Advento: a arte de gerar algo novo em nosso interior

Foto: Luis Angel Espinosa | Cathopic

17 Dezembro 2021

 

"Muitos, como Zacarias, com a fé adormecida, como pontuou Adroaldo Palaoro, tampouco conseguem sentir 'Deus dançando' em seu interior. Sentem-se completamente abandonados, cansados e nem sequer lembram ou conhecem o que Ele disse: 'Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu darei descanso a vocês' (Mateus 11:28) ou 'Eu serei o mesmo até quando os vossos cabelos brancos chegarem e ainda na idade avançada Eu vos sustentarei; Eu vos criei e vos conduzirei'" (Isaías 46:4). 

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

No quarto e último comentário sobre o Advento deste ano, publicado na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Adroaldo Palaoro refletiu sobre a visita de Maria a Isabel, uma consequência de seu "sim" a Deus. Essa imagem mostra como a anunciação colocou Maria "prontamente e com pressa em caminho", mas é, como concluiu o jesuíta, "o ícone por excelência" do Advento: "uma mulher gestante".

 

"A vida que está pulsando nela", explicou, "é imagem para que compreendamos e tomemos consciência de que todos estamos implicados nessa gestação. Somos convidados a entrar nesse silêncio habitado, para experimentar, em uníssono, o pulsar do divino em nós, dentro de nós. Deus 'pula de alegria' em nosso interior quando abrimos espaço para sua presença e sua ação em nossa vida".

 

Como ele ressaltou, "a grande e boa notícia da Anunciação não levou Maria a ensimesmar-se e a submergir-se numa reflexão estática do Mistério que se desenvolvia em seu ventre. Pelo contrário, moveu-a a colocar-se prontamente e com pressa em caminho: 'levantou-se, dirigindo-se apressadamente à região montanhosa'”. Chegando à casa de Isabel, continuou, "Maria se deixou encher pela benção e bem-aventurança de sua prima. Não tem nada que acrescentar, não deve explicar ou comentar coisa alguma, pois tudo é claro. Simplesmente, consente".

 

 

 

Para aqueles que veem no Evangelho apenas a face histórica e humana de Jesus ou para aqueles que ali só encontram "loucura", "escândalo" ou práticas de autoajuda para os que vivem momentos de dificuldade ou apenas uma alegoria entre tantas que marca a identidade ocidental, é difícil compreender essas imagens e o que o encontro pessoal com Cristo suscita em cada um de nós. Muitos ainda, como Zacarias, com a fé adormecida, como pontuou Palaoro, tampouco conseguem sentir "Deus dançando" em seu interior. Sentem-se completamente abandonados, cansados e nem sequer lembram ou conhecem o que Ele disse: "Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu darei descanso a vocês" (Mateus 11:28) ou "Eu serei o mesmo até quando os vossos cabelos brancos chegarem e ainda na idade avançada Eu vos sustentarei; Eu vos criei e vos conduzirei" (Isaías 46:4). Outros, decididamente, escolhem não crer, como parece ser o caso de Alberto Caeiro:

 

"Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!"

 

Esse também parece ser o pensamento que ronda a cabeça do jovem poeta a cada Natal. Não sendo mais criança e embrutecido pelas misérias e dificuldades da vida, se vê impossibilitado ou decidido a não crer em Deus. Sobre tal postura, Rilke o atiça:

 

"Se por ventura lhe for temível e penoso pensar na sua infância, na simplicidade e no silêncio ligados a ela, por não poder mais crer em Deus que nela se encontra por toda parte, então pergunte a si mesmo, caro Sr. Kappus, se realmente terá perdido a Deus. Não será, antes, que o senhor ainda não o possuiu? Aliás, quando o teria possuído? Parece-lhe que uma criança o possa segurar, a Ele que os homens custam a carregar e cujo peso esmaga os anciãos? Parece-lhe que alguém que realmente o possui o possa perder como um seixo? Não lhe parece, antes, que aquele que o teve pode por Ele ser perdido? Se porém reconhecer que Ele não existia na sua infância, nem antes; se admite que Cristo foi iludido pela sua saudade e Maomé enganado por seu orgulho; se percebe com espanto que Ele não existe nem mesmo nesta hora em que falamos d'Ele - que coisa então o autoriza a sentir a falta de alguém que nunca foi e a procurá-lo como se estivesse perdido?

