De quintal a jardim de horrores: América Latina no centro da Doutrina Donroe. Destaques da Semana no IHUCast

Arte: Mateus Dias | IHU

Por: Cristina Guerini e Lucas Schardong | 13 Dezembro 2025

Neste episódio, analisamos as peças do xadrez global e falamos da cooptação da política pelo crime organizado. Tratamos ainda da explosão da violência de gênero e de como a indústria cultural está na mira da extrema-direita. Por fim, celebramos o tempo do Advento.

De quintal à jardim

A nova estratégia de segurança dos Estados Unidos reorganiza as peças do xadrez da geopolítica internacional. Trump abandona o foco na Europa e Oriente Médio e declara a América Latina como seu "jardim da frente", não mais o "quintal". O movimento resgata, dois séculos depois, a Doutrina Monroe em sua versão "trumpiana", reforçando o lema America First e marcando uma nova era de intervencionismo. Isso se manifesta na campanha militar contra a Venezuela e na intensa pressão/interferência eleitoral em países da região, visando controlar a polarizada região.

Retorno ao imperialismo

Apelidada de "Doutrina Donroe" – um neologismo que combina Donald e Monroe – a nova estratégia estadunidense foi apresentada em um documento que tem apenas 33 páginas e redefine de maneira explícita a política externa, de segurança, econômica e energética dos Estados Unidos, com implicações diretas para a América Latina e, de maneira particularmente delicada, para a América Central. Segundo a estratégia, a América Latina é vista como uma região de onde se originam alguns dos problemas mais graves dos Estados Unidos, e está sendo pressionada a colaborar para que Washington possa atingir seus objetivos: reduzir drasticamente a migração, “neutralizar” os cartéis de drogas e o crime transnacional e eliminar os investimentos chineses que florescem na região. Isso será feito por persuasão — através de incentivos à cooperação econômica — ou por coerção: o documento deixa claro que o grande contingente naval no Caribe, ao largo da costa da Venezuela, permanecerá lá por um bom tempo.

Pirataria americana

As investidas da nova estratégia dos Estados Unidos na Venezuela deram mais alguns passos. O governo Trump sequestrou um navio petroleiro essa semana na costa venezuelana. Questionada sobre a ação, a secretária de imprensa da Casa Branca, afirmou: "o governo Trump está se concentrando em fazer muitas coisas no Hemisfério Ocidental [que é como os EUA chamam a América]. O presidente adotou uma nova abordagem que nenhum governo adotou em muito tempo, focando-se realmente no que está acontecendo em nosso próprio quintal".

América Latina em alerta

A chefe da diplomacia da União Europeia, Kaja Kallas, expressou sua concordância com muitas das críticas dirigidas à União Europeia nas páginas do documento. Enquanto o porta-voz do Kremlin afirmou que o documento é “coerente a visão russa” e serve para “restaurar a estabilidade estratégica com Moscou”. Em relação às Américas, destaca-se o interesse declarado em impedir a interferência de seus rivais em uma região que há muito considera sua, seja a China ou a Rússia. Com essa intenção, e sem negligenciar os planos de fechar suas fronteiras aos vizinhos e garantir o acesso a minerais críticos e o controle das rotas marítimas, a estratégia coloca o restante do continente como sua principal prioridade para os próximos anos. Um alerta que deveria ser compartilhado por todos os países da região.

Retorno à Guerra Fria

Em plena escalada dos Estados Unidos no Caribe, o presidente russo Vladimir Putin garantiu seu apoio “pleno e permanente” para “consolidar a paz, a estabilidade política e o desenvolvimento econômico” de Caracas, ao conversar por telefone com Nicolás Maduro nessa quinta-feira.

#CongressoInimigoDoPovo

E nesse xadrez da geopolítica internacional, nada acontece por acaso no Brasil. A estratégia de Trump para América Latina tem impactos no país e fortalece o círculo da direita e da extrema-direita para as eleições em 2026. De olho nesse jogo político, o Congresso avança com as pautas que atendem a interesses pessoais e espúrios em detrimento do povo brasileiro. Não por acaso, essa semana, votou o Projeto de Lei da Dosimetria, uma anistia velada que vai abrandar – e muito – as penas dos condenados do oito de janeiro e do plano punhal verde e amarelo. Mas não só. Para salvar Bolsonaro e generais, o PL vai beneficiar também chefes de facção, membros do crime organizados, feminicidas e autores de crimes hediondos.

A serviço do crime

No mesmo dia em que congressistas e jornalistas foram agredidos e a imprensa foi censurada, Hugo Motta e seus colegas aprovaram o texto que vai beneficiar, entre outros, Fernandinho Beira-Mar, Marcola e André do Rap. Isso porque a dosimetria reduz o tempo que esse tipo de criminoso deve permanecer na cadeia, em regime fechado, antes de passar para o semiaberto. O projeto muda em relação ao que o próprio Senado aprovara no projeto antifacção, terça-feira à noite, horas antes da Câmara votar a dosimetria.

Flerte fascista

O cientista político Paulo Niccoli Ramirez alertou que o projeto funcionou como um sinal verde para novas rupturas. Tratando-se de um convite aos cidadãos brasileiros que queiram fazer um golpe de Estado. Segundo o professor, o país vive “um período de uma relativização do fascismo, do autoritarismo” e a aprovação do PL reforça esse movimento. Para ele, “uma redução da pena do Bolsonaro significa dizer que a porta do inferno está aberta”. Segundo Ramirez,o ambiente no Congresso está dominado por “pessoas que flertam com o fascismo”, com uma direita que busca “derrubar o governo Lula de todas as formas” ao obstruir propostas importantes para o país.

