“O sem religião de hoje pode, inclusive, ser o evangélico de amanhã”. Entrevista especial com Silvia Fernandes

"Uma de minhas entrevistadas declarou que se considerava sem religião porque 'acreditava em coisas demais' e nenhuma religião seria capaz de abarcar todas as suas crenças", relata a socióloga

Foto: Pixabay

Por: Patricia Fachin | 01 Junho 2022

 

“Eu não tenho religião, sempre fui totalmente pura a isso. Eu acredito em tudo, primeiramente em Jesus, o único Deus todo poderoso. Também acredito em entidades, que me ajudaram muito e sempre que puderem vão me ajudar… Acredito em energias, no universo… Fui abrindo a mente com isso com o tempo, fui amadurecendo, no sentido de ter respeito por todas as religiões e ter a mente aberta com isso.” O relato de uma jovem de 21 anos, que ilustra o perfil dos jovens sem religião apresentados pela recente pesquisa Datafolha, "é mais comum do que se pensa", diz a socióloga Silvia Fernandes, que há mais de três décadas estuda as transformações no campo religioso brasileiro. Segundo ela, "a conjunção, sobreposição e interação entre sistemas ou objetos de crenças são manejos que o sujeito realiza livremente a partir da relação que estabelece com a realidade supramundana que pode ser o Deus cristão ou outras representações do que ele considera como sendo sagradas". Esse tipo de arranjo, acrescenta, "não representa necessariamente uma novidade em relação a como as pessoas lidam com a própria espiritualidade".

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Silvia esclarece que embora entre os jovens prevaleça a declaração de ser sem religião, "é preciso lembrar que exatamente nesta fase da vida os jovens estão estudando, buscando inclusão no mercado de trabalho, trabalhando etc. o que significa que lidam com a celeridade da vida de modo ainda mais intenso e priorizam seus planos de futuro em um país que não os inclui em termos de políticas públicas". Além disso, pontua, jovens que foram socializados em correntes religiosas do cristianismo questionam "implícita ou explicitamente a força coercitiva da instituição religiosa" e compõem "sua religiosidade, espiritualidade, sem um vínculo institucional necessário". Como exemplo, ela afirma que "eles podem acreditar em vários símbolos do cristianismo - Deus, Maria, Cristo, santos, anjos, Bíblia - mas afirmar a identidade de sem religião, fato que revela muito mais sobre a cultura religiosa brasileira fundada no cristianismo do que a adesão institucional stricto sensu".

 

Silvia Fernandes também comenta o desenvolvimento da religiosidade brasileira durante a pandemia de Covid-19. Assim como muitos, apressadamente, previam ou apostavam em uma nova forma de vida pós-pandemia, em relação à religiosidade tudo "segue com seguia no período anterior à Covid-19, caminhando em estradas nada retilíneas, com picos de devoção em momentos críticos, como convém ao permanente sentimento de desamparo humano, e com desvinculação institucional como convém aos sujeitos em tempos pluralistas e virtuais em que cada escolha dura até o próximo clique ou até a próxima onda pandêmica", conclui.

 

Silvia Fernandes (Foto: Research Gat)

Silvia Fernandes é professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, é mestra e doutora em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.

 

Dentre outros livros, é autora de Christianity in Brazil: An Introduction from a Global Perspective (Londres: Bloomsbury, 2021), Jovens religiosos e o catolicismo – escolhas, desafios e subjetividades (Rio de Janeiro: Quartet/FAPERJ, 2010), Novas Formas de Crer - católicos, evangélicos e sem-religião nas cidades (São Paulo: Promocat, 2009) e organizadora de Mudança de religião no Brasil – desvendando sentidos e motivações (São Paulo: Palavra e Prece, 2006).

 

Confira a entrevista.

 

IHU - Uma jovem de 21 anos que se diz sem religião, definiu suas crenças religiosas do seguinte modo: “Eu não tenho religião, sempre fui totalmente pura a isso. Eu acredito em tudo, primeiramente em Jesus, o único Deus todo poderoso. Também acredito em entidades, que me ajudaram muito e sempre que puderem vão me ajudar… Acredito em energias, no universo… Fui abrindo a mente com isso com o tempo, fui amadurecendo, no sentido de ter respeito por todas as religiões e ter a mente aberta com isso.” À luz dos seus estudos sociológicos sobre religiões, como interpreta e reage diante dessa declaração?

