18 Dezembro 2025
"Francisco com um gesto que hoje se pode ver em Igrejas espalhadas pelo mundo inteiro no tempo entre o advento e seis de janeiro conseguiu falar a toda a Igreja da necessidade de estar atenta ao tempo que se vive, e ainda hoje continua a ser referência para a mesma Igreja que sob a liderança de outro Francisco tem buscado dialogar com o mundo e se colocar a serviço da vida, como fez Jesus", escreve Enio Marcos de Oliveira, padre da diocese de Leopoldina/MG, doutor em ciência da Religião pela UFJF, tendo realizado o doutorado sanduíche em Veneza, e autor do livro Mateus, parábolas de amor infinito.
Eis o artigo.
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
[...]
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
[...]
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
[...]
Depois ele adormece e eu deito-o.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Alberto Caeiro nos presenteou com estes belos versos em seu poema-livro O Guardador de Rebanhos, apresentou-nos a eterna criança, o Deus que faltava, aquele que brinca na nossa alma, que nos conta histórias, que muda o nosso olhar sobre cada coisa.
Em 2026 estaremos celebrando 800 anos da Páscoa de Francisco de Assis, um jovem que viveu em tudo o amor de Deus.
Três anos antes de sua páscoa, no pequeno Vilarejo de Greccio, província de Rieti, na região do Lácio Itália, São Francisco de Assis fez o primeiro presépio, assim como o poeta Alberto Caeiro ele nos ajudou a mudar o olhar, e é sobre este fazer o presépio de São Francisco que agora vamos falar.
No dia 13 de junho do ano de 313 o imperador Constantino no Ocidente e o imperador Licínio no Oriente proclamaram o chamado Edito de Milão que tornava o culto cristão livre dentro do Império Romano no Ocidente e Oriente, além de devolver aos cristãos os bens que haviam sido confiscados. Depois de quase três séculos de perseguição, mas também de expansão, o cristianismo teria liberdade de culto e manifestação.
No dia 27 de Fevereiro de 380 o imperador Teodósio proclamou o Edito de Tessalônica transformando a religião cristã em religião oficial do império, abolindo todas as práticas politeístas e fechando as Igrejas pagãs. Aquela que era uma religião marginal tornou-se, desta forma, a religião oficial do império e lá onde estivesse o império, estaria a religião cristã, agora Católica.
Aos poucos os cristãos foram se apoderando das práticas religiosas dos pagãos, em um processo de aculturação e transformando, quando possível, as festas pagãs em festas cristãs. Um bom exemplo disso é a festa do natal que era uma celebração pagã na qual se festejava o sol invicto. No solstício de inverno, 24 de dezembro os adoradores do sol se reuniam para dizer que por mais longa e fria que fosse a noite, o sol haveria de nascer, ele era o deus invicto. Em várias religiões havia essa incidência sobre a noite de 24 para 25 de dezembro.
O primeiro registro histórico da apropriação dos cristãos desta festa data do ano de 336 ainda no império de Constantino, mas no ano de 350, ainda antes do Edito de Tessalônica, o Papa Júlio I definiu para os cristãos, a data de 25 de dezembro como Natal de Jesus, o sol da Justiça e a luz do mundo para os seguidores desta religião. Com o edito de Tessalônica essa prática de adaptação dos cultos religiosos de outras religiões à dinâmica cristã foi se tornando uma constante para a Igreja.
Quando Teodósio proclamou a religião cristã como oficial e única do império, a Igreja foi se adaptando ao novo Status e atingindo todas as instâncias, mas, aos poucos foi se perdendo o ardor missionário, uma vez que ao nascer no império, o cidadão já nascia, de alguma forma, cristão.
Oito séculos depois de Teodósio e do Papa Julio I, nasceu na cidade de Assis, na região da Úmbria – Itália, Francisco de Assis, o período do nascimento de Francisco foi marcado pela decadência do sistema feudal e nascimento do capitalismo, marcado também por guerras entre cristãos e muçulmanos, as chamadas cruzadas, no período de vida de Francisco aconteceram três cruzadas contra os muçulmanos (a chamada terceira cruzada 1189, a quarta cruzada 1202 e a quinta cruzada 1217), além da cruzada contra os Albigenses ([1209] esta contra cristãos considerados hereges). Este período ainda foi marcado pelo poder do papado, Inocêncio III papa entre os anos de 1198 até o ano de 1216 se entendia como líder político e religioso do Ocidente.
Neste tempo de crise e de guerra a figura de Francisco de Assis contrastava, seus escritos e suas ações mostravam um homem capaz de se adaptar sem perder as suas convicções. Toda a vida dele foi marcada por encontros e a cada encontro, aconteciam mudanças pontuais para manter a essência.
Quando nasceu Francisco, nasceu também o capitalismo e assim como o cristianismo teve no princípio, o capitalismo tem uma porosidade e uma capacidade incrível de se adaptar, como se fosse a água que vai se infiltrando e tomando tudo para ela. Aos poucos as festas cristãs foram se tornando festa do capitalismo, o natal se tornou a festa do papai Noel, a Páscoa se tornou a festa do chocolate, e cada festa religiosa foi se adaptando para se tornar um festival do capital, um feriado prolongado para a alegria do turismo.
A Rússia, a China e outros países de regime comunista vão se curvando a passos largos ao capitalismo. Oriente, Ocidente, muçulmanos, hindus, judeus, budistas cristãos. O capitalismo vai tocando a todos com sua capacidade de adaptação. Um cristão pentecostal talvez não tenha coragem de comer uma prenda oferecida a um Orixá, mas com o dinheiro recebido através de uma negociação com um pai ou mãe de santo, o mesmo pentecostal não teria nenhum problema em comprar algo e levar para casa para o deleite de toda a sua família.
No último século alguns sociólogos se debruçaram sobre a religião, uma hora eles falaram do desencanto, depois falaram do reencantamento. No Brasil da década de 1950 com uma população com mais de 95% se dizendo católica, chegamos, menos de um século depois, com um índice muito menor, talvez 50% e ainda assim como uma participação ativa ainda mais frágil. De um imenso trânsito religioso nas décadas de 1990-2000, temos cada vez mais os censos nos apontando para os sem religião, os agnósticos, os ateus.
Aquela capacidade imensa de adaptação e porosidade do cristianismo parece ter se esvaído, muitas vezes o que se tenta é uma volta a um passado que já não respondia às demandas pretéritas, portanto, impossível pensar que respondam às demandas de hoje, (não se coloca remendo velho em roupas novas). Mas parece que os religiosos têm uma convicção tão convicta de suas convicções que não conseguem mais se adaptar e tendem a se fechar no moralismo, e em liturgias imensamente formais e tão litúrgicas quanto letárgicas.
O capitalismo com sua porosidade parece ter tomado conta também dos rumos da fé, há muito mais preocupação com as finanças que com a evangelização. Um mercado religioso que movimenta bilhões e bilhões anualmente, mesmo diante do esfriamento da piedade.
E onde entra o presépio de São Francisco nesta história?
Entre os meses de julho e setembro do ano de 1219, Francisco de Assis foi à cidade de Damieta, no Delta do Nilo, Egito, ali estava acontecendo a V Cruzada, em uma das batalhas, Francisco viu no campo de guerra mais de seis mil cristãos mortos.
Desde a carta Quia Maior que convocava o IV Concílio de Latrão e durante todo o referido Concílio, uma das grandes pautas era uma tentativa de exterminar o Islã e consequentemente os muçulmanos. Francisco, que esteve presente na cruzada, pôde passar alguns dias no acampamento dos muçulmanos na presença do líder deles, o sultão Malek-al-Kamil.
Ao voltar da cruzada, Francisco agiu com aquela porosidade que marcou o cristianismo inicial e marca o capitalismo. Escreveu uma carta aos governantes dos povos pedindo que os mesmos colocassem pregoeiros nas Igrejas durante algumas horas do dia para
que os mesmos convocassem o povo à oração (prática que ele pôde perceber junto aos muçulmanos), interessante notar que poucos anos depois desta carta, surgiu dentro da comunidade cristã e logo se espalhou por todo mundo católico a oração do Ângelus que é um convite ao povo cristão para a oração três vezes ao dia.
Depois de muitos séculos sem programa missionário, Francisco, na Regra não Bulada, estabeleceu um estatuto missionário, enviando seus irmãos para o meio dos muçulmanos para que pudessem conviver pacificamente e pregassem o amor de Jesus Cristo sem litígios e nem contendas, que deixassem a vida falar muito mais do que as palavras.
E em dezembro de 1223 Francisco estava pela estrada junto com frei Iluminado quando chegaram ao povoado de Greccio e ali Francisco quis celebrar o natal e construiu o primeiro presépio. Quais os elementos estão por trás deste presépio que podem lançar luzes para os nossos dias?
O primeiro elemento que podemos destacar é a capacidade de adaptação, o mundo estava saturado pelas guerras entre cristãos e muçulmanos, e os muçulmanos já tinham tomado quase toda a Terra Santa, o argumento principal que se usava na pregação em favor das cruzadas era que se fazia necessário exterminar os muçulmanos e tomarem a terra que Jesus havia comprado com o próprio sangue. Se o Ocidente estava saturado com as guerras, se a Terra Santa estava tomada pelos muçulmanos e se o argumento que alimentava a guerra era retomar a terra Santa, Francisco resolveu os problemas transformando Greccio na Terra Santa.
