“Precisamos esperar o inesperado para saber como navegar na incerteza”. Entrevista com Edgar Morin

Fonte: Piqsels

04 Abril 2022

 

Ele é um dos grandes pensadores franceses. Um sociólogo que, aos 100 anos, continua a pegar na caneta com um olhar sempre atento ao mundo de hoje. Ele acaba de publicar um novo livro, Réveillons-nous! (Despertai!).

 

A entrevista é de Jules de Kiss, publicada por Franceinfo, 26-03-2022. A tradução é do Cepat.

 

Guerra na Ucrânia, ascensão de ideias reacionárias, crise climática... O filósofo e sociólogo Edgar Morin publica Despertai!, um apelo às consciências para não mais “sofrer eventos como sonâmbulos”. Reitera a urgência de “pensar o futuro”, a necessidade de “esperar o inesperado para saber navegar na incerteza”. Edgar Morin, que celebrou o seu 100º aniversário em julho de 2021, não se surpreendeu com o ataque russo à Ucrânia: na entrevista que concedeu à Franceinfo, recorda que tinha alertado para o “risco de infecção” da anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Ele também evoca, para lamentá-los, a derrota intelectual da esquerda e a ascensão da “França reacionária”. E medita sobre o futuro, o seu e o do mundo.

 

Eis a entrevista.

 

Você publica Réveillons-nous! como um alerta doze anos depois de outro apelo, o do pensador e lutador da resistência Stéphane Hessel, ‘Indignai-vos!’. Você quer nos tirar de uma forma de letargia?

 

Stéphane Hessel dizia Indignai-vos, dirigindo-se a pessoas que já estavam despertas! Eu tenho a impressão de que vivenciamos os acontecimentos um pouco como sonâmbulos. O que eu vivi, aliás, na minha juventude, nos dez anos que antecederam a guerra. Peço para tentar ver e entender o que está acontecendo. Caso contrário, sofreremos os acontecimentos como, infelizmente, sofremos a última Guerra Mundial.

 

Você foi um lutador da resistência, um combatente quando a França experimentou a guerra. E você é um dos raros intelectuais franceses que foi elevado ao posto de Comandante da Legião de Honra, um título militar. Como você vivencia esse retorno da guerra na Europa?

 

Certamente, há uma surpresa, mas não total, pois em um artigo que fiz no Le Monde em 2014, na época da crise ucraniana e, já da divisão das províncias de língua russa na Crimeia, eu disse: cuidado, é um foco de infecção que corre o risco de ter consequências desastrosas. E durante anos, fechamos os olhos para essa infecção. Houve uma pequena guerra permanente na Ucrânia e, basicamente, o verdadeiro problema é que, além do destino da Ucrânia, que queria ser democrática e integrar-se na União Europeia, ela estava em jogo, era uma presa para duas superpotências: a Rússia de Putin, que sonhava em encontrar a grande Rússia e absorvê-la, e o mundo ocidental, os Estados Unidos, que sonhavam em integrá-la ao Ocidente.

A grande diferença é que durante esse conflito muito intenso, mas ainda sem guerra, o presidente dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que dava apoio intransigente em palavras, disse: “Eu não vou para a guerra”. Então, desde o início, houve um desequilíbrio. E hoje estamos numa espécie de contradição porque, por um lado, achamos que a resistência ucraniana está certa – é uma guerra patriótica –, mas, ao mesmo tempo, pensamos que, se entrarmos neste conflito, estaremos arriscando o que Dominique de Villepin chamou de “tsunami mundial”: passo a passo, chegando a uma explosão.

 

Como você vê esses ucranianos e essas ucranianas que pegam em armas para defender seu país contra os russos?

 

Para mim, são combatentes da resistência que, desta vez, resistem com um exército nacional, enquanto nós éramos combatentes da resistência desarmados. Acho muito bonito, mas também acho que não podemos nos deixar levar pela lógica da guerra e intervir militarmente. Portanto, eu sinto essa contradição que todos nós vivenciamos e que temos que aceitar.

 

Seus três escritores favoritos são russos: Dostoiévski, Tolstoi, Tchekhov. Eles ajudam você a entender a atual guerra?

 

Não, eles me ajudam sobretudo porque carregam dentro de si um humanismo russo que, ao contrário do humanismo ocidental, que é principalmente abstrato, é concreto. Ele é cheio de compaixão pelo sofrimento e pela miséria humana. E o que esses autores me ensinaram, muito profundamente, é esse humanismo de compaixão pelo sofrimento. Mas quando Tolstoi escreve Guerra e Paz e analisa a guerra da resistência russa contra Napoleão, lembra muito mais a conquista que Hitler queria fazer da Rússia do que a absorção por esta enorme Rússia da pequena Ucrânia.

