A crise fiscal brasileira e suas armadilhas, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

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11 Mai 2019

"A crise fiscal brasileira contribui para os baixos níveis de investimento, que explicam as baixas taxas de crescimento do PIB e, consequentemente, uma baixa geração de emprego e um grande desperdício da força de trabalho", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 10-05-2019.

Eis o artigo.

A crise fiscal brasileira e suas armadilhas

O Brasil enfrenta uma dramática crise fiscal, que tem consequências sobre o crescimento econômico, a geração de emprego e renda e o bem-estar da população. O gráfico abaixo, com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), divulgados em abril de 2019, mostra o superávit/déficit primário no período 2003 até 2018 e as projeções até 2024. O resultado primário é o balanço da arrecadação, menos os gastos do governo, mas sem contabilizar os juros da dívida. Corresponde à geração de caixa do governo. O déficit nominal inclui o déficit/superávit primário mais os gastos com o pagamento de juros. Quanto maior o déficit nominal mais rápido cresce a dívida pública.

 

Entre 2003 e 2013, o Brasil conseguiu gerar superávit primário durante uma década, o que possibilitou crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) com uma certa estabilidade macroeconômica. Este período também coincidiu com o superciclo das commodities e grande geração de emprego. Em 2003, o superávit primário foi de 3,2% do PIB e passou para 3,8% do PIB em 2008. Na recessão de 2009, o governo promoveu políticas fiscais anticíclicas e o superávit primário caiu para 1,9% do PIB. O superávit voltou a subir até 2011, para 2,9% do PIB, mas começou a cair nos anos seguintes até se tornar déficit a partir de 2014.

Enquanto o superávit primário se manteve relativamente alto entre 2003 e 2008, o déficit nominal ficou moderadamente controlado em torno de 3% do PIB na média. Mas com a recessão, o déficit nominal chegou a -6,5% do PIB em 2014 e a impressionantes -10,2% do PIB em 2015.

Enquanto houve superávit primário houve também redução da dívida pública bruta (como % do PIB), com redução forte entre 2003 e 2008 e redução moderada até 2013, conforme mostra o gráfico abaixo. Porém, quando o superávit primário se transformou em déficit, elevando o déficit nominal, a dívida pública bruta disparou, chegando a 87% do PIB em 2018 e devendo alcançar 96% do PIB em 2023.

O gráfico abaixo mostra os números em termos absolutos. Em 2003, o superávit primário foi de R$ 56 bilhões e passou para R$ 118 bilhões em 2008. Na recessão de 2009, o superávit primário caiu para R$ 65 bilhões. O superávit voltou a subir até 2011, com R$ 129 bilhões, mas começou a cair nos anos seguintes e chegou a um déficit de R$ 157 bilhões em 2016. O déficit nominal ultrapassou R$ 100 bilhões em 2009 e chegou a R$ 613 bilhões em 2015. Isto representa cerca de duas vezes o valor de mercado da Petrobras. Ou seja, a partir de 2015, o governo tem acumulado déficits no valor de quase duas Petrobras por ano.

 

 

Enquanto havia superávit primário significativo e alto crescimento econômico, a dívida pública brasileira caiu como proporção do PIB, de 74% para 60%, conforme mostra o gráfico abaixo também com dados do FMI (abril de 2019). Mas a redução do superávit primário, o aumento dos juros (taxa Selic) e o menor crescimento econômico fez a dívida subir de 60% para 94% do PIB em 2018, podendo chegar perto de 100% do PIB em 2024. Ou seja, a dívida vai corresponder a toda a produção de bens e serviços do ano.

 

Uma dívida pública de 100% do PIB é uma anomalia, quando comparada com outros países do mesmo nível de desenvolvimento. O gráfico abaixo mostra que a Índia tinha uma dívida, como proporção do PIB, superior à brasileira até 2014, mas a partir de 2015 o Brasil passou a ter a maior dívida entre os países do grupo BRICS e em relação à Coreia do Sul. A Rússia que tinha uma dívida de 56% do PIB no ano 2000, conseguiu reduzi-la para menos de 20% do PIB desde 2005. China e África do Sul possuem dívida em crescimento, mas abaixo de 70% do PIB. A Coreia do Sul tinha dívida pública abaixo de 20% do PIB e que subiu para algo em torno de 40% do PIB. Entre os países emergentes, o endividamento público está abaixo de 50% na atual década. Portanto, o Brasil é um país muito endividado quando se compara com os demais países em desenvolvimento.

 

A crise fiscal e o aumento da dívida pública possuem um impacto redutor na taxa de investimento (formação bruta de capita fixo). O gráfico abaixo mostra que o Brasil, o país mais endividado e com os maiores déficits fiscais entre os Emergentes, por conseguinte, é o país com as menores taxas de investimento. Enquanto a China apresenta investimentos de 43,2% do PIB, na média, no período compreendido entre 1992 e 2024, a Coreia do Sul de 33,1%, a Índia de 31,5% e a Rússia de 23%, o Brasil e a África do Sul apresentam investimentos de somente 19,2% do PIB.

Este nível de investimento é suficiente apenas, praticamente, para se repor a depreciação da infraestrutura e do aparato produtivo. É reconhecidamente impossível um país apresentar altas taxas de crescimento econômico e geração de empregos decentes com investimentos abaixo de 20% do PIB.

 

 

A principal variável que explica as taxas de crescimento econômico é a taxa de investimento (formação bruta de capital fixo). Evidentemente, outros fatores como a oferta de mão-de-obra e a disponibilidade de recursos naturais também contam. Mas sem uma taxa de investimento ao redor de 25% do PIB não há como renovar a economia, a infraestrutura e a geração de emprego e renda.

