A pandemia da covid-19 e uma crise que questiona as lógicas da política fiscal. Entrevista especial com Manoel Pires

O professor analisa que todas as crises põem em xeque conceitos e políticas econômicas, mas desta vez a tensão é muito maior e já enseja mudanças

Foto: Pixabay

Por: João Vitor Santos | 21 Agosto 2020

Enquanto muitos ainda discutem sobre uma ideia de ‘novo normal’, se a vida de fato voltará a ser como antes depois da experiência da pandemia causada pela covid-19, o professor Manoel Pires é bem objetivo: “todas as crises servem para uma revisão de conceitos. Mas nenhuma crise questionou tanto os alicerces da política fiscal”, aponta, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Assim, imagina que, inevitavelmente, seremos levados a “avançar nos temas federativos, tributários, sociais e nos investimentos”. “Várias agendas já estavam postas, mas a pandemia pode alterar a forma de solução para algumas das questões. Isso já está acontecendo, mas ainda não é possível prever o desfecho”, completa.

 

No entanto, embora não seja possível vislumbrar um desfecho no pós-pandemia, Pires ressalta algumas mudanças que aparecem no horizonte. É o caso do debate sobre grandes fortunas, uma discussão urgente, mas que parecia estar sendo apagada. Com a pandemia, o debate reacende com força. “Existe um novo processo político sendo construído em torno de maior solidariedade social. O imposto de grandes fortunas reforça esse processo estabelecendo que as pessoas com maior capacidade de contribuição para o financiamento dos governos devem contribuir mais”, destaca.

 

Mesmo assim, o professor não perde de vista as dificuldades que envolvem todos os desdobramentos desse processo pandêmico. “Como vai demorar muito tempo para nos recuperarmos, teremos uma década inteira de PIB inferior ao que observamos em 2014”, analisa. É por isso que defende que “sejamos capazes de nos reorganizar”. “Mas não há uma receita de bolo. É uma construção política e já fizemos isso na saída do regime militar, durante o Plano Real e nos anos 2000 com a inclusão social. Esse sentido de direção se perdeu nesta década”, pontua.

 

Manoel Pires (Foto: Arquivi pessoal)

Manoel Carlos de Castro Pires possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Fluminense - UFF, mestrado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e doutorado em Economia pela Universidade de Brasília - UnB. Atualmente é pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia - Ibre da Fundação Getulio Vargas - FGV, professor no mestrado profissional de Economia da Escola Nacional de Administração e Economia - Enae da FGV e pesquisador da UnB. Foi secretário de política econômica do Ministério da Fazenda e chefe da assessoria econômica do Ministério do Planejamento.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – O senhor tem dito que a tendência mundial era de abandono do imposto sobre grandes fortunas, mas o "clima mudou". Por que mudou?

Manoel Pires – Com a pandemia, existe um novo processo político sendo construído em torno de maior solidariedade social. O imposto de grandes fortunas reforça esse processo estabelecendo que as pessoas com maior capacidade de contribuição para o financiamento dos governos devem contribuir mais. Esse processo aconteceu na saída da crise de 2008 e aos poucos estava sendo revertido, porque os problemas fiscais foram sendo resolvidos. Agora esse processo ganhou força novamente.

 

 

IHU On-Line – O que significa tributar grandes fortunas?

Manoel Pires – O Imposto sobre Grandes Fortunas - IGF é semelhante a uma alíquota adicional sobre a renda. É possível tributar a renda derivada de grandes fortunas na forma de um imposto de renda. Por exemplo, esse é o caso de uma família com elevada renda de aluguel por conta da propriedade de seus imóveis.

Então, esse tributo tem um papel complementar na arrecadação. A diferença é que ele parte da ideia de que uma família muito rica e com elevada renda tem maior capacidade de contribuição do que uma família que tem uma renda elevada, mas que ainda está iniciando seu processo de acumulação de riqueza.

 

IHU On-Line – Qual a sua opinião acerca de uma renda básica universal? Quais os desafios para implementá-la?

Manoel Pires – Esse é um outro instrumento que acompanha essa tendência de maior solidariedade. A ampliação dos mecanismos de redistribuição de renda pode ajudar bastante no cenário pós covid-19, porque a desigualdade tende a se elevar assim como a pobreza. Devemos assistir a uma ampliação do Estado de bem-estar social. A questão política é como desenhar esses programas, quais grupos terão prioridade e como financiá-lo.

 

 

IHU On-Line – No mundo, o debate sobre a tributação de grandes fortunas reaparece no contexto da pandemia e diante da manifestação da organização Milionários pela Humanidade, pedindo a tributação dos super-ricos. Mas como observa esse debate no Brasil?