Sem Anistia retorna às ruas

Diante do “acordão” do Congresso e da ofensiva institucional da extrema-direita, o campo progressista já se articulou e convocou uma manifestação em várias cidades do país para o domingo, 14 de dezembro, às 14 horas.

Coração das trevas

Por falar em política e crime organizado, vamos agora tratar de um assunto que tem ligação direta com o PL da Dosimetria, que pretende anistiar antecipadamente os criminosos políticos. Rio de Janeiro: "um estado que foi abalado por um governo que era, na verdade, uma organização criminosa". As palavras de Fernando Gabeira resumem bem a situação. Para o jornalista, o "Rio está no coração das trevas".

Alerj: braço forte do Comando Vermelho

As investigações recentes da Polícia Federal apontam para uma profunda infiltração do crime organizado – notadamente o Comando Vermelho – na esfera política do Rio de Janeiro. A prisão do presidente da Assembleia Legislativa, Rodrigo Bacellar, por ter vazado informações sigilosas sobre as operações, beneficiando principalmente o ex-deputado estadual conhecido como TH Joias", acusado de ser um representante da facção criminosa no legislativo. O clímax desse episódio de captura do Estado pelo crime, no entanto, aconteceu essa semana, com a Alerj votando maciçamente pela soltura de Bacellar por 42 votos a 21. Essa decisão enviou um sinal devastador de corporativismo e impunidade. A maioria dos deputados priorizou proteger o poder interno da Casa, ignorando a gravidade das acusações de favorecimento direto ao Comando Vermelho. 

Retorno a Gramsci

No século passado, por meio da teoria da hegemonia cultural, Gramsci já falava que a classe dominante impõe sua visão de mundo como senso comum, naturalizando a ordem social e sua dominação, e obtendo assim consentimento das classes subordinadas. Hoje, a história se repete nas classes dominantes, mas também com os algoritmos, as big techs, e os políticos da direita e da extrema-direita. Agora, no centro dessa disputa, a economia da atenção por meio, por meio do monopólio da indústria cultural. A competição pela compra da Warner Bros. Discovery é o exemplo desse projeto, ainda mais após a oferta hostil da Paramount após o anúncio da venda da gigante do entretenimento para a Netflix.

Interesses obscuros

Se o acordo for concretizado, não mudará apenas quem controla o cinema, a televisão e a TV a cabo; poderá alterar o panorama global da mídia. E por trás do glamour dos estúdios e das franquias, poderão existir, mais uma vez, interesses geopolíticos e estratégicos disfarçados de investimentos comerciais. A Paramount — empresa controladora da CBS — pertence à Skydance, que por sua vez pertence a David Ellison, filho de Larry Ellison, aliado de Trump e dono da Oracle

Emoção em detrimento da expertise

Além disso, a nossa cultura está cada vez mais capturada pelas empresas de tecnologia. Somos programados para buscar figuras de autoridade, nosso cérebro se vê preso em uma economia da atenção que privilegia a emoção em detrimento da expertise, destacou a neurocientista Samah Karaki. Conforme ela explica, isso se dá por meio de influenciadores que se beneficiam de um dos nossos vieses cognitivos: o do teste social. A autoridade não deriva da sua expertise, mas do número de seus seguidores. Os circuitos de recompensa do nosso cérebro são tranquilizados por um conteúdo amplamente compartilhado – este é o princípio da conformidade social, onde a legitimidade vem da popularidade e não da expertise.

Capitalismo da solidão

Dentro dessa mesma perspectiva da atenção, Paul Klotz dá ênfase à forma como este modelo econômico monopoliza o capitalismo da solidão. Segundo o advogado e economista, as grandes plataformas vendem naturalmente a Atenção. Para manter essa atenção pelo maior tempo possível, eles organizam a solidão. Quanto mais isoladas as pessoas estiverem, mais disponíveis se tornarão para serviços que afirmam preencher esse vazios.

Misoginia estrutural

O Brasil vive uma epidemia de violência contra a mulher. O feminicídio, o assassinato de mulheres por sua condição de gênero, é a ponta mais trágica do iceberg da misoginia estrutural. Não passamos um só dia sem testemunhar os registros das agressões, os espancamentos, as mortes. 

Espera ativa

Estamos na segunda semana do advento - um período que não é apenas uma contagem regressiva para o Natal, mas uma pausa necessária, um convite para visitar o mistério, o silêncio. É o tempo da espera, mas uma espera ativa, cheia de poesia e de um sentido que, por vezes, esquecemos. O sociólogo Luca Diotallevi, em sua reflexão sobre o Evangelho, nos oferece um olhar sobre este tempo. Ele nos lembra que a esperança cristã não é uma ilusão ingênua, mas sim uma "proposta poética" para a vida.

Que este Advento não seja apenas uma época de compras e de preparativos da ceia, mas um tempo de reflexão, de cuidado e amor ao próximo. Que possamos abraçar essa proposta poética da esperança. Que possamos encontrar a força e a doçura para cuidar. Lembremos: o que virá está contido na nossa capacidade de viver o amor e o cuidado hoje. Essa é a mensagem do Advento, através dos olhos do Evangelho: uma poética do cuidado que transforma a espera em ação.

O IHUCast é uma produção do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e está disponível nas plataformas de áudio e no canal do IHU no YouTube.

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