Fluxo intergeracional, Bônus demográfico e Poupança. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

Mais Lidos

  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS
  • Povos Indígenas em debate no IHU. Do extermínio à resistência!

    LER MAIS
  • “Quanto sangue palestino deve fluir para lavar a sua culpa pelo Holocausto?”, questiona Varoufakis

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

11 Fevereiro 2021

"A interação entre a demografia e a economia é fundamental para o desenvolvimento econômico. A mudança no fluxo intergeracional de riqueza possibilita a redução da fecundidade e o aumento da taxa de poupança nas famílias e na sociedade", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e pesquisador titular da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 10-02-2021.

Eis o artigo.

“A transição demográfica é o fenômeno de mudança de comportamento de massa mais importante da história da humanidade”

 Alves, JED. (Rebep, 2020)

Todo país rico – com alto Índice de Desenvolvimento Humano – passou pela transição demográfica, o que significa a passagem de altas para baixas taxas de mortalidade e natalidade. Durante 200 mil anos, desde o surgimento do Homo sapiens, as taxas de mortalidade sempre foram altas (e a esperança de vida ao nascer das diversas populações era muito baixa, entre 20 e 25 anos) e para se contrapor à mortalidade precoce, as taxas de fecundidade tinham de ser altas para garantir a sobrevivência das populações. Assim, a grande maioria das mulheres começava a ter filhos ainda na adolescência e passava todo o período reprodutivo tendo filhos.

Durante o século XX a esperança de vida da humanidade mais que dobrou, passando de cerca de 30 anos em 1900, para mais de 60 anos no ano 2000. A vitória sobre a mortalidade precoce foi uma vitória e tanto e jamais algo parecido havia acontecido no mundo. Crianças morriam como mariposas e adultos “abandonavam” a vida em seus momentos de maior produtividade e criatividade. Muitos sonhos foram desfeitos e muita potencialidade foi desperdiçada. Mas com a união de todas as forças progressistas e o esforço coletivo as taxas de mortalidade foram reduzidas e continuam a cair nas duas primeiras décadas do século XXI.

Uma sociedade que tenha uma taxa de fecundidade acima de 4 filhos por mulher (pelo menos 4 filhos sobreviventes) teria uma progressão familiar como na figura abaixo. A formação de um casal, com idade ao casamento abaixo de 20 anos, formaria uma família com 4 filhos em torno de 30 anos. Este 4 filhos sobreviventes formariam outras 4 famílias e tendo 4 filhos em média 60 anos depois da união do casal hipotético. Quatro famílias com 4 filhos cada uma, possibilitariam a formação de 16 famílias, que com 4 filhos sobreviventes em média, daria 64 filhos 90 anos depois da primeira união hipotética da figura abaixo. Seguindo nesta lógica, os 64 filhos formariam 64 famílias que teriam 256 filhos, 120 anos depois da primeira união. E estes teriam 1.032 filhos 150 anos depois da primeira união. Ou seja, a partir de duas pessoas com sobrevivência acima de 30 anos, uma sociedade chegaria a 1.032 descendentes em pouco mais de um século.

Foto: EcoDebate

Esta lógica – com ritmo maior ou menor nos diversos momentos históricos – é a base do crescimento exponencial que possibilitou que a população humana passasse de 4 milhões de pessoas há 12 mil anos, para atingir 8 bilhões de habitantes em 2023 (a população global cresceu 2 mil vezes em 12 mil anos). No extremo, isto pode ser a base do círculo vicioso da pobreza.

Mas este ritmo começou a mudar nos últimos 2 séculos. O demógrafo australiano John Caldwell – no livro Theory of fertility decline, 1982 – afirmou, de forma categórica, que só existem dois tipos de regimes de fecundidade: um, em que prevalecem altas taxas de nascimento e os pais não têm ganhos econômicos no controle da fecundidade; e outro, em que prevalecem baixas taxas de nascimento e não há ganhos econômicos em tal controle. Em ambas as situações o comportamento dos indivíduos é economicamente racional.

No regime de alta fecundidade (como na figura acima), o fluxo intergeracional de riquezas (moeda, bens, serviços e proteção contra riscos) vai dos filhos para os pais, ou das novas para as velhas gerações. Isto é, os filhos são fonte da riqueza dos país, os netos são fonte de riqueza dos avós, etc. Nesta situação, o crescimento das famílias e, consequentemente, da população, é uma estratégia para garantir a “fortuna” das gerações mais velhas.

Mas tem dois problemas nesta perspectiva. A riqueza que vai das novas para as velhas gerações é uma riqueza muito determinada em termos de proteção de riscos e não de aumento da renda e do patrimônio. Este tipo de família tem uma baixa taxa de poupança, pois o investimento é feito na quantidade e não na qualidade das crianças. Neste contexto, as mulheres são “forçadas” a passar toda a vida em atividades reprodutivas e ficam fora das atividades produtivas (com baixíssima inserção no mercado de trabalho). Assim, tende a prevalecer a família patriarcal, com alta desigualdade de gênero, do homem/pai como único “ganha pão” da família.

O outro efeito da alta fecundidade é fazer a pirâmide etária ter uma base muito larga, isto é, com alta dependência de jovens e baixa proporção de pessoas em idade ativa, como mostrado no gráfico abaixo referente à Coreia do Sul, em 1950. Ou seja, um regime de alta fecundidade dificulta o investimento nas crianças (futuras gerações), dificulta o aumento da taxa de poupança e de investimento (como mostrou Rostow), dificultando o aumento da produção agregada e o aumento da renda per capita.

Foto: EcoDebate

O regime de baixa esperança de vida e alta fecundidade prevaleceu na maior parte dos 200 mil anos da história do Homo sapiens, com o fluxo intergeracional da riqueza indo das novas para as velhas gerações. Porém, algo aconteceu que possibilitou a reversão do fluxo. E, a despeito de todas as resistências, a fecundidade caiu na maior parte dos países do mundo, inclusive no Brasil. Independentemente das ideologias nacionalistas e religiosas, as mulheres e os casais passaram a ter menos filhos, o que representou uma mudança de comportamento de massas sem precedente.

Os estudos de Caldwell mostram que a queda das taxas de fecundidade está ligada à reversão do fluxo intergeracional de riqueza, que deixam de ir dos filhos para os país, ou das novas para as velhas gerações e passa a ir dos pais para os filhos. As famílias passam a investir na qualidade e não na quantidade de filhos. A questão chave para se entender a transição da fecundidade, passa a ser a compreensão da direção e magnitude do fluxo intergeracional de riqueza. Este tipo de família tende a ter maior igualdade de gênero.

Na verdade, caindo as taxas de mortalidade, já não fazia mais sentido manter altas taxas de natalidade. Contudo, houve resistência nas sociedades que haviam se preparado durante séculos para manter altas taxas de fecundidade (número de filhos por mulher) e criado uma cultura pronatalista. Romper com as tradições e os fatalismos é sempre uma ação social que encontra muitas barreiras. A ordem patriarcal foi consolidada valorizando as mulheres enquanto donas de casa, esposas e mães dedicadas, o que restringia uma mudança nas relações de gênero.

Para Caldwell, a reversão do fluxo intergeracional não é mecanicamente determinada pelas condições econômicas, mas sim, por um fenômeno social que decorre da mudança da família extensa para a família nuclear. O processo de ocidentalização significa a erosão das estruturas tradicionais da família e a promoção de um processo de nuclearização que tem como consequência o declínio da fecundidade. As forças que sustentam uma fecundidade elevada podem ser mantidas pelo processo de modernização se não forem acompanhadas por mudanças sociais específicas, como aconteceu no Brasil antes de 1960.

De fato, enquanto o Brasil era uma sociedade agrária e rural, o custo dos filhos era baixo e os seus benefícios eram altos. Os filhos criados nas fazendas geralmente não iam para a escola, não possuíam brinquedos e bens industrializados, não demandavam muitos recursos monetários dos pais e ajudavam na produção de subsistência, nas tarefas de cuidado da casa, dos parentes e das gerações idosas. A alta mortalidade infantil era compensada pela alta fecundidade e o custo da mortalidade era baixo. Homens que tinham filhos fora do casamento não se responsabilizavam pelos “filhos ilegítimos” (não existia exames de DNA e a legislação não garantia os direitos dos filhos fora do casamento). Quando se separavam das mulheres raramente tinham de pagar pensão alimentícia. Nesta situação, ter muitos filhos era uma atitude racional, pois os pais (as gerações mais velhas) gastavam pouco com os filhos e recebiam deles muitos benefícios monetários ou de outros tipos. Desta forma, existia uma alta fecundidade no Brasil porque o fluxo intergeracional de riquezas ia das novas para as velhas gerações.