 

Silvia Fernandes - Esse perfil de pessoas sem religião é mais comum do que se pensa. A conjunção, sobreposição e interação entre sistemas ou objetos de crenças são manejos que o sujeito realiza livremente a partir da relação que estabelece com a realidade supramundana que pode ser o Deus cristão ou outras representações do que ele considera como sendo sagradas. Sabemos que esse tipo de arranjo não representa necessariamente uma novidade em relação a como as pessoas lidam com a própria espiritualidade. Talvez o dado novo seja que pessoas sem religião agora estão sendo pesquisadas e declarando suas crenças múltiplas, que podem estar também à margem de um dado sistema religioso. Em décadas anteriores, essa atitude de composição de crenças em um mosaico de religiosidades poderia ser encontrada entre os chamados católicos não praticantes que, à época, ainda afirmavam um vínculo. Nos estudos qualitativos temos visto que muitos dos que se declaram sem religião hoje afirmavam-se como católicos não praticantes anteriormente. Uma de minhas entrevistadas declarou que se considerava sem religião porque "acreditava em coisas demais" e nenhuma religião seria capaz de abarcar todas as suas crenças. Isso denota que há um predomínio da crença desvinculada frente aos sistemas que a religião oferece.

 

A mudança na formulação da própria identidade está relacionada ainda com a própria modernização religiosa brasileira que, dentre outros aspectos, tem refletido um processo em que o sujeito prima pela afirmação de si pautado em ideais de autenticidade. Especialmente para os segmentos juvenis, esses ideais se colocam com maior ênfase.

 

 

IHU - Segundo as primeiras pesquisas Datafolha do ciclo eleitoral de 2022, os jovens "sem religião" superam católicos e evangélicos entre a população de 16 a 24 anos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Nacionalmente, os dados são os seguintes: 49% dos entrevistados se dizem católicos, 26% evangélicos e 14% sem religião. Como interpreta esse fenômeno?

 

Silvia Fernandes - A pesquisa Datafolha traz uma tendência já conhecida pelos pesquisadores a partir do último censo ocorrido em 2010, isto é, dentre os segmentos populacionais que se declaram sem religião, predomina o segmento juvenil. É preciso lembrar que exatamente nesta fase da vida os jovens estão estudando, buscando inclusão no mercado de trabalho, trabalhando etc. o que significa que lidam com a celeridade da vida de modo ainda mais intenso e priorizam seus planos de futuro em um país que não os inclui em termos de políticas públicas.

 

Sabemos que a igreja e grupos religiosos demandam compromisso e muitas vezes os jovens não conseguem envolver-se com as atividades exigidas pelos líderes religiosos. O que temos visto nas pesquisas é que embora as igrejas também sejam espaços de encontro e sociabilidade juvenil, os jovens tendem a não priorizar o vínculo, mas antes, valorizam a experiência religiosa que pode ser vivida de modo mais fluido. Por isso temos falado em processos de desinstitucionalização que não são lineares, que acontecem de modo diverso quando associados a outras variáveis, além da faixa etária, como, por exemplo, camada social e gênero.

 

O peso das instituições passa a ser relativizado para o exercício, a prática da fé, mas também para o exercício da política, que segue sendo priorizada pelos jovens de modo muito mais alheio às instituições formais e mais ancorado nos grupos e redes de contato e sociabilidade.

 

 

IHU - A senhora declarou recentemente, comentando a pesquisa Datafolha, que "a maior parcela dos sem religião tem a ver com uma desinstitucionalização, o que quer dizer que o sujeito está afastado das instituições religiosas, mas ele pode ter uma visão de mundo e até mesmo práticas pessoais informadas por crenças religiosas". Pode nos dar exemplo de como isso tem acontecido na prática?

 

Silvia Fernandes - Um jovem que foi socializado em uma corrente religiosa do cristianismo, seja catolicismo, protestantismo clássico ou até mesmo os distintos pentecostalismos, ao passar a assumir a identidade de sem religião está questionando implícita ou explicitamente a força coercitiva da instituição religiosa. Assim, ele se vê livre para compor sua religiosidade, espiritualidade, sem um vínculo institucional necessário. Muitos trazem elementos da crença institucionalizada, mas não declaram uma identidade religiosa nas pesquisas censitárias. Eles podem acreditar em vários símbolos do cristianismo - Deus, Maria, Cristo, santos, anjos, Bíblia - mas afirmar a identidade de sem religião, fato que revela muito mais sobre a cultura religiosa brasileira fundada no cristianismo do que a adesão institucional stricto sensu. É importante dizer ainda que o jovem que se declara sem religião está assumindo uma condição identitária que pode não ser definitiva, mas possuir um caráter transitório. O sem religião de hoje pode, inclusive, ser o evangélico de amanhã. A ênfase está muito mais na experimentação contingencial do que na permanência.

