Através dos olhos do Evangelho. Artigo de Luca Diotallevi

Foto: Anna Ganska/Pexels

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11 Dezembro 2025

"O mundo atual é um pouco como uma Galileia em maior escala. No mundo atual, a transcendência não começa longe, mas perto."

O artigo é de Luca Diotallevi, doutor em sociologia pela Universidade de Parma, publicado por Vita Pastorale, 10-12-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo. 

Um mundo está terminando, e não é verdade que quando um mundo acaba, outro já está pronto. Estamos todos nas mesmas condições, todos e todas jogados na linha de frente. Tempestades e terremotos têm um quê de igualitário. O mundo feito de Estados e para os Estados acabou, sem apelação; o mundo com que o estávamos substituindo, aquele das sociedades abertas, está sob forte ataque. Um primeiro salto mortal não é seguido por um pouso perfeito, mas por outro salto mortal inesperado.

Com aquele mundo, uma Igreja também acaba: um regime eclesiástico e uma forma de crer; não a Igreja, mas uma Igreja. O Vaticano II havia reunido as forças e corroborado o impulso para ir além da velha Igreja, mas agora — na verdade, há alguns anos — é o Concílio que está sob ataque: primeiro com cortesia e hipocrisia, ultimamente com violência descarada ou indiferença ostensiva. É lisonjeado para traí-lo, é citado para negá-lo. O milagre da atualização de Roncalli e Montini corre o risco de se reduzir a um mero parêntese. Contudo, no caso da Ecclesia, assim como no da Civitas, não estamos retrocedendo. Pelo contrário, estamos indo para outro lugar, longe do antigo e mais longe ainda do novo para o qual havíamos nos encaminhado.

Estamos correndo o risco de descarrilar para um catolicismo de baixa intensidade, embalado em dezenas de produtos feitos sob medida para os gostos de seus nichos de mercado. Assim como os gestores de cinemas, em resposta às novas mídias, transformaram as grandes plateias em multiplex, a Igreja se ilude poder sobreviver se transformando num multiplex dedicado ao entretenimento religioso e no qual se pode encontra de tudo. Isso não é pluralismo, é multissectarismo. Nesse multiplex, os "agentes pastorais", tendo jogado fora o demasiado árduo apostolado dos leigos a ser conduzido no mundo, vangloriam-se de terem sido recrutados pelo clero para conferir os ingressos e vender guloseimas e pipoca. Contudo, pode ser que a tempestade se revele um crivo: tanto a Civitas quanto a Ecclesia podem emergir purificadas, enxugadas. Com os olhos do Evangelho e os pés nos sapatos da Igreja, a tempestade que está acontecendo pode revelar-se como uma oportunidade: um kairós. Não sabemos quem vencerá, mas sabemos que o jogo em curso é decisivo.

Como São Paulo e os outros — passageiros, marinheiros, soldados, prisioneiros — estamos todos no mesmo barco, em meio à mesma tempestade (cf. At 27). O dever de cada um é investir tudo o que tem, tudo o que sabe e tudo em que crê na empreitada de atravessar a tempestade e completar a viagem. Não cabe aos crentes contentarem-se com o mero "ir levando". Se reconhecemos o kairós deste tempo, libertamo-nos imediatamente de todo tradicionalismo (não há como voltar atrás), de todo otimismo (não há nenhuma garantia de que "tudo ficará bem") e até mesmo de todo pessimismo (pelo mesmo motivo, já que o resultado dessa peleja tipicamente secular permanece em aberto). Oséias escreveu (10,12): "lavrai o campo de lavoura; porque é tempo de buscar ao Senhor". Aproveitar este tempo como uma oportunidade, como um kairós, força-nos a nos confrontar a questão da esperança.

Devemos reconhecer com honestidade que existe muita coisa que não podemos prometer e não podemos aceitar que nos seja prometida. Grande parte desse engano está sendo propagado profusamente hoje, até mesmo dentro da Igreja e em seu nome. Com igual honestidade, devemos dizer que no coração do Evangelho, e ao longo de inúmeros fios sutis e robustos que animam o presente e a história da Igreja, vive uma esperança crível. Da salvação e da plenitude de vida essa esperança honesta promete um início certeiro no mundo atual e uma realização não antes do último dia. Uma esperança feita de amizade e responsabilidade. Uma esperança que acompanha na luta, que detesta os clãs e as lojas. Uma esperança que não esconde o conflito, a dor ou a morte, mas aceita vivenciá-los.

Uma esperança que abraça a diferença da santidade e abomina o engano mundano do sagrado. Essa esperança inverte a pirâmide eclesial. Reconhece seu ápice no apostolado dos leigos e remete a formas realmente ministeriais (de serviço) a autoridade dos bispos e do seu clero. Esses são ordenadas ao laicato, e não o contrário. Essa esperança sincera reconhece que é no crisol do mundo que o Evangelho se revela, sendo testemunhado e proclamado. Sabotar o apostolado dos leigos não significa apenas tornar o Evangelho menos e pior conhecido, mas também o expor às piores distorções. Sabotar o apostolado dos leigos é sabotar a vida da Igreja e sua missão.

Enquanto o mundo é povoado apenas pelos vivos que morrerão, o mundo é habitado por eles — certamente — mas também por aqueles que já não estão entre os mortos, mas, tendo atravessado a morte, estão vivos, e mais vivos do que os primeiros: não só os primeiros, mas também as primícias dos ressuscitados dentre os mortos (cf. 1 Cor 15,20). E, veja só que curioso, ele não se estabeleceu no Templo, nem fundou um novo, mas já retornou à Galileia (cf. Marcos 16,7), um lugar que mais misturado e contaminado não poderia ser.

O mundo atual é um pouco como uma Galileia em maior escala. No mundo atual, a transcendência não começa longe, mas perto. O lugar das estrelas é tomado pelos olhos e bocas do outro e da outra. Aquelas feridas no rosto são a brecha pela qual o infinito irrompe no finito, são a porta pela qual o finito entra no infinito. Antes de Jesus, o problema era a miopia; depois de Jesus, a hipermetropia. O que precisa ser posto em foco está perto, muito perto: está próximo.

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