13 Fevereiro 2020
Bergoglio não quer entrar na História como “o Papa que aboliu o celibato obrigatório”. O Papa não se atreveu a aprovar uma mínima exceção ao celibato, porque talvez considere que a instituição eclesial ainda não está preparada para isso.
Há tristeza em amplos setores da Igreja Católica mais comprometida e evangélica. Entre outras coisas, porque as expectativas eram altas e, por conseguinte, maior a decepção. Não obstante, nossa crítica à decisão papal não quer dizer que deixaremos de apoiar Francisco e suas reformas. Seguiremos a seu lado, custe o que custar.
O artigo é de José Manuel Vidal, publicado por Religión Digital, 12-02-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O papa Francisco não quis ou não pode abrir um pequeno resquício na lei do celibato obrigatório do clero. E, como é lógico, há decepção e tristeza em amplos setores da Igreja Católica mais comprometida e evangélica. Entre outras coisas, porque as expectativas eram altas e, por consequência, maior a decepção. Perdeu-se uma oportunidade histórica, única. Resta o pequeno toque de esperança de que um Sínodo (com a força que essa realidade alcançou na primavera de Francisco) peça oficial a um Papa que o faça, que admita exceções à férrea lei celibatária clerical, ainda que esse tenha considerado que a hora ainda não chegou.
“Que o pedido venha de baixo”, havia dito o Papa ao bispo brasileiro dom Erwin Kräutler, quando lhe trouxe o problema. Fiel à sua ideia de construir uma Igreja sinodal, na qual as decisões não sejam tomadas somente na hierarquia vaticana. E, para fazer o caminho, o próprio Francisco convocou o Sínodo da Amazônia, em Roma.
E do Sínodo saiu a petição para abrir o sacerdócio a diáconos permanentes casados e o diaconato às mulheres. Uma proposta que cumpria todos os requisitos e foi aprovada pela maiorio dos dois terços dos bispos presentes na sala sinodal. E a proposta era assim: “propomos estabelecer critérios e disposições por parte da autoridade competente, no âmbito da Lumen Gentium 26, para ordenar padres a homens da comunidade adequados e reconhecidos, que ter um diaconado permanente frutífero e receber formação adequada para o presbiterado, poder ter uma família legitimamente constituída e estável, para sustentar a vida da comunidade cristã através da pregação da Palavra e da celebração dos sacramentos nas áreas mais remotas da região Amazônica. Nesse sentido, alguns defenderam uma abordagem universal ao problema”.
Porém, nem assim, Francisco quis fazê-lo. Bergoglio não quer entrar na História como “o Papa que aboliu o celibato obrigatório”. Nenhum dos Papas “modernos” quis dar esse passo. De fato, João Paulo II confessou: “sinto que a abolição do celibato acontecerá; porém que eu não a veja”. E a casa ainda sem varrer!
Francisco também não queria fazê-lo, porque nem sua “formatação” eclesiástica nem sua práxis vital o convidavam a fazê-lo. Já dizia isso pouco antes de ser eleito Papa: “No momento, sou a favor da manutenção do celibato, com todos os prós e contras que isso implica, porque são dez séculos de experiências mais positivas que erradas... A tradição tem um peso e uma validade”.
Além disso, acredito que Bergoglio não quis ou não se atreveu a rever a lei do celibato por medo de um eventual cisma eclesial. Na Igreja, a comunhão é a lei suprema por um mandato evangélico e qualquer quebra, por mais eventual e menor que seja, ameaça esse pedido do próprio Cristo.
Além de não querer, acho que Bergoglio também não pôde. É verdade que 70% do “povo santo de Deus” é a favor da abolição do celibato obrigatório, em diferentes porcentagens de acordo com os países. Mas a grande maioria da hierarquia é contra. Exceto alguns episcopados, como o da Amazônia e provavelmente o alemão, outros não querem saber disso. Nessa corrente oposta, está inserido o papa Bento que, com seu último livro, juntamente com o cardeal Sarah, contribuiu decisivamente para dar o golpe de graça à possível decisão papal.

Capa do livro de cardeal Robert Sarah sobre o celibato, que contém textos assinados por Bento XVI. Foto: Reprodução Twitter Robert Sarah
Apesar de sua promessa de “subir ao monte” para rezar e se manter em silêncio, o Papa emérito segue alimentando, talvez sem querer, o fantasma dos “Dois Papas” se enfrenando, ou, ao menos, não coincidentes em algumas questões debatidas, como a abordagem eclesial da pedofilia ou, mais recentemente, o tema do celibato dos clérigos.
Bergoglio não se atreveu a aprovar alguma mínima exceção ao celibato, porque talvez considere que a instituição eclesial ainda não está preparada para isso. Sabe-se que uma das máximas de Francisco é “que o tempo é superior ao espaço”, ou seja, que prefere inicar processos longos, lentos e custosos, a ocupar espaços de poder com decisões pessoais que, evidentemente, tem alcance da lei. Porém, como dizíamos, o povo está preparado, ainda que a hierarquia não esteja, inclusive o Papa emérito e o próprio Papa reinante.
Creio que algum dia, não muito longe, Francisco vai se arrepender de não ter tomado a decisão de permitir a ordenação dos ‘viri probati’. Porque as consequências de sua decisão de mentar o atual ‘status quo’ estão sendo desastrosas para a Igreja desde há muito tempo.
Primeiro, porque enormes quantidade de crentes vão seguir privados da eucaristia, que é o centro e a base da existência do povo de Deus. E as hóstias consagradas seguirão chegando por avião aos diversos confins da Amazônia, para serem partilhadas em “missas não-missas” feitas por catequistas ou freiras que trabalham como um clero de segunda divisão.
Em segundo lugar, porque a permanência sem fissuras do celibato obrigatório segue consagrando o clericalismo, um dos grandes males da Igreja, contra o que Francisco combate sem cessar. O clericalismo converte o padre em funcionário do sagrado. E um funcionário sem celibato deixa de ser “escolhido”, para se assemelhar aos demais cristãos.
Em terceiro lugar, com sua decisão, Francisco reforça, sem querer, o polo rigorista, que esfrega as mãos, chama de vitória e se autoconvence de que tem poder e sabe exercer a pressão. Porque são poucos, porém barulhentos, bem organizados e untados com dinheiro de suas terminais financeiras dos Estados Unidos e de outros países ricos do mundo, que não suportam um a um Papa que põe em risco e crítica sua sistema capitalista.
E, por último, espalha a decepção entre as bases majoritárias que apoiam as reformas de Francisco e se veem, de novo, frustradas por uma decisão papal esperada com suma esperança e que, logo, tornou-se em um balde de água fria.
Nossa crítica à decisão papal não quer dizer que deixaremos de apoiar Francisco e suas reformas. Seguiremos ao seu lado custe o que custar. Demonstrando que, apesar de que esse ponto concreto não quis ou não pode assumir, as linhas de força do seu pontificado remam em prol do Vaticano II, o Concílio que defendemos e o qual sempre apostamos.
Nos dói a decisão, porém assumimos com discrepância filial. Estamos com Francisco nas boas e nas ruins. Ainda que não entendamos sua decisão, seguimos achando que Bergoglio é uma benção para a Igreja e para a construção do Reino.
Também é evidente que o Papa, querendo fugir da autoreferencialidade tão insultada da Igreja, não quis colocar o debate sobre o celibato no centro de sua Exortação. Porque o centro tem que ocupar o coração do documento. E nesse núcleo está a luta contra o “pecado ecológico”, que mata os pobres e a Terra e a conversão quádrupla: pastoral, cultural, social e ecológica.
Para o Papa, o evangelho social é mais importante e mais urgente que o clerical. O grito desesperado da natureza e dos pobres é mais importante que o das comunidades sem a Eucaristia.
Sendo assim, o Papa sabe ou deve saber que nem o próprio Vaticano é capaz de marcar a agenda de informações da mídia. Nem os grandes nem os pequenos. Somente daqueles que confundem informação com propaganda. E é a mídia livre que decide qual é o coração e quais são os ramos de um documento.
E é claro que, neste caso e, mesmo que estejam errados, a mídia poderá ter o imediatismo de uma medida eclesiástica mais do que a advertência do "pecado ecológico". Entre outras coisas, porque o Papa é o chefe da Igreja Católica e não o líder de uma ONG internacional ou de uma organização supranacional como a ONU. Na Casa Comum, se pode lançar avisos e fazer recomendações. Sobre a sua casa, ele toma decisões. Ou não tomá-las. Ou deixá-las no ar.
Leia a íntegra da Exortação aqui.
Apresentação da Exortação Apostólica pós-Sinodal “Querida Amazônia”:
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‘Querida Amazônia’: tristeza e decepção, com um leve toque de esperança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU