Uma oportunidade para a Sociologia do Trabalho sair de sua prostração

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21 Mai 2020

Historicamente, a sociologia do trabalho desempenhou papel reflexivo importante no embate capital versus trabalho, particularmente fornecendo arsenal para as lutas emancipatórias. Nos últimos tempos, porém, presa à sociedade fordista e enredada ao debate economicista encontra-se em estado depressivo, sem forças de reação e contribuição para se pensar saídas. A crise mundial da pandemia é uma oportunidade para ousar propostas que não se resumam a defesa do que já está posto, ao mais do mesmo, escreve Cesar Sanson, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.

Eis o artigo.

O trabalho é constitutivo ao nascedouro da sociologia. Basta tomar como referência Durkheim. O autor que elevou a sociologia ao status de ciência tinha no trabalho uma categoria determinante e profilática para tornar a sociedade coesa e socialmente equilibrada. Ainda antes, porém, Marx, outro representante da sociologia clássica, considerava o trabalho a pedra angular para se compreender e romper com o capitalismo. Na longa trajetória da produção intelectual de Karl Marx, o trabalho foi assumindo importância e centralidade à medida em que foi “descobrindo” que o funcionamento do sistema capitalista está ancorado num ‘sistema trabalho’ que produz contradições irreconciliáveis. Até mesmo Weber – que completa o grupo dos clássicos das ciências sociais – interessou-se pelo trabalho na medida em que este forneceu as bases ético-culturais para a compreensão e legitimação do capitalismo.

Culto a maquina. Exposição na Pensilvânia, Filadelfia (1876) em comemoração aos cem anos da Declaração da Independência americana.

Isso tudo para dizer que a sociologia do trabalho constituiu-se numa das principais áreas de estudo e pesquisa da Sociologia. A sociologia do trabalho teve o seu tempo de exuberância. Hoje, porém, encontra-se depressiva, incapaz de reagir aos tormentos que a afligem. Parte da perda da substância e consequente declínio da sociologia do trabalho deve-se em parte ao fato de que, ancorada na matriz marxista, viu esse universo se desmantelar. Como se sabe, no conjunto da obra marxiana, o trabalho ocupa lugar por excelência na materialidade da opressão, porém é também o lugar da tomada de consciência de classe e da insurgência. As mesmas forças produtivas que geram a opressão podem gerar a emancipação. Marx acreditava que os proletários são “a classe que traz nas mãos o futuro” e que o modo produtivo capitalista é insustentável, porque “as condições de existência da velha sociedade já estão destruídas nas condições de existência do proletariado”.

Logo, por um tempo razoável, que podemos datar do último quartel do século XVIII ao último quarto do século XX, o trabalho caracterizava-se potencialmente pelo seu aspecto emancipatório. Acreditava-se que a classe operária se colocaria em marcha e viraria o jogo, como atestam Marx e Engels no Manifesto Comunista: “A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu declínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”. O fato é que efetivamente isso nunca aconteceu, embora alguns eventos históricos não desmintam essa convicção, como foram a Comuna de Paris, as Revoluções de 1848, período de intensa agitação política na qual os movimentos de trabalhadores viam a possibilidade de desencadearam revoluções de caráter socialista e, finalmente, o evento maior de 1917, a Revolução Russa. Nesse período, os estudos e a investigação acerca da classe operária ganharam notoriedade, como se vê em Gramsci, Lukács, Hobsbawm, Thompson, Braverman, entre outros. Nessa época, o trabalho dialoga intensamente com a ciência política e há um frescor de ruptura no ar.

Sob a influência do keynesianismo, o trabalho, entretanto, de matriz insurrecional foi enquadrado pelo fordismo. Doravante, o operariado se constitui como classe hegemônica, valorizada e temida pelos seus sindicatos, mas não mais temida pela Revolução. O fordismo, aliás, como atesta Gramsci, deixou de ser apenas um modo de organizar a produção e se transformou em modelo de sociedade ético-econômica-cultural. Resultou no Welfare State e em seu círculo virtuoso: consumo, produção, emprego. Nesse período, a sociologia do trabalho ainda mantém o seu frescor insurgente e se volta sobretudo para os estudos das formas de organização operária e suas lutas sociais. É nos países periféricos, porém, que a sociologia do trabalho renova a sua literatura emancipatória com os grandes eventos operários, como por exemplo, no Brasil, com as greves no ABC paulista, no final dos anos 1970. Durante os anos 1980, vê-se ainda uma sociologia do trabalho dialética que vê, estuda e interpreta os respiros de luta social.

Hoje, porém, com a derrocada da sociedade fordista, com a derrota do keynesianismo e com a derrota dos partidos operários no poder, a sociologia do trabalho debilitou-se. É um equívoco considerar que essas sejam as únicas razões para o declínio da sociologia do trabalho. Há outras. Antes, porém, falemos um pouco mais do impacto da derrota do fordismo e de sua influência na sociologia do trabalho.

Por muito tempo se pensou, na sociologia do trabalho, que caminhávamos inexoravelmente para uma civilização inclusiva, na qual o trabalho assalariado desempenharia papel central na distribuição de renda e inclusão social. Acreditava-se que o pêndulo capital versus trabalho chegaria a certo ponto de equilíbrio, sobretudo pelas lutas operárias. O fato é que a ofensiva poderosa do capital, a partir do último quarto de século XX, devastou a sociedade do trabalho e o movimento operário.

Dois movimentos simultâneos esfacelaram o fordismo. De um lado, a evolução das forças produtivas que reorganizaram o modo produtivo, atingindo, sobretudo, o núcleo duro do movimento operário, a indústria. De outro, a ascensão do neoliberalismo, que retirou o papel do Estado como o pilar regulador da relação capital-trabalho. Doravante as relações de trabalho fazem-se sempre e cada vez mais num processo de relações institucionais de individualização, no qual os atores do trabalho, como os Sindicatos, veem-se enfraquecidos. Simultaneamente a esses processos temos ainda a financeirização que se sobrepôs ao capitalismo produtivo e assumiu as suas rédeas, a fábrica se tornou extensão do sistema financeiro.

Parte do estado de inércia da sociologia do trabalho é originário da velocidade desse processo. Muitos não “acreditam” que isso tenha acontecido em tão pouco tempo e encontram-se prostrados, com o tamanho da avalanche. Não se deram conta do poder disruptivo da Terceira e Quarta Revolução Industrial e da ofensiva arrasa quarteirão do neoliberalismo, que pulverizou e deixou em cinzas o arcabouço jurídico de proteção social do trabalho. Outros, ainda, embora não explicitem categoricamente, escondem anseios de um possível retorno ao fordismo, do pleno emprego, do assalariamento, da força dos sindicatos. Ilusões que aumentam a depressão. O fato inconteste, porém, é que o fordismo foi substituído pela uberização. A sociedade do pleno emprego e a rede de proteção social do fordismo jamais retornará e, se retornar, dar-se-á em outro patamar. Acostumada a dialogar com a realidade fabril-operária, a sociologia do trabalho encontra-se atordoada. Uma palavra ainda sobre o fordismo que exige da sociologia do trabalho uma posição mais clara e contundente. A produção fordista estandardizada exauriu os recursos naturais. A crise ambiental interdita a continuidade de um modelo que não é mais possível, a ideia de crescimento infinito num planeta de recursos finitos. A produção em larga escala se tornou inexequível e exige repensar o atual padrão produção-consumo.

Há outra razão, entretanto, para o declínio da sociologia do trabalho. É a sua crescente “opção” em dialogar mais com a ciência econômica do que com a ciência política. Como se sabe, no debate da economia há pouco espaço para a ruptura, ou no máximo, permite-se a transição da ortodoxia para a heterodoxia. Sai-se de um sistema de ortodoxia liberal e vai-se para um sistema de heterodoxia social em que as reformas ganham consistência. Reformas, entretanto, que não abalam o capital. Nestes últimos tempos, a sociologia do trabalho anda mais de mãos dadas com o debate econômico do que com o debate político. Por dentro da economia, o debate se dá na esfera da ‘ordem’ e não da ‘ruptura’.