Manoel Pires – Esse é um movimento político que tenta organizar esse debate. É positivo que aconteça, mas não está claro até que ponto esse grupo representa de fato uma posição majoritária dentro do movimento.

 

IHU On-Line – Ao longo da história, como o Brasil vem lidando com esse tema da tributação das fortunas?

Manoel Pires – Existe previsão constitucional para a implementação desse imposto, mas nunca foi regulamentado. O Brasil tradicionalmente usa pouco o imposto de renda como forma de tributação progressiva. Como usa pouco o imposto de renda, fica mais difícil alcançar temas mais complexos como o da riqueza, porque a prioridade se torna avançar no que já existe.

 

 

IHU On-Line – Quais as chances desse tema entrar no debate da reforma tributária que vem sendo posta em pauta pelo atual governo brasileiro?

Manoel Pires – Por enquanto esse tema não está posto dentro do governo. Se avançar será por intermédio do Congresso, onde alguns projetos já foram protocolados.

 

IHU On-Line – O que mais é emergente que entre numa pauta de debates acerca da reforma tributária brasileira?

Manoel Pires – Existem vários temas, como a tributação sobre consumo, o equilíbrio federativo e a progressividade. Todos eles irão ajudar bastante. O mais importante é avançar onde tiver maior apoio político. Essa agenda precisa andar para a frente.

 

IHU On-Line – Como o senhor avalia a proposta de reforma tributária do governo de Jair Bolsonaro?

Manoel Pires – Ela avança na tributação sobre o consumo. No geral, ela ataca os temas do modo que os especialistas entendem que deve ser feito. Mas toda a discussão sobre tributação no consumo pressupõe um reequilíbrio entre setores. Esse debate ainda tem um longo caminho pela frente.

 

 

IHU On-Line – O que o contexto da pandemia revela sobre os gastos públicos e a emergência de ações de Estado para proteger vidas e minimizar crises econômicas?

Manoel Pires – O Brasil, no geral, responde bem para um padrão de país emergente. O problema maior está no controle da pandemia e, na medida em que isso se prolonga, a tendência é de que a economia sofra mais e a questão fiscal se arraste e se torne um ponto de preocupação.

 

IHU On-Line – A experiência da pandemia enterra o discurso da austeridade fiscal?

Manoel Pires – Existe a preocupação de reequilibrar a dívida pública. Ela crescerá mais de 20 p.p. [pontos percentuais] este ano. O problema é que a saída da crise também enseja uma agenda de estímulos ainda que em menor quantidade do que neste ano. O que estamos assistindo é uma disputa sobre como isso deve ser implementado.

 

 

IHU On-Line – Há quem aposte que a pandemia imporá transformações profundas na sociedade. Diante desse cenário, o senhor acredita na concepção de uma outra economia?

Manoel Pires – As transformações já estão acontecendo. As pessoas estão mudando a forma de vida e isso se reflete na organização da economia. As transformações digitais estão sendo aceleradas, novos métodos educacionais estão sendo implementados, novas formas de produção de serviços estão acontecendo. Outro tema importante é a inclusão social e a reestruturação dos sistemas de saúde que também vai mudar bastante. É difícil imaginar que muitas pessoas não revejam suas opiniões negativas com relação ao Sistema Único de Saúde - SUS, por exemplo.

 

 

IHU On-Line – Como o senhor projeta a política fiscal brasileira em curto e médio prazos?

Manoel Pires – Todas as crises servem para uma revisão de conceitos. Mas nenhuma crise questionou tanto os alicerces da política fiscal. Teremos que avançar nos temas federativos, tributários, sociais e nos investimentos. Várias agendas já estavam postas, mas a pandemia pode alterar a forma de solução para algumas das questões. Isso já está acontecendo, mas ainda não é possível prever o desfecho.

 

IHU On-Line – Como avalia os impactos da pandemia na economia brasileira? Quais os desafios para conceber um cenário de recuperação?

Manoel Pires – Essa crise atingiu o Brasil em um momento em que ainda buscávamos uma recuperação na saída da crise de 2015-16. É um momento muito delicado porque o país está entrando em um cenário de depressão econômica. Como vai demorar muito tempo para nos recuperarmos, teremos uma década inteira de PIB inferior ao que observamos em 2014.

Isso se reflete de forma muito profunda na sociedade, rebaixa nossas expectativas, exclui muitas pessoas e cria uma insegurança muito grande. É importante que sejamos capazes de nos reorganizar, mas não há uma receita de bolo. É uma construção política e já fizemos isso na saída do regime militar, durante o Plano Real e nos anos 2000 com a inclusão social. Esse sentido de direção se perdeu nesta década.

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Em 2017, o professor esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU discutindo Política fiscal e trajetória macroeconômica brasileira no período de 2003 a 2017.

Assista à íntegra da palestra:

  

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