Porto Alegre, RS. ‘Quase todo dia eu vejo alunos que saíram da escola por causa da fome’

Comunidade escolar fala sobre a realidade nas escolas da periferia de Porto Alegre

Foto: Prefeitura Valinhos | Flickr CC

14 Dezembro 2021

 

Comunidade escolar fala sobre os impactos da insegurança alimentar nas redes de ensino públicas de Porto Alegre.

 

A reportagem é de Andressa Marques, publicada por Sul21, 11-12-2021.

 

Em um momento em que o país soma 13,5 milhões de desempregados, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a fome e a insegurança alimentar grave voltam à realidade de parte das famílias brasileiras. Segundo estudo da Universidade Livre de Berlim, a insegurança alimentar alcançou 15% dos domicílios brasileiros em dezembro de 2020. Esse percentual chegava a 20,6% nos lares com crianças e jovens de 5 a 17 anos.

 

Conforme a pesquisaInquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”, também feito há um ano, com uma amostra de 2.180 domicílios em cinco regiões do Brasil, 55,2% dos entrevistados se encontravam em Insegurança Alimentar e 9% conviviam com a fome. Os resultados deste inquérito mostram que, em 2020, a Insegurança Alimentar e a fome no Brasil retornaram a patamares próximos aos de 2004.

 

No Rio Grande do Sul, em janeiro de 2021, 947.112 mil pessoas viviam com até R$ 89 por mês, conforme dados do Cadastro Único (CadÚnico), representando 8% da população vivendo em condição de extrema pobreza. Quando considerada a linha da pobreza, de ganhos mensais de até R$ 178, o número de pessoas chegava a 1.291.678, o que representa 11% da população gaúcha.

 

“Nesse sentido, considerando o aumento significativo de pessoas, incluindo crianças, expostas à insegurança alimentar e nutricional, é esperado um aumento na prevalência de crianças afetadas pelas consequências a ela relacionadas, como desnutrição e doenças carenciais”, afirma Sílvia Pauli, Coordenadora da Unidade de Alimentação Escolar da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (SMED/PMPA). Parte dessas crianças tem na escola o único espaço para garantir a alimentação diária. Com base nesse dado, o Sul21 entrevistou pessoas da comunidade escolar para saber qual a realidade acompanhada por elas nas periferias de Porto Alegre.

 

Entenda a insegurança alimentar e nutricional

 

Segundo o Art. 3º da LEI Nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) compreende o “direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”. Por outro lado, compreende-se como Insegurança Alimentar e Nutricional (IAN) a falta de acesso a uma alimentação adequada, em quantidade ou qualidade suficiente, de forma regular, determinada, principalmente, pela pobreza e pelas desigualdades sociais.

 

A alimentação inadequada na infância se associa tanto ao déficit de crescimento e à desnutrição, quanto à obesidade e fatores de risco cardiometabólicos, aumentando o risco de agravos não transmissíveis na vida adulta como hipertensão e diabetes. Outros problemas associados à insegurança alimentar e nutricional são: baixo peso e déficit de crescimento, obesidade e doenças carenciais, como anemia por deficiência de ferro e hipovitaminose A, uma deficiência prolongada de vitamina A.

 

Foto: Divulgação | Agência Brasil

 

“Estudos têm demonstrado relação entre presença de insegurança alimentar e maior consumo de alimentos ricos em gordura e açúcar, lanches com alta densidade energética e pobres em micronutrientes (vitaminas e minerais), doces e bebidas açucaradas, em função do baixo custo e mais fácil acesso a estes alimentos, e baixo consumo de legumes e verduras”, afirma Sílvia.

 

A coordenadora explica que esse impacto pode variar de acordo com tempo de submissão à fome e idade das crianças. “Quanto mais tempo a criança ou o adulto são submetidos à situação de insegurança alimentar, maior a chance de prejuízos à saúde. Por outro lado, há um período na vida do ser humano em que o impacto negativo da insegurança alimentar pode ser mais prejudicial: os primeiros mil dias de vida, período que soma os 270 dias da gestação aos 730 dias até que o bebê complete dois anos de idade”, explica a coordenadora.

 

Esses anos são fundamentais para o desenvolvimento dos sistemas nervoso e imunológico, que aumentarão as chances do bebê se tornar um adulto saudável e plenamente desenvolvido.

 

 

Olenca Bazzan, 45, é professora de uma escola Estadual e leciona para duas turmas de 4° ano do ensino fundamental. Ela afirma que a merenda na escola é excelente e segue um cardápio elaborado por nutricionistas da Secretaria da Educação. “As crianças adoram. Na maioria dos dias tem arroz, feijão, lentilha, salada, carreteiro, galinha, sopa de legumes e carnes e sempre tem alguma fruta de acompanhamento. No ‘dia do doce’, é iogurte com cereal e sanduíche”, conta.