Finalmente, a razão, talvez maior, do enfraquecimento da sociologia do trabalho deve-se ao fato de que as lutas dos trabalhadores desceram ao seu patamar mais baixo. A sociologia do trabalho é forte quando se volta à práxis, aos movimentos emancipatórios, às ações coletivas. Mas estes deixaram de existir. Agora, no mundo do trabalho, tudo é subsunção, exploração, opressão, assujeitamento. Os estudos não conseguem encontrar a devida dialética, porque não a veem na práxis. O pêndulo ficou de um lado só, do lado do capital. A crise terminal da sociedade salarial se tornou a crise da sociologia do trabalho. A crise das lutas operárias levou ao impasse do papel histórico da sociologia do trabalho, que sempre foi o de pensar dialeticamente.

Paradoxalmente, é agora, na pandemia do coronavírus, que vem devastando ainda mais a sociedade do trabalho, que vemos uma oxigenação do debate. Por um lado, há aqueles que veem nessa pandemia o estertor das relações de trabalho, ancoradas na normatização, tendo em vista as medidas ainda mais recrudescedoras da desregulamentação e sentem-se ainda mais angustiados; porém há aqueles que, enxergando para além, se dão conta de que a sociedade salarial já não consegue mais incorporar a todos e procuram pensar e sugerir alternativas. Nesse debate acerca do esgotamento da sociedade salarial e da sua impossibilidade de incluir todos via assalariamento, surge a proposta da criação de uma Renda Mínima Universal (RMU) ou ainda Renda Básica Cidadã ou Renda Básica Universal. A ideia, grosso modo, é de que as pessoas recebam uma renda mensal permanente para prover a vida em suas condições básicas. O interesse por essa proposta ganhou espaço sobretudo nos países desenvolvidos ao longo da última década e se ampliou sobremaneira com a crise do coronavírus.

A sociologia do trabalho precisa entrar em cheio nesse debate, mas não apenas. Ela precisa, aproveitando-se dessa crise sem precedentes, pensar o trabalho a partir de perspectivas que não se circunscrevam apenas ao raio do capital. Assiste-se a um intenso debate em torno da pulverização da legislação do trabalho. Uma lamúria justificável e justa. Esperar, porém, que o capital aceite o retorno a CLT ou algo similar é uma ilusão. Isso não acontecerá. As forças do capital dominam o poder político. É previsível a continuidade de reformas que retiram direitos e não o contrário. Há outro fator, a evolução das forças produtivas com a introdução de novas tecnologias, como o capitalismo de plataforma, permitiu novas formas de exploração do trabalho que passam ao largo de qualquer regulamentação. Não se trata de abandonar a luta reivindicativa da regulamentação, mas não se deve ter ilusões que daí se arrancará muita coisa, fomos derrotados nesse campo.

A sociedade industrial está ficando para trás e a sociologia do trabalho precisa renovar sua produção teórica. Enquanto movimentos disruptivos não irrompem, é preciso retomar o debate de caráter emancipatório, dar ao trabalho outro lugar que não o de apenas coadjuvante menor do capital. Talvez seja o momento da sociologia do trabalho assumir um papel de ‘agitação política’, de pensar o impensável, de sugerir o que parece ser utópico em meio ao distópico. Lembremos aqui de Durkheim, tido por muitos como conservador, que à sua época, sugeriu a organização de corporações profissionais como forma dos trabalhadores terem sua dignidade respeitada. Essas corporações teriam autonomia organizativa e produtiva a partir de coletivos de trabalhadores. Uma proposta, senão inovadora à sua época, ao menos ousada. Precisamos também renovar a contribuição teórica de Marx naquilo que ele tem de mais político e menos econômico. A teoria valor-trabalho de Marx servia a um objetivo, o de dar consciência aos trabalhadores para romper com a exploração do capital, superando-o e não a ele se adequando. No caso a economia presta-se ao político e não o contrário. Faz-se necessária produção teórica de estímulo a ruptura e não produção teórica de adequação. O trabalho não pode e não deve entrar em acordo com o capital. Nessa relação ele apenas perde.

É necessário recuperar reflexões de fundo que nos tirem do debate conjuntural e nos empurrem para reflexões estruturais onde o trabalho ocupe um lugar emancipatório e não de conformação e/ou subordinação. A tarefa é dificílima, mas necessária.

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