Como o processo de modernização e o crescimento da sociedade urbana e industrial as condições mudaram muito. Os filhos precisam ir para a escola (por lei e por exigência do mercado de trabalho), o consumo de alimentos e de produtos industrializados exigem a obtenção de recursos monetários. O casal ficar “grávido”, fazer pré-natal, pagar pelos diversos custos do parto, cuidar da criança nos seus primeiros meses, etc. fazem da mortalidade infantil um custo alto, em termos financeiros e psicológicos. Garantir uma boa escola e condições de estudo adequadas para os filhos está sempre além das possibilidades das famílias. Paralelamente ao aumento do custo dos filhos, existe a redução dos seus benefícios, pois existem leis contra o trabalho infantil, os filhos fora do casamento são identificados pelo teste de DNA e as separações não eliminam os compromissos dos pais com os filhos. Por outro lado, o sistema previdenciário faz com que os pais não dependam financeiramente dos filhos na velhice. Por conta de todas estas transformações, o custo dos filhos é alto e os seus benefícios são baixos.

Invertendo a relação custo/benefício dos filhos inverte-se também o fluxo intergeracional de riquezas e quando isto acontece a fecundidade cai, de acordo com a análise de Caldwell. Mas não só as mudanças econômicas estruturais possibilitaram a transição da fecundidade. Como mostrou Faria (1989) as políticas públicas promovidas pelo Governo Federal, depois de 1964, foram estratégicas para o aumento da demanda por regulação fecundidade e a consequente redução da natalidade no Brasil: 1) política de crédito ao consumidor; 2) política de telecomunicações; 3) política de previdência social; 4) política de atenção à saúde. Usando um arcabouço próprio dos enfoques culturais, o autor considera que as políticas públicas influenciaram na queda da fecundidade agindo como vetores institucionais (difusão) portadores de novos conteúdos de consciência (inovação). A transição da mortalidade induz a transição da fecundidade e as mudanças estruturais e institucionais do país sancionam a transição demográfica. Geração e gênero são fundamentais neste processo (Alves, 1994).

Quando a fecundidade cai e as famílias passam a investir mais na qualidade do que na quantidade dos filhos a dinâmica das famílias muda como na figura abaixo, onde cada família adota o filho único. É claro que o exemplo abaixo é hipotético, mas é um modelo assim que serviu de base para a política de filho único da China.

Numa sociedade com alta fecundidade as famílias se multiplicam e com baixa fecundidade é o contrário. Partindo de um total de 8 famílias, a figura abaixo mostra o efeito da adoção de uma taxa de fecundidade igual a 1 filho sobrevivente por mulher. De um situação de 8 famílias, o filho único gera 4 famílias, depois 2 famílias e finalmente 1 família (é um situação de decrescimento populacional).

Foto: EcoDebate

Ou seja, ao invés de um casal gerar 1.032 descendentes em 150 anos, o modelo de filho único gera uma redução de 8 famílias para 1 família em menos de um século. O filho único da figura acima não tem irmãos e primos, mas tem 16 trisavós, 8 bisavós, 4 avós, além dos dois pais. Se cada adulto deixa uma herança/patrimônio para a geração mais nova, o filho da 4ª geração vai poder contar com um patrimônio considerável. Famílias pequenas avançam no capital humano e quando mais educação tiverem maior será a renda familiar.

Há dois elementos fundamentais no modelo acima: em primeiro lugar, as famílias tendem a ter maior igualdade de gênero e serem mais ricas, pois o casal de filho único gasta pouco tempo com atividades reprodutivas e, em geral, possuem recursos para investir na própria educação, possuem maior inserção no mercado de trabalho, são mais produtivos e investem mais no filho. São famílias que entram no círculo virtuoso da riqueza.

Em segundo lugar, uma menor fecundidade possibilita uma mudança na estrutura etária, como visto abaixo na pirâmide populacional da Coreia do Sul, em 2020. Nota-se que a base da pirâmide reduziu muito em relação ao ano de 1950 e o topo da pirâmide não cresceu tanto. Isto quer dizer que a maior parte da população está nas idades produtivas e isto gera um bônus demográfico que é fundamental para a decolagem do desenvolvimento econômico e social. Se forem adotadas as medidas institucionais corretas, pode existir uma sinergia entre a queda da fecundidade e o aumento da taxa de poupança e da taxa de investimento como aconteceu na Coreia do Sul nos últimos 70 anos.

Foto: EcoDebate

O mesmo aconteceu com a China, que tinha uma renda per capita 15 vezes menor do que a renda per capita brasileira, mas já tinha taxas de poupança mais elevadas e teve uma decolagem econômica impressionante nos últimos 40 anos depois da adoção da política de filho único, que foi uma política autoritária e contra os direitos sexuais e reprodutivos, mas que foi efetiva no sentido de aproveitar o bônus demográfico chinês e reduzir para praticamente zero o número de chineses na extrema pobreza.

A China e a Coreia do Sul possuíam uma renda per capita muito menor do que a renda per capita brasileira em meados do século passado. Cutler et al. (1990), analisando o processo de transição demográfica, não deixam dúvidas sobre as vantagens da mudança da estrutura etária: “Nossa conclusão é que a queda da fecundidade representa uma oportunidade e não um problema” (CUTLER et al., 1990, p.3). Infelizmente, a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo em 1994, não levou estas questões em consideração e nem fez referência ao bônus demográfico. Mas a realidade é que os países do leste da Ásia que passaram pela mudança do fluxo intergeracional de riqueza conseguiram avançar no bem-estar econômico, assim como nos indicadores sociais.

A tabela abaixo, com dados do FMI, mostra como a China (43%) e a Coreia do Sul (35,4%) possuem taxas de poupança muito mais elevadas do que no Brasil (18,1%) no período 1980 a 2019. Isto quer dizer que estes dois países do leste asiático investem mais do que o Brasil, possuem maiores taxas de crescimento do PIB e já possuem renda per capita superior à brasileira, sendo que a Coreia do Sul já é considerada de alta renda e a China está a caminho de superar o estágio de renda média. Sem as mudanças demográficas seria impossível o salto do desenvolvimento que ocorreu no extremo asiático. A China e a Coreia do Sul são exemplos de países que souberam aproveitar o bônus demográfico.

A interação entre a demografia e a economia é fundamental para o desenvolvimento econômico. A mudança no fluxo intergeracional de riqueza possibilita a redução da fecundidade e o aumento da taxa de poupança nas famílias e na sociedade.

Mas o bônus demográfico não é de colheita automática. Políticas públicas de emprego, educação, saúde e previdência são essenciais para colher os frutos de uma estrutura etária favorável e para possibilitar o bem-estar de toda a sociedade.

Referências:

ALVES, J. E. D. Transição da fecundidade e relações de gênero no Brasil. 1994. 152f. Tese (Doutorado) – Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Universidade Federal de Minas Gerais, BH, 1994. Disponível aqui.

ALVES, JED. Bônus demográfico no Brasil: do nascimento tardio à morte precoce pela Covid-19, R. bras. Est. Pop., v.37, 1-18, e0120, 2020. Disponível aqui.

ALVES, JED. Famílias de filho único, decrescimento populacional e regeneração dos ecossistemas, Ecodebate, 18/05/2020. Disponível aqui.

ALVES, JED. O fim da política de filho único e o desequilíbrio na razão de sexo na China, Ecodebate, 08/04/2016. Disponível aqui.

CUTLER, D. M.; POTERBA, J. M.; SHEINER, L. M.; SUMMERS, L. H.; AKERLOF, G. A. An aging society: opportunity or challenge? Brookings Papers on Economic Activity, v. 21, n. 1, 1990.

FARIA, V.E. Políticas de governo e regulação da fecundidade: conseqüências não antecipadas e efeitos perversos. In: CIÊNCIAS Sociais hoje. São Paulo, ANPOCS, 1989.
JOHN CALDWELL (Theory of fertility decline. London : Academic, 1982.

ROSTOW, Walt Whitman. As etapas do desenvolvimento econômico. RJ: Zahar, 1961.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

Fluxo intergeracional, Bônus demográfico e Poupança. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU