"Neste cenário mundial e nacional somos provocados a um duplo desafio: buscar uma fonte de luz capaz de romper tais trevas, e combater o neofascismo e sua onda de violência mortífera. Temos que conciliar o que é urgente – a luta pela democracia e pela paz – com o que é indispensável: encontrar uma fonte de luz capaz de superar as trevas do modo de produção capitalista!"
O artigo é de Pedro A. Ribeiro de Oliveira, doutor em Sociologia, Professor aposentado dos PPGCR da UFJF e PUC-Minas.
Pedro A. Ribeiro de Oliveira. (Foto: Tiago Miotto/Cimi)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
A análise de conjuntura tem como pressuposta a análise da estrutura. Isto é, sendo conhecida a estrutura do sistema a ser analisado, busca-se captar – reunindo fatos relevantes da atualidade – as tendências de mudança estrutural naquele sistema. Dado o fato que as estruturas tendem a se manter inalteradas por muito tempo, sua análise pode ser dada como conhecida ao se fazer a análise de conjuntura. O problema é que as estruturas também mudam! Quase não se percebe, é verdade, mas mudam, e isso implica uma análise de conjuntura especial. É o que parece estar ocorrendo agora. É isso que sugiro aqui, para incentivar mais estudos e reflexão.
Falo de Era de trevas para designar a confluência de três diferentes eventos globais: catástrofes climático-ambientais de âmbito cada vez maior; falência do sistema geopolítico sob hegemonia dos EUA; e concentração do capital que rompe a solidariedade humana e gera o neofascismo. Embora independentes entre si, esses eventos se sobrepõem e ganham a forma de crises que ameaçam a sobrevivência da espécie humana e a própria comunidade de vida da Terra. Não descrevo aqui essas crises, porque já o fiz em artigo recente; aqui apresento essas diferentes crises como sinais de mudança estrutural: minha hipótese é que é o próprio modo de produção capitalista que está em mudança. E essa mudança na infraestrutura do sistema incide em sua superestrutura social, política e cultural, transformando-a e, dialeticamente, adequando-se a ela.
Essa mudança tem início com a crise financeira de 2007-08, que leva o grande capital (hoje em forma de Fundos de Investimento) a buscar ganhos de curto prazo recorrendo à [1] apropriação privada de bens-comuns – como minérios, terra agriculturável, água, petróleo, conhecimentos, empresas públicas e locais aprazíveis – e à [2] cobrança de pedágio pelo uso da informática para o funcionamento do mercado. Subordinado ao grande capital, sobrevive o rentismo do capital financeiro que recebe juros sem participar da produção.
Aí reside a novidade do capitalismo: alto desempenho tecnológico combinado com o ágio financeiro: empresas de informática (as chamadas big techs) facilitam as transações entre produtor e consumidor por meio de aplicativos como Uber; Mercado Livre e Airbnb e cobram um pedágio por esse uso (é o que Y. Varoufakis chama de tecnofeudalismo). Essas empresas encontram apoio político no Estado militarista, nacionalista e protetor do comércio que rejeita organismos multilaterais de controle: é o modelo ultraliberal, que já superou o neoliberalismo!
O resultado dessa nova forma de acumulação do capital – que em vez de conter sua ambição para evitar a catástrofe ambiental, acumula lucros hoje para ter reservas amanhã – é a enorme concentração da riqueza (e também da renda) nas mãos de um reduzido número de pessoas muito-ricas (bilionárias) e ricas (milionárias). Embora elas constituam menos de 1% da população mundial, têm nas mãos o poder de definir o rumo da economia e da política no mundo atual. (Note-se que a proporção no Brasil é aproximadamente a mesma). Seu controle sobre a I.A., as redes digitais e os principais veículos de informação dá aos ricos e super-ricos também o poder de dirigir corações e mentes da população, isto é, formar o ambiente cultural que norteia os comportamentos humanos. Essa “elite do poder” não fica restrita às fronteiras nacionais, porque na medida em que essa gente se relaciona e se entende independentemente das fronteiras nacionais, ela forma uma oligarquia de poder mundial.
Essa oligarquia é servida por um setor intermediário que estimo em 10% da população mundial (750 milhões de pessoas), que movimentam a economia por meio da apropriação privada de bens comuns ou pela indústria de transformação, o comércio, ou o enorme setor de serviços políticos, jurídicos e culturais: aí estão empresários, políticos, magistrados, militares, artistas e influenciadores que definem o pensamento e o estilo de vida a ser seguido (imitado) pelo resto da população. Embora numericamente minoritário, essa classe média representa no imaginário coletivo o padrão social dominante – dito “normal”.