 

 

IHU - Que fenômenos e mudanças têm observado em suas pesquisas sobre religião no Brasil desde os anos 1990 até os dias de hoje?

 

Silvia Fernandes - Dada a amplitude, a questão poderia ser abordada em um livro. Eu destacaria que a principal mudança seria a convivência - sem conflitos para as pessoas - com processos múltiplos de adesão religiosa que, no passado, eram vistos como exclusivos. Por exemplo, a ideia de conversão religiosa tem caído por terra dado o caráter predominantemente volátil das escolhas. Assim, a (re)composição religiosa - atitude típica da cultura religiosa brasileira - tornou-se mais intensa e menos previsível em termos das rotas que serão traçadas pelos sujeitos.

 

Outra questão - que parece contradizer a primeira - diz respeito ao retorno ou maior expressão do pensamento conservador sedimentado na moralidade familiar, com forte acento autoritário. O país viu isso acontecer no passado em vários episódios, mas sobretudo na "Marcha da família com Deus e pela Liberdade". Na década de 1990, com a redemocratização em curso, este tipo de manifestação e radicalização de grupos católicos e outros setores conservadores parecia estar definitivamente no passado.

 

Hoje vemos claramente segmentos católicos com discursos muito semelhantes ao que foi visto por ocasião da destituição de João Goulart. À época, líderes católicos engrossaram o coro contra o que chamavam de implantação do comunismo no Brasil. Nem seria necessário trazer exemplos sobre como essa realidade tem se repetido nos dias atuais. A diferença primordial parece estar relacionada ao fato de que atualmente, líderes católicos juvenis juntam-se a padres e religiosos nesses discursos que agora são acessados também fora dos templos, sobretudo nas redes sociais e no universo virtual.

 

Quando colocado em pauta o campo evangélico, a intensificação da oferta religiosa no universo neopentecostal não pode ser vista com uma mudança, mas o dinamismo dessas igrejas parece ser um dado a considerar. Nomes de igrejas curiosos como: "Florzinha de Jesus", "Cuspe de Cristo", "Jesus vem e você fica", "Bailarinas da Valsa Divina", "Igreja Evangélica do Pastor Paulo Andrade, o Homem que vive sem Pecados (É o Cristo em pessoa!)" demonstram o personalismo das lideranças e acentuam uma característica da natureza do neopentecostalismo que é o diálogo com a cultura popular. Nas periferias, o funk gospel também expressa esse diálogo gerando iniciativas de lideranças religiosas populares que movimentam também o mercado fonográfico religioso no país.

 

 

A expansão do acesso à internet e a dinâmica das redes sociais foi o fenômeno determinante para que o pluralismo religioso se tornasse ainda mais presente com modalidades inovadoras: o acesso a distintas possibilidades de expressão da fé que podem ser exercidas no mundo virtual; a lógica dos seguidores virtuais a youtubers; os cultos, missas e rituais religiosos interativos, enfim, toda dinâmica religiosa tem sido reinventada a partir desses meios.

 

A ideia de comunidade religiosa é atravessada pela mediatização cada vez mais intensa e em múltiplos canais que muitas vezes são acessados simultaneamente pelas pessoas. Podemos pensar que a realidade virtual se impõe como um modo desafiador e intrincado de expressão do religioso na esfera pública. Por meio dessa realidade, a esfera íntima é publicizada instantaneamente a milhares de pessoas que passam a opinar, divergir, louvar, chorar, virtualmente. Mudam as expressões dos fiéis e dos líderes, as preocupações passam a ser outras, como, por exemplo, se o "sinal" está bom e se o rito ou transmissão não "cairá"; se haverá "seguidores" e "inscritos" nos canais, se haverá "engajamento". Além disso, a volatilidade da presença é também um desafio para os líderes religiosos. As pessoas desempenham atividades simultâneas enquanto escutam uma transmissão de natureza religiosa.

 

Certamente, essa tem sido a principal mudança que na contemporaneidade afeta de modo determinante também o campo religioso e seu aparato institucional, além de ampliar as ofertas e dinâmicas religiosas para o sujeito contemporâneo.