 

Em duas semanas acontece o primeiro turno da eleição presidencial e você abordou esta questão no seu livro texto. A campanha para a eleição presidencial de 2022, você escreve, mostra como a França reacionária hoje tem precedência sobre a França humanista. E você não está surpreso?

 

É um processo que não deixei de analisar e passei a ver o agravamento. É a sucessão de crises que vivemos há algum tempo que explica hoje esta grande evolução da França reacionária. Você tem que pensar que em todo o mundo há uma crise das democracias, uma crise do progresso. Acreditamos durante muito tempo que o progresso era certo, uma lei da história, e percebemos que o futuro é cada vez mais incerto e inquietante. Há a crise do futuro, a angústia, as crises que aconteceram: a econômica em 2008, depois a pandemia. As angústias que isso gera provocam uma retração, um fechamento sobre si mesmo, um medo, um desejo de defender uma identidade que, aliás, é mitológica. A característica da identidade francesa, construída ao longo dos séculos, é ter integrado povos muito diferentes uns dos outros: alsacianos, flamengos, bretões, corsos etc.

 

Identidade francesa mitificada, você diz, especialmente por Éric Zemmour, cujas ideias você quer combater em seu livro. Ele retoma, na sua opinião, o pior mito dos nacionalismos modernos: a limpeza étnica.

 

A França é una e plural. Isso é algo que Zemmour nega totalmente. Eu contradigo isso lembrando o que a França realmente é. Ela tem várias vertentes, mas, ao mesmo tempo, a sua verdadeira vertente histórica é aquela que foi criada a partir da Revolução e da República.

 

Como você explica uma forma de derrota dos intelectuais e políticos de esquerda que não conseguiram dar respostas, não conseguiram se fazer ouvir?

 

Em primeiro lugar, é preciso dizer que houve uma crise das ideias socialistas. O socialismo tinha para si uma teoria muito bem articulada, uma concepção do homem, do mundo, da história, formulada por Marx. E hoje, essa teoria tem enormes lacunas.

Há uma crise do pensamento político em geral, e particularmente desse lado. Quanto aos intelectuais de esquerda, eles não responderam à missão do intelectual, que é muito importante hoje. Porque estamos em um mundo de experts e especialistas em que cada um vê apenas uma pequena parte dos problemas, isolados uns dos outros. E hoje existe efetivamente essa deficiência. E são atualmente os porta-vozes intelectuais da França reacionária que estão nos holofotes.

 

Conversamos sobre a guerra na Ucrânia, tendo como pano de fundo a ameaça nuclear. Você também dedica um dos quatro capítulos do seu livro ao aquecimento global. É possível, nestas condições, pensar o futuro com serenidade?

 

Não podemos ficar serenos diante de perspectivas tão preocupantes. O que eu queria mostrar, mesmo antes da guerra na Ucrânia, é que desde Hiroshima, uma espada de Dâmocles está sobre a cabeça de todos os seres humanos e que se agravou com a crise ecológica, onde é realmente a biosfera, o mundo vivo e nossas sociedades, que está ameaçada. Não é só o clima. O clima é um elemento dessa crise geral e a pandemia também contribuiu para o caráter global da crise.

Penso que entramos em um novo período. Pela primeira vez na história, a humanidade corre o risco de aniquilação, talvez não total – haverá alguns sobreviventes, como em Mad Max –, mas uma espécie de “reinício” do zero em condições sanitárias sem dúvida terríveis. É esse perigo que eu já havia diagnosticado como potencial que, de repente, se torna atual com essa história da guerra russa.

 

Alguns pensadores gostam de olhar para o passado, outros para o presente. E você, temos a impressão de que o que você mais gosta é pensar no futuro?

 

Mas você sabe, só podemos pensar no futuro se estivermos conscientes do passado e do que está acontecendo no presente. Não podemos pensar no futuro sozinhos. E hoje, o futuro depende dessas grandes correntes que atravessam a humanidade e que são ameaçadoras e regressivas. Portanto, acredito que seja urgente pensar no futuro. Por quê? Porque até agora acreditávamos que o futuro era uma espécie de linha reta que continuaria. Precisamos imaginar diferentes cenários. Precisamos ser vigilantes. Precisamos esperar o inesperado para saber como navegar na incerteza. Há uma série de reformas, a maneira de pensar, de se comportar, que são necessárias hoje.

 

Pensar no futuro, no futuro da humanidade, isso lhe dá tempo para pensar no seu futuro?

 

Tenho muito pouco futuro! Vivo intensamente o presente, precisamente através de todos os acontecimentos e especialmente desta guerra na Ucrânia. Tento refletir sobre o futuro, mas gostaria de ver um pouco mais claramente. Gostaria de viver um pouco mais para ver a forma que a história humana vai tomando. Portanto, vivo meu próprio futuro dia após dia. Vivo na vigilância e no interesse pelo mundo e, portanto, pelo seu futuro.

 

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