Nesse quadro atual, a esmagadora maioria da população (7 bilhões de pessoas) vive – ou sobrevive – inserindo-se como pode no processo produtivo por meio do trabalho (regular ou precarizados), da agricultura familiar, do subemprego, ou da economia informal para escapar de ser “massa sobrante” no mundo. Formam a base de sustentação material do sistema, mas “não contam” como sujeitos políticos. Eterna perdedora, essa gente sonha um dia ganhar bastante dinheiro recorrendo à migração, à religião, a jogos de aposta ou mesmo a meios ilegais.
Nas margens desse sistema estão os setores não submetidos à lógica do mercado, porque a economia em seus territórios é regida pelo sistema da dádiva (dar – receber - retribuir): ali se encontram os núcleos resilientes de povos originários e pequenas comunidades não-integradas no sistema capitalista. São quem “não conta”. De fato, para o funcionamento do sistema em vigor eles não contam; mas para quem busca um novo modo de produção e consumo justo e pacífico, incluindo toda a Terra, é com essa gente e sua sabedoria que se deve contar.
Em resumo: o quadro aqui esboçado expressa bem o que teria dito o bilionário Warren Buffet: “a luta de classes acabou. E minha classe venceu”. É uma afirmação exagerada, obviamente, mas que aponta para a realidade da atual conjuntura: a constituição de oligarquias nacionais que convergem para uma oligarquia mundial tende a destruir a democracia oriunda da Revolução Francesa e consolidada no século XX. Daí a nova forma de fascismo em nossos dias. A ele se opõem várias forças sociais e culturais, mas a correlação de forças é pouco favorável à Democracia, cujos apoios na sociedade civil – partidos, sindicatos, universidades, religiões, ONGs e outros centros de pensamento – estão hoje divididos entre a Oligarquia e a Democracia.
Cabe, então, uma menção ao neofascismo. A experiência hoje vivida nesse tempo de trevas esvaziou a promessa iluminista de que o progresso e a racionalidade seriam sempre crescentes ao longo da História. A sensação de ter sido enganada leva a pessoa a rejeitar o “isso que está aí” e desobrigar-se de toda solidariedade humana, percebida como contrária a sua liberdade individual, para viver a seu modo num mundo de luta de todos contra todos.
Nesse contexto faz sucesso quem promete restaurar os “bons tempos” de ordem e progresso, quando imperava a ordem natural na sociedade: a ordem baseada na família patriarcal com suas hierarquias. Esta é a narrativa da atual forma de fascismo, que trata o divergente como inimigo a ser eliminado. Se no fascismo clássico o inimigo era o judeu, o comunista, o cigano e o opositor político, no neofascismo o inimigo é o pobre – especialmente se for migrante – e quem se opõe à ordem estabelecida: comunistas, feministas, gente LGBTQI+ e os supostos inimigos de Deus, da Pátria e da Família. O governo Trump (Steve Bannon?) polariza hoje o neofascismo, mas não há uma central neofascista mundial: cada grupo é autônomo no combate a seus inimigos.
O resultado é a vitória mundial da violência, da qual o massacre de Gaza é o símbolo maior. Entre outros exemplos recentes, está a repressão feita pela polícia do Rio de Janeiro, a mando do governador em 28 de outubro, a persistência do feminicídio, assassinatos de lideranças de periferias urbanas e áreas rurais, e outras formas de violência como a pedofilia e o abandono das populações empobrecidas à própria sorte. Enfim, mata-se sem pudor quem “não conta”. Aqui reside o núcleo das trevas do nosso tempo, marcado pelo ódio e a violência que parecem caracterizar um período de mudança de época, como foi a caça às bruxas na transição da Idade Média para a Era Moderna. Essa Era Moderna – marcada pela violência das conquistas coloniais, da escravidão, dos campos de concentração, dos gulags stalinistas e das bombas dos EUA em Hiroshima e Nagasaki – estaria se encerrando com uma guerra mundial “em capítulos”.
Neste cenário mundial e nacional somos provocados a um duplo desafio: buscar uma fonte de luz capaz de romper tais trevas, e combater o neofascismo e sua onda de violência mortífera. Temos que conciliar o que é urgente – a luta pela democracia e pela paz – com o que é indispensável: encontrar uma fonte de luz capaz de superar as trevas do modo de produção capitalista!
Diante do desmoronamento do paradigma da modernidade sobre o qual foi construído o projeto socialista, temos que aprender com quem “não conta”: povos originários, comunidades não-integradas no sistema capitalista e outros grupos onde vigora a ética comunitária / comunista: “de cada pessoa conforme sua capacidade, a cada pessoa conforme sua necessidade”. Esta é a “porta estreita” do Evangelho que leva ao tempo/espaço onde “Justiça e Paz se abraçarão”.
[1] Vozes de Emaús: criar esperança nesta era de trevas. Artigo de Pedro A. Ribeiro de Oliveira. Clique aqui.
[2] Talvez aqui se incluam também os chefes de organizações criminosas.