição de vida. Uma elevação das condições de vida significa que a pessoa não apenas vai passar a consumir, mas também ser vista pelos outros com respeito e dignidade. Sinto muito isso ao conversar com as pessoas. Essa ação de combate à pobreza pode ampliar o seu escopo e incluir esse propósito.

Investimento em qualificação e economia do cuidado

Como está aumentando a esperança de vida do povo brasileiro, por que não treinar ou favorecer o treinamento de muitas pessoas como cuidadores e cuidadoras? No caso da saúde, é possível treinar e criar várias funções dentro da área, como enfermeiros. Esqueci de dizer que, na regra fiscal, deveríamos retirar o investimento dos dados correntes, separar o orçamento de capital, como sugeriu o Keynes, e nesse orçamento de capital deveríamos incluir a educação e a saúde. Seria um grande avanço incluir a educação e a saúde no investimento, porque correspondem ao conceito de investimento. É a minha modesta sugestão para que se caminhe nessa direção.

IHU – Fala-se de um governo Lula de transição. Transição do que para quê?

Luiz Gonzaga Belluzzo – É um governo de recuperação e de transição para uma sociedade mais civilizada. Qual é o ideário das sociedades modernas ocidentais da qual o Brasil faz parte? É a boa vida das pessoas, é fazer com que a sociedade proporcione boa vida aos cidadãos. Isso significa transitar, realmente, para uma utilização do potencial que essa economia monetária – capitalista – industrial oferece.

Repito esta questão industrial porque, agora, surgiu a ideia de que a indústria não é importante, mas a indústria está em todas as dimensões da vida. Inclusive, estamos usando um meio industrial para nos comunicar. É capaz de algum sujeito desapercebido achar que apenas estamos fazendo um serviço, mas o suporte que nos permite essa conexão é um serviço industrializado.

Até aquela divisão entre agricultura, indústria e serviços não está existindo mais, porque a agricultura também é supertecnificada. No plantio, na colheita e na irrigação se usam instrumentos industriais. As pessoas acham que a indústria é um conjunto de fábricas, mas não é mais.

Outra lógica produtiva

A multiplicação da capacidade produtiva permite uma maior liberdade aos indivíduos, a integração de todos. É nesse sentido que devemos olhar a produtividade. A produtividade do trabalho significa que serão necessários menos trabalhadores, mas, ao mesmo tempo, vai entregar as condições de acolher de novo esses trabalhadores em outras atividades, e que são mais livres. Por exemplo, eu sugiro que o esporte seja incluído como uma forma de integração, porque o esporte é uma atividade social, tem uma dimensão social muito importante. Convido as pessoas a pensarem novas formas de atividade e de emprego que incluam o esporte, a arte e a música. Essa é a visão que precisamos ter, é a nossa utopia. Se é para transitar para alguma coisa, temos que transitar na direção dessa utopia.

IHU – Um ano novo começa. Temos mais motivos para esperança em 2023?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Temos, sim. Como cristãos, devemos sempre ter esperança. Não lembro quem falou, acho que foi o João XXIII: “Devemos sempre ter esperança.” Para além disso, acredito que estamos atravessando o portal da esperança nesse momento.

Notas:

[1] Galípolo tem 40 anos, é ex-presidente do banco Fator e foi confirmado como secretário-executivo da Fazenda do futuro governo Lula. Com Belluzzo, escreveu “Dinheiro: o poder da abstração real” (Contracorrente, 2021), “A escassez na abundância capitalista” (Contracorrente, 2019) e “Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo” (Contracorrente, 2017).

[2] Economista iraniano-americano nascido na Turquia, professor emérito de Economia na Universidade de Nova York.

Leia mais