 

A professora diz que já houve relatos de famílias nas quais a merenda é a primeira refeição das crianças no turno da manhã. “Muitas famílias precisam escolher entre almoçar ou jantar, pois não estão com condições econômicas de fazer ao menos duas refeições completas no dia”, explica.

 

Olenca já presenciou as consequências da insegurança alimentar em sala de aula. “Depois de ficar muitas horas sem comer, provavelmente um dia todo, a criança passou mal, pois comeu muito rápido, estava ansiosa, com muita fome”, diz. A professora conta que muitas crianças sentem vergonha de dizer que estão com fome ou que a família passa dificuldades. “Incentivo muito que elas comam a merenda da escola e que não tragam salgadinhos e bolachas”, afirma.

 

A professora diz que muitas vezes senta junto com os alunos para merendar, como forma de incentivo. “Eles adoram. Aqueles que sentem vergonha de comer acabam se servindo e vindo comer junto porque eles veem que a professora consome o mesmo tipo de alimento e que é saudável. E nesses momentos fica mais fácil também estabelecer relações e conversas, tanto sobre assuntos do cotidiano como assuntos específicos sobre alimentação, por exemplo”, conta. Olenca, no entanto, sabe que muitas vezes se alimentar bem não depende de vontade da criança ou da família. “Como vou dizer para uma criança que ela deve consumir diariamente um prato adequadamente elaborado se mal tem comida em casa? Seria muita hipocrisia.”

 

 

Para Maria Fernanda da Silva, 31, professora em duas escolas municipais e uma escola estadual, a situação alimentar atual não mudou muito em relação ao que ela presenciava antes da pandemia. No entanto, conta que uma das escolas municipais ficou um tempo sem gás e isso dificultou a alimentação regular dos alunos.

 

Ela diz que antes da pandemia alunos já se queixavam de fome. “Sempre dou um jeito de achar alguma bolacha ou fruta na hora”. A professora ainda afirma que a insegurança alimentar é algo recorrente na vida dos pais desses alunos. “Ao pedir tarefas em que os alunos deveriam entrevistar os pais sobre suas histórias de vida, algumas mães relataram que passaram fome na vida”, lembra.

 

Maria diz que durante a pandemia e o isolamento muitas famílias relataram dificuldade para ter alimentação em casa: “O que a Prefeitura mandou não foi suficiente. Fizemos arrecadação de cestas básicas por conta própria”. “É muito importante ter uma alimentação adequada, não se aprende com fome”, completa.

 

Rafael Conceição Barros, 43, é conselheiro tutelar na microrregião 7 do bairro Restinga e Extremo sul de Porto Alegre. Ele conta que é evidente que na pandemia, principalmente nas periferias e regiões mais pobres, houve o aumento da pobreza e da fome, potencializado pela falta de políticas públicas e pelo desemprego.

 

“Neste período de pandemia as crianças ficaram sem os espaços de proteção, serviço de convivência e fortalecimento de vínculo”, diz. “Escola de educação infantil, espaço escolar de ensino fundamental, médio e EJA são locais onde as crianças/adolescentes realizam suas refeições e, para alguns, esta é a única refeição realizada no dia”, afirma.

 

 

Para Rafael, o investimento em políticas públicas e em oportunidades de trabalho é o caminho para reverter a situação. “Muitas das crianças vão para rua e sinaleiras para realizar trabalho infantil, vendendo balas, trufas, entre outras coisas, mendicância”, diz.

 

Douglas Alves, 31, é cozinheiro na EMEF Morro da Cruz. Ele afirma que houve uma queda significativa nas refeições diárias preparadas na comparação com antes da pandemia. “Mais da metade dos alunos ainda não voltaram às aulas presenciais, mesmo estando no final do ano e sendo obrigatória a ida à escola. Estamos funcionando todo dia atendendo os alunos que vão para as aulas, mas ainda são poucos”, diz.

 

“Já presenciei alunos pedindo comida no semáforo, vendendo bala no ônibus, pedindo dinheiro, quase todo dia eu vejo alunos que saíram da escola por causa da fome para poder ir atrás de um prato de comida e ter uma refeição decente”, conta Douglas. “Eles optaram por largar os estudos e ir trabalhar, catar papelão, vender latinha pra sobreviver”, completa.

 

O cozinheiro diz que lembra bem das crianças pela relação no refeitório. “Com alguns a gente tinha um contato mais próximo e vê-los desse jeito dói.” Douglas lembra que não é possível estudar e trabalhar com fome. “Não tem como um aluno ser exemplar e um trabalhador dedicado passando necessidades”, afirma.

 

 

Adriana Costa é professora de História e Geografia na rede estadual do Rio Grande do Sul. Atua na E.E.E. Médio Ceará com todas as turmas de Ensino Fundamental II (6º aos 9º anos). Ela explica que não sabe os valores destinados pela SEDUC às verbas para alimentação na escola. No entanto, notou uma diminuição na distribuição de alimentos devido à organização que a escola adotou pelas regras de distanciamento social.