 

 

IHU - O que significa ser "sem religião", "católico" ou "evangélico" no Brasil?

 

Silvia Fernandes - Eu chamaria a atenção para o fato de que nenhuma identidade religiosa no Brasil pode ser percebida como detentora de um sentido exclusivo. Por isso a pergunta não pode ser respondida considerando definições estanques. Cada um desses grupos é integrado por sujeitos com trajetórias religiosas e arreligiosas muito distintas; com históricos de mobilidade, trânsito religioso, experimentação etc. Pode haver uma multiplicidade de sentidos em cada uma dessas identidades e outras variáveis também precisam ser agregadas para refinarmos nossa resposta. Por exemplo, gênero, camada social, cor/raça são variáveis que nos permitirão trazer novos elementos na configuração dessas identidades.

 

A questão de Deus num contexto pós-teísta:

 

 

Feitas essas ressalvas, talvez possamos afirmar que, de modo geral, quem se declara sem religião tende a ter uma atitude mais fluida frente às religiões, construindo uma forma própria de se relacionar com suas crenças e raramente são ateus; os católicos, embora unidos pela dimensão mais universalista da cultura católica, podem ser culturais, engajados, progressistas, conservadores, tradicionalistas, carismáticos. Cada uma dessas classificações também não é exclusiva, podendo ser combinada com outra forma de se perceber no vasto universo católico. Da mesma maneira, o "ser evangélico" está longe de representar uma identidade não polissêmica: protestantes históricos; pentecostais, neopentecostais e o que se poderia ainda considerar como uma "quarta onda" do neopentecostalismo - microigrejas que trazem muitos elementos da cultura popular em seus cultos e encontros religiosos.

 

 

IHU - Quais são as principais interações do cristianismo brasileiro com os processos globais desde o seu início até os dias atuais, apresentados no seu livro "Christianity in Brazil: An Introduction from a Global Perspective" (Bloomsbury, 2021)?

 

Silvia Fernandes - No livro eu tento explorar o Cristianismo no Brasil a partir de uma ótica mais global, buscando compreender não só as especificidades locais, regionais e nacionais, mas relacionando-as com os processos globais do Cristianismo mundial. Desse modo, em vez de contar uma história linear, o livro foi pensado como que em camadas, em que abordo o complexo labirinto que é o cristianismo brasileiro a partir de distintas portas de entrada e escalas analíticas. Entendo que para compreender o presente, devemos entender a história do cristianismo no país e sua relação com um cenário mais global colocado pelos contextos colonizadores. Tento trabalhar com uma estrutura de globalização que inter-relaciona vários níveis de análise (política, cultura, sociedade) não desconsiderando o quanto uma esfera penetra na outra em nível local e global.

 

Tendências conservadoras na política parecem ter expressões mundiais, como temos visto, do mesmo modo, no sul global; o pentecostalismo se espraia. Em outras palavras, penso que não devemos opor o global ao nacional e ao local, como se processos globais e transnacionais cada vez mais proeminentes achatassem a dinâmica no Brasil, obliterando sua especificidade e poder de agência. Aqui, o caso do pentecostalismo é ilustrativo, pois envolve a “glocalização”: a localização do global, como um movimento que se originou fora do Brasil e percorreu o mundo se implantando no país com características próprias. É a globalização do local, com expressões indígenas e brasileiras do pentecostalismo agora vistas em todo o mundo. Além disso, apesar dessa hipermobilidade, ou talvez como resposta dialética a ela, a nação e suas fronteiras continuam a importar, mas devem ser devidamente historicizadas e alinhadas em múltiplas escalas.

 

 (Foto: Reprodução da capa do livro)

 

IHU - No livro a senhora também trata da ascensão, crise e ressurgimento do catolicismo progressista, e da eleição do presidente Jair Bolsonaro com apoio de protestantes evangélicos e católicos carismáticos, assim como os católicos “tradicionalistas”. Quais são as conclusões e observações sobre esses fenômenos e que relações estabelece entre essas fases do catolicismo progressista e a eleição de Bolsonaro?

 

Silvia Fernandes - Não penso que seja muito apropriado falar sobre "conclusões" quando um processo ainda está em curso, mas cabe trazer alguns pontos que destaco no livro pensando nessas articulações. Em primeiro lugar, podemos considerar que embora existam algumas sobreposições entre católicos conservadores e progressistas em termos da política atual, particularmente em torno da oposição à legalização do aborto, verificamos uma divisão entre duas ênfases político-pastorais distintas no período das eleições de 2018. Uma corrente defendia os valores morais tradicionais e a outra colocou a ênfase na promoção da justiça social. A ênfase da primeira na defesa da família tradicional e na promoção de uma agenda pró-vida representa o esforço dos grupos carismáticos católicos na preservação da doutrina.

