Alimentação escolar: esperança em meio à fome é alvo de disputas ontem e hoje

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25 Junho 2021

 

Recentemente a fome no Brasil voltou às manchetes do jornal. No entanto, sabemos, ela não é um problema novo. Por aqui, sofre-se com a situação desde que éramos colônia portuguesa. E só depois dos anos 1930, a partir do pensamento do médico recifense Josué de Castro, começamos a compreender a fome como um problema político, e não apenas algo relativo à produção de alimentos, ou à seca no nordeste, ou à pandemia. Para enfrentá-la, são necessárias políticas públicas sólidas e perenes.

De lá pra cá, quase cem anos depois, já foram criados (e destruídos) diversos programas com o objetivo de aplacar a fome. “O Pnae, na origem, era isso. Ele surgiu como um programa de mitigação da fome”, conta a nutricionista gaúcha Regina Miranda, uma das “figuras ocultas” mais importantes da história recente do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Ela é uma das articuladoras da lei nº 11.947, de 2009, que regula o funcionamento do programa até hoje.

Regina era integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) quando a lei foi elaborada (conselho que, vale lembrar, foi extinto por Jair Bolsonaro no primeiro dia de governo, em 2019).

A nutricionista já estava envolvida com o combate à fome há muito tempo. Na faculdade, era frequente a utilização da obra de Josué de Castro em seus trabalhos. Mais tarde, fez parte da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, fundada em 1993 e liderada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.

Em 2001, ela passou em um concurso da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul (Emater/RS). Sua primeira missão foi dizer (e convencer) no que uma nutricionista poderia contribuir para o trabalho da extensão rural. Passou, então, os seis meses seguintes viajando pelo estado, conhecendo o trabalho da Emater, estudando, e voltou com uma ideia em mente.

Na época, a legislação do Pnae era outra. Não existia, por exemplo, a obrigatoriedade de utilizar 30% dos recursos na compra direta da agricultura familiar, mas depois das andanças de Regina, ela trabalhou intensamente para incluir as colheitas dos agricultores familiares na alimentação escolar.

“Entre 2003 e 2004, a gente escreveu um manual para orientar os técnicos o que eles deveriam fazer para aproximar os agricultores desse mercado e isso virou uma febre aqui no Rio Grande do Sul”, conta Regina.

Em entrevista ao Joio, ela contou detalhes dos bastidores da criação da lei, que permitem compreender melhor não só o passado do Pnae, como também o presente. Falou, também, do lobby da indústria – que vê no Pnae um mercado bilionário -, e a resiliência daqueles que defendem o direito à alimentação saudável e adequada, que enxergam o programa como uma arma contra a fome. Partes fundamentais da história da alimentação no Brasil, ontem e hoje.

A entrevista com Regina Miranda é de Mylena Melo, publicada por O Joio e o Trigo, 22-06-2021.

 

Eis a entrevista.

 

O que a alimentação escolar tem a ver com o combate à fome?

O Pnae, na origem, era isso. Surgiu como um programa de mitigação da fome. Lembro de uma tese, de duas enfermeiras da Zona Leste de São Paulo. Foi um dos documentos que peguei, li e reli. Elas começaram a fazer essa pesquisa porque as professoras encaminhavam as crianças para os postos de saúde, para tomar medicação para “disfunção cerebral mínima”, que hoje tem outro nome. Ou, em outras palavras, hiperatividade. As professoras não podem fazer isso, porque não são médicas. E isso testemunhei trabalhando no posto de saúde.

Elas [as enfermeiras] pesquisaram esse universo, quem era essa criança, de onde vinha, o que fazia, compararam com crianças de classes média e alta, e criaram um grupo controle em que a criança dessa região, que era encaminhada para os postos, chegava na escola e recebia uma refeição. Depois, ela ia para a sala de aula.

O resultado foi assustador. Demonstrou que — e isso está no clássico Geografia da Fome, de Josué de Castro [livro lançado em 1946] — [era] o ser humano na sua primeira fase da fome. Pupila dilatada, incapacidade de raciocínio profundo, hiperatividade. É o predador na busca da presa. Hiperativíssimo, que é pra buscar sobrevivência. Essas são as crianças que estão chegando com fome na escola. Foi o que o trabalho mostrou.