 

Por que não pensar que Ele é o vindouro, aquele que está por vir desde a eternidade, o futuro, o fruto final da árvore de que nós somos as folhas? Que é que o impede de projetar o seu nascimento para os tempos posteriores e viver a sua vida como um dia belo e doloroso de uma grandiosa gravidez? Não vê como tudo o que acontece é sempre um começo? Não pode ser, então, o começo d'Ele, pois todo começo em si é tão belo? Se Ele é o mais perfeito, não deve ter havido algo menor antes d'Ele para que Ele se pudesse escolher a si mesmo dentro da plenitude e abundância? Não deverá ser Ele o último, para encerrar tudo em si? Que sentido teria a nossa vida se Aquele a que aspiramos já tivesse sido? Como as abelhas reúnem o mel, assim nós tiramos o que há de mais doce em tudo para o construirmos. (...) Existe algo que lhe possa tirar a esperança de estar futuramente n'Ele, no longínquo, no extremo?

 

Festeje o Natal, caro Sr. Kappus, com o pio sentimento de que talvez Ele, para começar, aguarde do senhor justamente essa angústia de viver. Talvez justamente esses dias de transição sejam o tempo em que tudo no senhor trabalha n'Ele, como outrora, quando criança o senhor n'Ele trabalhou palpitante. Não seja impaciente e mal-humorado. Lembre-se de que a menor coisa que podemos fazer consiste em lhe dificultar tão pouco o nascimento quanto a terra dificulta o advento da primavera, quando ela tem de vir. Fique alegre e tranquilo".

 

 

 

O "autêntico Advento", como sabiamente acentuou Palaoro, "vai além da espera, é gestação; não é só a arte de viver despertos e mobilizados, é gerar em nosso interior 'algo novo' para entregar ao mundo que, gritando, pede de nós uma presença compassiva e servidora. O que gestamos em nós deve ter a feição do amor invencível, do amor valente, do amor capaz de romper fronteiras, de superar os ódios, de quebrar as distâncias, de aplainar os 'egos inflados'. Gestação de vida, de esperança, de paixão por um mundo diferente".

 

 

Essa gestação também é um desafio para a Igreja, enquanto corpo de Cristo: vivermos como membros servidores, como nos exorta o Papa Francisco, sermos "seguidores(as) 'gestantes', não só fiéis 'expectantes'", como sublinhou Palaoro.

 

Isso significa muito mais do que praticar ações solidárias. Trata-se de permitir que Deus dance em nosso interior para sentirmos "o impulso para o outro, o despertar de nossos desejos mais nobres, o emergir de sonhos adormecidos, nosso espírito criativo, nossos sentimentos oblativos...". É preciso, como concluiu o jesuíta, de "uma presença inspiradora de alguém, também 'carregada de Deus e de espírito serviçal' que nos visite e faça saltar tudo o que é mais 'humano' em nós, o 'joão' que todos carregamos". É esse Mistério da união com Cristo que "nos enche de alegria serena, de esperança benfazeja, de generosidade aberta...", as quais se referiu Palaoro.

 

Que São João da Cruz, o Doctor Mysticus, também possa contribuir para gestar em nossos corações o verdadeiro sentido do Natal:

 

Quando foi chegado o tempo
Em que de nascer havia,
Assim como o desposado,
Do seu tálamo saía

Abraçado à sua esposa,
Que em seus braços a trazia;
Ao qual a bendita Mãe
Em um presépio poria

Entre pobres animais
Que então por ali havia.
Os homens davam cantares,
Os anjos a melodia,

Festejando o desposório
Que entre aqueles dois havia.
Deus, porém, no presépio
Ali chorava e gemia;

Eram jóias que a esposa
Ao desposório trazia;
E a Mãe se assombrava
Da troca que ali se via:

O pranto do homem em Deus,
E no homem a alegria;
Coisas que num e no outro
Tão diferente ser soía.

 

 

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