O espelho católico da era Trump

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21 Fevereiro 2017

Há um desejo natural por uma teoria unificadora de todos os distúrbios nas instituições ocidentais, uma forma de transformar todos os conflitos em um único só para que uma situação instável possa ser destilada e compreendida. É por isso que, ao longo da semana passada, houve uma tentativa de unir a política americana e uma intriga vaticana criando um só melodrama, em que as mesmas forças populistas que elevaram Donald Trump estariam supostamente tentando derrubar o Papa Francisco.

O comentário é de Ross Douthat, publicado por New York Times, 15-02-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

A chave para esta interpretação é a conexão, relatada semana passada por meu colega Jason Horowitz, entre Stephen Bannon, ideólogo principal de Trump, e o Cardeal Raymond Burke, tradicionalista americano e o mais destacado crítico do papa jesuíta dentro do Colégio Cardinalício. A associação Bannon-Burke consiste em um encontro amigável de 2014, poucas conexões secundárias e alguns importantes pontos em comum entre as cosmovisões que ambos possuem: cada um a seu modo, são reacionários, nostálgicos pela confiança civilizacional do Ocidente ou do passado católico.

Em paralelo aqui, uma série de admiradores do papa propuseram uma narrativa em que o conflito interno da Igreja Católica e a luta secular entre ideias progressistas e o nacionalismo fazem parte, basicamente, uma mesma batalha. Por exemplo, E. J.

Dionne, do Washington Post, retratou Bannon e o papa como trancafiados em uma luta “para definir o significado tanto de americanismo como de catolicismo”. De um modo bem mais agressivo, uma outra colunista deste jornal, Emma-Kate Symons, acusava Burke de “usar o seu cargo dentro dos muros do Vaticano para legitimar forças extremistas que querem trazer abaixo a democracia progressista ocidental”.

Como uma descrição das reais maquinações, estamos diante de um absurdo conspiracional: Burke não tem tais ambições iliberais, Bannon tem outros objetivos a conquistar, e os temas teológicos divisores da Igreja são bastante distintos dos problemas políticos a dividir os países ocidentais.

Mas a ânsia de comparar os dois conflitos é, mesmo assim, compreensível, pois, apesar de todas as diferenças existentes, o drama na Igreja é uma espécie de negativo fotográfico do drama que ocorre em Washington, DC. Nos dois contextos, um centro provisório se rompeu e um populismo a vapor tomou o poder. Em ambos os contextos, ideias das margens – extrema-direita e extrema-esquerda, radical e tradicional – de repente tiveram uma ressonância inesperada.

A diferença é que, em Roma, o populista não é um presidente de direita. É um papa radical.

Uma cobertura amiga da imprensa projeta o pontífice como centrista, o equivalente eclesiástico de Angela Merkel, Barack Obama ou David Cameron, ameaçado por autoritários à sua direita. Mas ele não é nada disso, e não só porque o seu governo muito mais radical e apocalíptico do que qualquer outro tecnocrata ocidental. No contexto do papado, em seu estilo comando da Igreja, Francisco é flagrantemente trumpiano: um criador de normas, uma pessoa que desconsidera as tradições, um retórico de afronta, um pontífice impaciente com as estruturas do Direito Canônico e inclinado a governar por decreto quando as regras e as estruturas existentes resistem à sua vontade.

Seus admiradores acreditam que todos estes movimentos agressivos, desde o seu empenho de alto risco para mudar a disciplina católica sobre o recasamento e o divórcio até a recente anexação dos Cavaleiros de Malta, são justificados pela ossificação da Igreja e pela necessidade de uma transformação rápida. Quer dizer, eles consideram a infelicidade dos burocratas vaticanos, as dúvidas dos teólogos, a confusão dos bispos e a desesperança dos canonistas da mesma forma como os apoiadores de Trump consideram a ansiedade dos seus colegas em Washington, dos especialistas em política e jornalistas – um sinal de que os movimentos do líder estão funcionando, que ele finalmente está drenando o pântano romano.

Enquanto isso, os institucionalistas da Igreja dividem-se em linhas mais ou menos idênticas à dos políticos convencionais frente à ascensão de Trump.

Há uma facção que se juntou por completo a Francisco, alguns por convicção teológica, alguns por oportunismo, alguns por simples lealdade ao ofício papal. (A analogia fica por conta dos populistas, oportunistas e institucionalistas que suavizaram o progresso de Trump para a indicação partidária republicana.)

Há um grupo que simplesmente está silente ou que se postou profundamente cauteloso – observemos que poucos bispos do mundo assumiram uma posição na polêmica sobre o divórcio e um segundo casamento – na esperança de que as coisas irão simplesmente voltar ao normal sem que eles precisem arriscar-se. (A analogia fica com a maior parte dos republicanos eleitos, e também com uns poucos democratas eleitos em estados com tendências a votar em republicanos.)

Há um grupo que é relativamente aberto à crítica da agenda do papa, mas também que não está disposto a cruzar a linha a ponto de desconsiderar as normas. (A analogia fica com a centro-direita e a centro-esquerda, de John McCain a Hillary Clinton.)

A diversidade absoluta deste último grupo é um dos motivos que faz ruir a teoria que opõe Bannon e Francisco. As fileiras dos céticos papais estão cheias de africanos e latino-americanos assim como de norte-americanos e europeus, com prelados, teólogos e leigos de perspectivas econômicas e políticas diversas. Em sua maioria são tradicionalistas como Burke; são simplesmente conservadores, confortáveis com o modelo João Paulo II de catolicismo, com a sua fusão do tradicional com o moderno, sua tentativa de manter o conservadorismo doutrinal ao mesmo tem em que acolhe as reformas do Concílio Vaticano II.

Mas porque este grupo maior é cauteloso, os seus membros foram ofuscados pelo mais direto, combativo e, sim, reacionário: o Cardeal Burke, cujas intervenções poderiam vir junto da hashtag “#TheResistance” [a resistência].

Na relação com Francisco, isso o põe na mesma posição que um Bernie Sanders ocupa em relação a Trump – ou aquela posição que Jeremy Corbyn ocupa relativamente ao Brexit. Ele é uma figura que vem das periferias, cujas ideias ganham influência porque o outro extremo de repente encontra-se no poder; um crítico reacionário de um papa radical da mesma forma como Sanders ou Corbyn são críticos radicais de um espírito de reação repentinamente empoderado.

Portanto a história do catolicismo neste exato momento tem menos a ver com reação e mais a ver com o que acontece em geral quando o centro de uma instituição não se sustenta.

A seu próprio modo, não muito diferente do que os neoliberais da política ocidental, João Paulo II tentou forjar um centro pós-Concílio Vaticano II estável para o catolicismo; agora, de maneira muito semelhante à ordem neoliberal na política ocidental, o seu projeto parece estar em colapso. A Igreja sob Francisco moveu-se à esquerda enquanto a política ocidental moveu-se à direita, mas a realidade em ambos os casos é a de uma polarização, de uma direita que quer ser mais reacionária e uma esquerda que quer ser mais radical, além de um establishment incerto sobre como e quando se mover.

E embora por enquanto a fusão Bannon-Burke seja um tanto tola, é possível imaginar uma convergência eventual do religioso com o político.

Hoje, o que predomina no catolicismo conservador não é reacionário e nem remotamente trumpiano.

Mas assim como a era Trump pode transformar os progressistas em radicais, o Francisco “valentão” está fazendo ressonar na jovem direita católica uma crítica tradicionalista de toda a Igreja pós-Vaticano II – direita católica que já é mais cética sobre a modernidade do que o foi a geração de João Paulo II. E com uma virada tradicionalista na teologia poderá vir o retorno de uma política iliberal ou pós-liberal católica – algo já visível online aqui e ali, no zelo pelo trumpismo de certos tradicionalistas católicos e na política de extrema-direita em geral.

Em outras palavras, da mesma forma como o trumpismo está forjando a esquerda política do amanhã, Francisco está forjando a direita católica do futuro – teologicamente e, talvez, politicamente também.

De novo: como uma descrição da religião e da política hoje, a aliança Bannon-Burke é uma teoria conspiratória. Mas como uma visão do que o populismo e a polarização poderão trazer ao catolicismo e à política ocidental, ela não é a mais implausível das profecias.

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