Também lembro que [em outro momento] eu estava fazendo uma oficina com uma mãe, na favela [em Porto Alegre], falando de aproveitamento de alimentos. No final da minha fala, eu estava lá preparando alguma coisa, um bolo, e a mãe diz: ‘Ah, muito legal, mas é mais barato comprar refrigerante, comprar salgadinho’. Essa é a fome que a gente vive hoje. Se a escola não faz [um programa de alimentação com refeições saudáveis], imagina essa criança de quem eu estou falando, que eu fiz uma caricatura? A chance dela comer algo que preste na vida é na escola.

Como era a alimentação escolar quando você começou a atuar na área?

Vi coisas horríveis. Como nutricionista jovem, trabalhava em saúde pública. E via ração chegando nas escolas. As escolas de onde trabalhava [no Rio Grande do Sul] me chamavam para ensinar o que fazer com aquele monte de pó. Vinha pó de soja para fazer bebida saborizada, tinha para fazer biscoito de não sei o quê. Tudo era pó, pó, pó.

Em 1994, teve uma lei que alterou um pouco as compras e colocou a alimentação básica — era assim que eles chamavam. Até descrevia 71 itens que deveriam ser adquiridos para dar uma melhoradinha. Isso aconteceu no mesmo momento, no ínterim, em que [o programa] estava sofrendo uma grande auditoria, por causa dos roubos no recurso do Pnae.

No início dos anos 1990, denúncias de corrupção e desmonte das ações de combate à fome durante o governo Collor culminaram na abertura da CPI da Fome e em auditorias realizadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Dentre as irregularidades encontradas pelo TCU na gestão da alimentação escolar, estavam desvios e fraudes na distribuição de alimentos; uso eleitoral do programa; fornecimento de alimentos incompatíveis com as diretrizes do programa e a formação de cartéis da indústria de alimentos, como as de formulados e de leite em pó, que superfaturavam em até 90% o valor dos produtos.

Mesmo com as mudanças no Pnae, em 1994, o programa permaneceu sem um instrumento efetivo de inclusão dos alimentos da agricultura familiar na alimentação escolar, algo que está diretamente relacionado à oferta de uma merenda saudável, rica em alimentos in natura e minimamente processados. Isso só mudou depois da lei nº 11.947, de 2009, que foi amplamente discutida e proposta pelo Consea. Como essa questão da compra da agricultura familiar surgiu no Consea?

A gente [na Emater] escreveu esse manual para orientar os técnicos do que eles deveriam fazer para aproximar os agricultores desse mercado e isso virou uma febre aqui no Rio Grande do Sul. Quando chego no Consea Nacional [em 2004] aventou-se a ideia, mas ela encontrou altíssima rejeição. A maior rejeição que encontrei foi de uma colega, que não vou nem delimitar o perfil, porque não quero identificá-la, mas foi uma pessoa de alta influência. Essa pessoa me atacou, inclusive questionando a minha condição de nutricionista e de estar propondo isso. Ao mesmo tempo, o pessoal da agricultura familiar colou em mim. Se apaixonou pela ideia. Ganhei essa força de me afirmar perante os segmentos que representavam a agricultura familiar dentro do Consea Nacional, que era um segmento fortíssimo.

Qual era o argumento das pessoas que rejeitavam essa proposta?

A ideia dessas pessoas que me atacavam é que era impraticável [por conta da questão higiênico-sanitária, capacidade produtiva e mudanças no modelo de compras].

Então, o Chico Menezes, que era presidente do Consea Nacional, espertíssimo que ele é, estava lá fazendo a concertação daqueles interesses, mas ele viu ali que tinha uma força muito grande e que aquilo começou a crescer. E rapidamente instituiu um grupo de trabalho para pensar o que seria isso. [O grupo foi coordenado pela pesquisadora Denise Oliveira, atualmente vice-diretora da Fiocruz]. Foi muito lindo. Aí, se dissolve essa ideia de colocar todos contra mim.

Além da compra direta da agricultura familiar, quais eram os principais pontos debatidos pelo Consea nessa época?