O gráfico abaixo mostra que os países que apresentam as maiores taxas de crescimento, nos anos compreendidos entre 1998 e 2024, são a China (média móvel trianual de 8,6% ao ano) e a Índia (7,5% aa). A Coreia do Sul que tinha taxa acima de 5% passou para algo em torno de 3%, pois o país possui uma população em idade ativa em declínio. A Rússia também apresenta maiores oscilações e menores taxas de crescimento, pois a população total está caindo desde a década de 1990. Já o Brasil e a África do Sul possuem baixas taxas de crescimento da economia, pois são dois países que investem abaixo de 20% do PIB.

 

Desta forma, fica claro que a crise fiscal brasileira contribui para os baixos níveis de investimento, que explicam as baixas taxas de crescimento do PIB e, consequentemente, uma baixa geração de emprego e um grande desperdício da força de trabalho. De acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED), do Ministério do Trabalho, o Brasil perdeu cerca de 3 milhões de empregos formais desde dezembro de 2014. Em março de 2019, ao invés de aumentar as contratações houve uma perda de 43 mil vagas no mercado formal, mostrando que a economia brasileira está em marcha lenta.

Segundo a PNADC, do IBGE, a taxa de desocupação (pessoas que não estavam trabalhando, mas estavam procurando emprego) foi de 12,4% no trimestre móvel encerrado em fevereiro de 2019, significando 13 milhões de pessoas que desejam trabalhar, mas não conseguem vagas no mercado de trabalho. Segundo a mesma pesquisa, a taxa composta de subutilização da força de trabalho (que mede o percentual de pessoas desocupadas, subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas e na força de trabalho potencial) foi de 23,9% no mesmo período, representando 27,9 milhões de pessoas subutilizadas no Brasil, o maior contingente da série histórica.

O artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (10/12/1948) diz: “Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”. Este é o direito humano mais desrespeitado no Brasil. E o pior é que sem trabalho não há geração de riqueza e não há como melhorar as condições de vida da maioria da população brasileira.

O Brasil precisaria fazer uma série de transformações estruturais para mudar este quadro de estagnação e para sair da armadilha da renda média. Ignorar a crise fiscal em nada ajuda neste processo. Por exemplo, as pessoas que negam o déficit da previdência fazem um grande desserviço para a sociedade brasileira. É claro que existem muitas alternativas para se fazer uma reforma do sistema de seguridade social, menos a alternativa de não fazer nada.

O professor da FGV e ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016), no governo Dilma, em artigo da FSP (18/01/2019), com o sugestivo título “Carta ao povo petista”, considera que uma reforma da previdência é inevitável (e necessária) e que “é melhor o PT começar a preparar sua alternativa”. Ou seja, não é recomendável o Brasil ficar negando a realidade e repetindo propostas populistas, pois a tarefa central é elevar as taxas de investimento e gerar emprego para aumentar a renda geral do país (com respeito ao meio ambiente). Sem trabalho, o Brasil não tem futuro e pode se transformar simbolicamente em uma grande “Muzema”.

O Brasil vive o seu melhor momento demográfico. Em um futuro não muito distante será um país envelhecido com Índice de Envelhecimento (IE) acima de 100, isto é, com mais idosos do que crianças e jovens de 0 a 14 anos. Não há exemplos de países que conseguiram enriquecer (alto IDH) depois de envelhecer.

O governo e a oposição deveriam ter uma postura mais republicana. Segundo Marcos Lisboa, presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no governo Lula (2003-2005), em artigo da FSP (25/04/2019) mostra que a situação de paralisia atual é agravada pelo “desalento que decorre de um governo que não sabe muito bem para onde vai, em meio a uma oposição que se revela apenas oportunista”. Ele escreve: “Comecemos pelos equívocos da oposição. A infantilidade dos xingamentos e os argumentos pedestres são um tiro no pé da própria oposição. Políticos de esquerda ignoram o descontrole dos gastos com a Previdência e a imensa injustiça das suas regras, que favorecem a elite dos servidores públicos, muitos deles entre o 1% dos adultos mais bem pagos do país”. Mostra também que “O governo também não ajuda com suas brigas intestinas”.

A questão chave para a recuperação econômica é a elevação da taxa de investimento (FBCF), pois só com investimentos acima de 25% do PIB o Brasil poderá gerar empregos e gerar renda para reduzir a pobreza e promover a inclusão social, de gênero, de raça/cor, regional, etc. Não existe progresso sem trabalho. A teoria do valor continua válida e continuará válida durante muito tempo (ou para o resto da vida). Poderia citar a obra de Karl Marx, mas nestes tempos obscuros poderiam desqualificar o argumento com o epíteto de “marxismo cultural”. Então é melhor citar a primeira frase do livro a Riqueza das Nações, publicado em 1776, por Adam Smith: “O trabalho anual de cada nação constitui o fundo que originalmente lhe fornece todos os bens necessários e os confortos materiais que consome anualmente”. Ou seja, a riqueza das nações depende do trabalho produtivo e não há nação rica e desenvolvida com o desperdício da força de trabalho.

Desta forma, o Brasil tem pouco tempo para resolver sua crise fiscal e sua crise no mercado de trabalho. Vender o patrimônio público, acelerando o processo de privatizações pode providenciar caixa para o governo no curto e médio prazo, mas não resolve o problema fiscal de longo prazo. A reforma da previdência deveria vir acompanhada de um plano de reativação da economia com pleno emprego e trabalho decente.

O grande perigo é o Brasil ficar preso na estagnação com a volta da inflação (estagflação), como está ocorrendo atualmente na Argentina. O povo brasileiro precisa de um projeto de nação coerente e de escopo de longo prazo. Há várias armadilhas para serem superadas e isto só será realizado com muito esforço e uma boa dose de sabedoria.

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