A mais sublime vontade, o principal desejo e supremo propósito dele era observar em tudo e por tudo o santo Evangelho, seguir perfeitamente a doutrina e imitar e seguir os passos de nosso Senhor Jesus Cristo com toda a vigilância. Com todo o empenho, com todo o desejo da mente e com todo o fervor do coração. Recordava-se em assídua meditação das palavras e com penetrante consideração rememorava as obras dele. Principalmente a humildade da encarnação e a caridade da paixão de tal modo ocupavam a sua memória que mal queria pensar outra coisa. Deve se por isso, recordar e cultivar em reverente memória o que ele fez no dia do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo no terceiro ano antes do dia da sua gloriosa morte, na aldeia que se chama Greccio (1 CelXXX-84, FFC, 2004: 254-255).
O Papa Francisco chamou um de seus documentos de A Alegria do Evangelho. Francisco ao montar o presépio em Greccio convidou e convida toda a comunidade para a imensa alegria de celebrar o nascimento daquele menino que se fez frágil em Belém. Na humildade da encarnação.
O segundo ponto que podemos abstrair da ação de Francisco é a capacidade de ressignificar as coisas, dar a elas um sentido novo sem perder a essência do original, ao transformar Greccio em Belém e afirmar que toda a terra é santa, ele tomou uma das leituras do IV Concílio de Latrão que era a valorização da encarnação do Verbo, mas, ao mesmo tempo, mostrou que as guerras são sem sentido se o que as alimenta é a busca de territórios, pois, toda a terra é santa e em todo lugar Nasce Deus no coração dos homens e mulheres.
O Papa Francisco buscou sobre a inspiração de São Francisco nortear os caminhos da Evangelização, em um de seus documentos Fratelli Tutti, de clara inspiração no pobre de Assis, ele apontou para o diálogo como caminho de paz para o mundo, somos todos irmãos.
Ao montar o seu presépio Francisco evocou as figuras do burro e do boi, que em si, evocam a acolhida do Messias (Is 1,3) por todos os povos; o boi sendo símbolo do judaísmo e o burro símbolo dos gentios.
E aproximou-se o dia da alegria, chegou o tempo (cf. Tb 13,10; Ct 2,12) da exultação. Os irmãos foram chamados de muitos lugares; homens e mulheres daquela terra, com ânimos exultantes, preparam, segundo suas possibilidades, velas e tochas para iluminar a noite que com o astro cintilante iluminou todos os dias e os anos (e os lugares e os homens). Veio finalmente o santo de Deus e, encontrando tudo preparado, viu e alegrou-se (cf. Jo 8,56). E, de fato, prepara-se o presépio, traz-se o feno, são conduzidos o boi e o burro. Ali se honra a simplicidade, se exalta a pobreza, se elogia a humildade; e de Greccio se fez como que uma nova Belém. Ilumina-se a noite como dia (cf. Sl 138,12) e torna-se deliciosa para os homens e animais. As pessoas chegam ao novo mistério e alegram-se com as novas alegrias. O bosque faz ressoar as vozes, e as rochas respondem aos que se rejubilam. Os irmãos cantam, rendendo os devidos louvores ao Senhor, e toda a noite dança de júbilo (1 CelXXX-85, FFC, 2004: 255-256)
Quando o Papa João XIII convocou o Concílio Vaticano II ele falou da necessidade de um aggiornamento (renovação para os dias de hoje) da Igreja, uma Igreja no mundo e a serviço da vida, as alegrias e dores dos homens e mulheres devem ser também as alegrias e dores da Igreja (GS). Contudo, nos últimos anos tem se assistido a uma tentativa de volta ao passado, uma busca de remédios velhos para problemas novos, uma Igreja muito mais guardiã da moral do que uma Igreja dialogal que anuncia a alegria do Evangelho, parece até que o papa está na contramão, que Francisco estava na contramão, que Jesus “morreu na contramão atrapalhando o sábado”.
E o elemento principal do presépio foi a retomada da leitura fundamental do Evangelho, da essência da fé cristã. A Kênosis de Jesus que sendo Deus se esvaziou e assumiu a condição humana e se fez menino no ventre de Maria e nasceu em um lugar à parte dos homens.
Francisco com um gesto que hoje se pode ver em Igrejas espalhadas pelo mundo inteiro no tempo entre o advento e seis de janeiro conseguiu falar a toda a Igreja da necessidade de estar atenta ao tempo que se vive, e ainda hoje continua a ser referência para a mesma Igreja que sob a liderança de outro Francisco tem buscado dialogar com o mundo e se colocar a serviço da vida, como fez Jesus.
Que Greccio seja cada canto, que Deus se manifeste em cada ser humano e a alegria do Evangelho possa contagiar a todos, infiltrando com porosidade o coração da humanidade como testemunhas do Deus que se fez Menino e que ele possa brincar em nossas almas nos dando leveza e paz, nos tornando irmãos de todas as criaturas.
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