 

Ela conta que nos anos anteriores as crianças e adolescentes lanchavam próximo ao horário do intervalo, todos juntos, por volta das 16h. Agora estão indo para o refeitório uma turma por vez, mais cedo, entre os períodos de aulas.

 

A professora afirma que muitos alunos relatam não estar com fome porque, segundo eles, acordaram há pouco tempo. No entanto, ela explica que há um certo constrangimento em alimentar-se na escola. “Este é um ponto que tive que trabalhar um pouco com os sextos e sétimos anos por ouvir algumas falas do tipo ‘eu acabei de almoçar na minha casa, nada a ver esse horário do lanche’, enquanto era nítido que alguns alunos iriam aceitar o alimento, mas não o fazem porque vários colegas falaram nesse tom de desdém”, conta.

 

“Também é importante frisar que nem sempre temos frutas e verduras para ofertar aos estudantes, o que além de ser saudável para o corpo, complementaria a alimentação daqueles que muitas vezes ingerem apenas um macarrão instantâneo no almoço, como muitos estudantes me contam ser o costume em suas casas”, completa.

 

Adriana destaca que o sexto ano é um momento muito delicado, pois os alunos passam de uma professora para o contato com nove docentes. Assim, é difícil criar vínculos com os estudantes logo no início, ainda mais pela volta presencial no mês de agosto. “Desde esse período, vejo alunos muito tímidos, quietos e com dificuldades em gerar laços sociais. Eu não posso afirmar que tive alunos que passam ou passaram fome, mas suspeito que sim”, diz. “Tentei conversar, estimulei trabalhos em grupos e eu mesma passei a me alimentar no mesmo horário para incentivar que os estudantes se sentissem acolhidos”, afirma.

 

A professora acredita que a alimentação saudável é extremamente importante não apenas para a saúde e para o desenvolvimento cognitivo, mas também para criar laços enquanto uma comunidade escolar que se preocupa com o desenvolvimento integral dos alunos.

 

Foto: Arquivo | Agência Brasil

 

Nelza Jaqueline Siqueira Franco, 41, trabalha na EMEF Afonso Guerreiro Lima, localizada na Lomba do Pinheiro, Zona Leste da Capital, e na escola Emeb Dr Liberato Salzano Vieira da Cunha, que fica no bairro Sarandi, Zona Norte de Porto Alegre.

 

Jaqueline diz que em sua turma não houve caso de criança passando fome, mas que já soube de relatos de outros professores da escola sobre uma aluna que estava há mais de 24h sem comer e quase desmaiou em sala de aula. “Essa situação aconteceu porque ela não tinha nada em casa para comer”, afirma.

 

Para Sílvia, Coordenadora da Unidade de Alimentação Escolar, para diminuir o impacto da insegurança alimentar na infância é preciso criar políticas públicas, principalmente no contexto de pandemia, para além de medidas pontuais. “É preciso reconhecer como um dos atributos fundamentais da cidadania o acesso permanente a uma alimentação saudável e adequada em quantidade e variedade”, afirma.

 

Ela destaca o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que, ao longo dos anos, tornou-se uma política pública de Estado, amparada pela Constituição. “No contexto da pandemia e após, uma estratégia eficaz para o enfrentamento da insegurança alimentar é a maior adesão do PNAE”, defende. “Além disso, é importante esclarecer que, recentemente, pesquisadores brasileiros reconhecidos internacionalmente, identificaram que a maior adesão ao PNAE está diretamente relacionada à melhora na qualidade da alimentação e a menores índices de obesidade e sobrepeso entre os estudantes”, completa.

 

Para promover o acesso dos estudantes à alimentação escolar e contribuir com sua segurança alimentar, a SMED entregou cestas básicas, amparada pela Lei nº 13.987/2020, regulamentada pela Resolução CD/FNDE nº 2/2020, onde autoriza a distribuição de alimentos, adquiridos com recursos do PNAE, aos pais ou responsáveis pelos estudantes das escolas públicas de Educação Básica.

 

“De qualquer forma, desde a reabertura das escolas há a possibilidade de o estudante acessar a escola para fazer as refeições, mesmo que não esteja em aula presencial naquele dia”, afirma Sílvia. “Ressaltamos que, para promover oferta segura, sob o ponto de vista sanitário, foram implementados protocolos adicionais, que visam a prevenção da transmissão da covid-19”, explica. Por fim, a coordenadora esclarece que, mesmo com a necessidade de estabelecimento de novas rotinas diárias nas cozinhas escolares, o cardápio ofertado manteve-se adequado às necessidades nutricionais dos alunos.

 

Esta reportagem é uma produção do Programa Sala de Redação, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, do projeto Jornalismo & Território, com o apoio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Porticus e Open Society Foundation.

 

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