Priorizar a alimentação saudável. Cardápio — que era o nosso sonho — adequado às realidades locais e aos hábitos alimentares locais. Priorizar indígenas e quilombolas. As compras locais priorizadas em relação às regionais. São tópicos que penso que são fundantes. O consumo de frutas, verduras e legumes, que era um grande debate na época. E isso tudo tu vê que está escrito na lei. Foi um processo muito lindo, porque estavam ali os atores estratégicos. Tinha tanto o pessoal que estava ali da porta para dentro da escola, que estava nas propriedades rurais, que conhecia as realidades [locais], muitas ONGs participaram desse processo, os nutricionistas…

Alguma empresa tentou boicotar a proposta?

Tinha a Abia, Associação Brasileira da Indústria de Alimentos, mas nunca encontrou acolhimento no Consea. Era sempre uma cadeira solo. Mas eles tentaram. Tentaram muito.

Eu recebia convite para passar 15 dias não sei aonde, com tudo pago, para fazer não sei o que, que me levava não sei onde. Então tinha todo um jogo de sedução para cooptar aqueles sujeitos que eles [a Abia] viam que tinham certa influência na opinião das pessoas. Fizeram isso comigo e com outras também.

Atualmente, são associadas à Abia a Coca-Cola, Danone, Nutrimental, Nestlé, Mondelez, Pepsico, Unilever, McDonalds, entre outras empresas. Algumas delas fizeram parte de uma pequena lista, de 12 empresas que forneciam todos os alimentos da merenda ao governo brasileiro, na década de 1970. A Nutrimental, por exemplo, foi a empresa com maior participação nas vendas para a alimentação escolar em 1979. Coca e Pepsico também estão nessa lista.

Depois que os conflitos foram resolvidos e o Consea encaminhou o projeto de lei à Câmara dos Deputados, o que ocorreu?

A gente teve que fazer uma peregrinação no Congresso. Fomos visitar o gabinete do Fernando Haddad [à época, ministro da educação]. E aí eu falei a respeito da lei, das experiências, das potencialidades, das dificuldades — que eram absolutamente superáveis, o Brasil já enfrentou coisa bem pior e hoje tem programas consolidados.

Ele ouviu do início ao fim e disse “muito bem”. Foi lá, mexeu em uns objetos que ele tinha na mesa, num lugar bem à mão, e me apresentou uma proposta, que não fazia muito tempo uma empresa tinha visitado o gabinete dele propondo a terceirização da alimentação escolar. [Estávamos] nós, com a nossa carinha militante, com aquelas roupas de bicho grilo, chegando lá com o nosso papinho, e o cara já deu e-book, CD, na época, todo o material de divulgação, todo um manual, tudo eletrônico. Aí, a gente se deu conta de em que lugar nós estávamos.

O Haddad se apaixonou pela proposta [do Consea]. Botou embaixo do braço e começou a fazer esse lobby dentro do Congresso também. No Senado, o grande defensor foi o Suplicy, que também se apaixonou pela proposta.

Apesar da simpatia do deputado e do senador, e do projeto ter sido aprovado com unanimidade na Câmara dos Deputados em 2008, ele não passou no Senado. Diante do impasse, o Consea acionou o então presidente Lula, que sancionou a lei com uma medida provisória. Qual era o sentimento de vocês na época?

Tinha uma ansiedade muito grande, que é uma coisa que está quase na memória da brasilidade. Aquele medo de, ‘bom, vai trocar o governo, isso tudo tem que funcionar’. E parece mentira, né? Mas aconteceu mesmo.

Como você avalia a adaptação dos estados e municípios à lei nº 11.947, especialmente em relação às compras da agricultura familiar?

É o seguinte: [há] dificuldade de convencimento dos estados. Quando não está convencido, ele [o governo estadual] dá um jeito de não funcionar mesmo, de boicotar. Essa coisa da regularidade [do fornecimento de alimentos], quantidade, qualidade, transporte, são pontos sensíveis que tinham que ser estruturados. E isso tu precisa de vontade política para fazer.

A esperança é que o Pnae vem melhorando ao longo dos anos. De uma campanha de alimentação escolar, fundada por Josué de Castro, há cerca de 50 anos, a chegar nisso que temos agora, a gente tem que reconhecer que é um grande progresso.

 

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