 

A segunda tendência propõe uma igreja mais inclusiva e igualitária que denunciaria "profeticamente" os abusos contra os mais vulneráveis (com a vulnerabilidade do nascituro como ponto de sobreposição). Entendo que, no campo das disputas entre as perspectivas das distintas correntes católicas sobre valores morais, a forma como essa tensão for negociada moldará as rotas pelas quais o catolicismo brasileiro se posicionará nacional e globalmente e como irá prospectar o próprio futuro em uma sociedade pluralista e politicamente polarizada, ainda que cada polo traga também as próprias especificidades.

 

 

IHU - A religião de modo geral e a vivência da religiosidade no cotidiano foram tema de inúmeras discussões durante a pandemia. O que mais lhe chamou a atenção neste período e no modo como essas questões foram tratadas no Brasil?

 

Silvia Fernandes - A pandemia produziu reinvenções nos modos de vida em todas as esferas e não foi diferente com a religião. Em levantamento realizado com Alessandra Reis e Paulo Limongi, vimos que as fotos e imagens religiosas nos espaços domésticos buscavam reproduzir, por um lado, o ambiente do templo e, por outro, expressavam as iniciativas das instituições religiosas na implantação dos encontros religiosos virtuais (cultos, missas etc). Isso foi muito frequente na Páscoa de 2020, quando o confinamento era agudo e as buscas por amparo na religião eram intensificadas por meio da internet, ferramenta que, paradoxalmente, parece ter materializado as possibilidades de vida ainda que na virtualidade duplamente viralizada.

 

De forma mais geral, a dicotomia saúde versus economia instalada no debate sobre a Covid-19 revela, em primeiro plano, os tensionamentos das cosmovisões religiosas do cristianismo no Brasil. O pastor Silas Malafaia declarou que não fecharia suas igrejas durante a pandemia, pois os templos seriam "o último reduto da fé e esperança para o povo". Outros líderes religiosos, tais como Odilo Scherer, inicialmente defendiam que mais missas fossem realizadas a fim de evitar igrejas muito cheias. Mas assim que o Papa Francisco ordenou que as pessoas ficassem em casa, as celebrações coletivas foram suspensas em templos católicos.

 

 

Todos nós acompanhamos os impasses e dissensos públicos frente à necessidade de manter os templos fechados e as demandas pela abertura das Igrejas. Naturalmente, havia uma questão econômica fortemente colocada, pois fechar o templo não significava apenas impedir que as pessoas acessassem o local sagrado para exercer a própria fé, mas representou a inviabilidade econômica de muitas igrejas. O debate político-ideológico também estava colocado, uma vez que os grupos que negavam a letalidade da Covid-19, engrossando o coro com o presidente Jair Bolsonaro, defendiam que mais do que nunca as pessoas precisavam encontrar amparo na religião. O que vimos, portanto, foi uma imbricada relação de interesses entre religião, economia e política embaladas pela crise sanitária.

 

 

IHU - Hoje, muitas são as análises sobre os efeitos da pandemia em diversas dimensões da vida humana e nacional. Quais são os efeitos da pandemia sobre a religião, religiosidade e espiritualidade no Brasil?

 

Silvia Fernandes - Entendo que ainda precisaremos de muitas pesquisas para ir delineando esses efeitos e a resposta não me parece simples. Afirmar, por exemplo, que a pandemia tornou as pessoas mais ou menos religiosas pode ser um erro, pois não temos instrumentos de mensuração dessa relação em termos locais, regionais ou nacionais; assim como não me parece haver muito fundamento na ideia de que a partir da pandemia a humanidade se tornou ou se tornará melhor.

 

Na verdade, o que temos visto - até mesmo a partir da pesquisa Datafolha - é que a relação entre religião, religiosidade e espiritualidade no país segue como seguia no período anterior à Covid-19, caminhando em estradas nada retilíneas, com picos de devoção em momentos críticos, como convém ao permanente sentimento de desamparo humano, e com desvinculação institucional como convém aos sujeitos em tempos pluralistas e virtuais em que cada escolha dura até o próximo clique ou até a próxima onda pandêmica.

 

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