" 'Crês nisso?' foi a pergunta de Jesus a Marta. Marta, você acredita que eu, Jesus, sou a ressurreição e a vida, e que quem crê em mim nunca morrerá? “Crês nisso?” é a pergunta que todos nós, cristãos de diferentes tradições, precisamos nos fazer. Qual é o verdadeiro significado de professar a fé em Jesus Cristo?"
O artigo é de Pa. Romi Márcia Bencke, Pastora da IECLB, mestre em Ciência da Religião pela UFJF e doutoranda em Ciência Política pelo IPOL/UnB.
Pa. Romi Márcia Bencke (Foto: Arquivo pessoal)
Imagino leitores e leitoras reunidos em uma roda para dialogar sobre o texto bíblico de João 11, 21-26:
Quando Marta avistou Jesus se aproximando, correu ao seu encontro, enquanto Maria permaneceu em casa. Ao ver Jesus, Marta exclamou: “Senhor, se tu tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido. Mas, mesmo agora, sei que tudo o que pedires a Deus, Ele te dará”. (Jo 11, 21-22). Jesus, então, a olhou e respondeu: “Teu irmão ressuscitará”. (Jo 11,23). Marta, por sua vez, replicou: “Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição do último dia” (Jo 11, 24). Diante da afirmação de Marta, Jesus declarou: “Eu sou a Ressurreição e a Vida; quem crê em mim, ainda que morra, viverá, e todo aquele que vive e crê em mim não morrerá jamais. Crês nisso?” (Jo 11, 26).
Neste trecho, foco na sutil, mas poderosa pergunta de Jesus a Marta, que expressa seu incômodo pela ausência do mestre durante o sofrimento de Lázaro. Envolta em luto, Marta associou a morte de seu irmão à falta de Jesus: “...Se tu estivesses aqui, meu irmão não teria morrido.” Ao afirmar que Lázaro ressuscitaria, Jesus provocou uma resposta dogmática de Marta: “Eu sei que ele ressuscitará no último dia.” Contudo, Jesus indagou se ela realmente acreditava que Ele era a ressurreição e a vida.
A pergunta “Crês nisso?” desmantela respostas protocolares. Repetir que Lázaro ressuscitaria no último dia é uma resposta que carece de consolação. Não se trata de julgar Marta; sua resposta pode ser vista como uma reação impaciente: “Sim, eu sei que meu irmão ressuscitará no último dia, mas... sua ausência é dolorosa agora.” Essa dor não permite esperar por uma ressurreição incerta.
Enquanto reflito sobre essa passagem, observamos a despedida do Papa Francisco, acompanhada de uma avalanche de cobertura midiática e análises sobre o próximo Papa. Neste momento de luto genuíno, vemos também a exploração da morte do Papa para fins financeiros, como no caso do site de apostas em criptomoedas Polymarket, que abriu mercados para apostas sobre quem ocupará sua vaga. O mais estarrecedor é que essas apostas já estavam em andamento durante a hospitalização do Papa.
O corpo do Papa Francisco repousa em um ataúde simples, acessível para que as pessoas se despeçam de seu pastor. Essa imagem, em contraste com a lógica mercadológica, nos confronta com a pergunta de Jesus a Marta: “Crês nisso?” Estamos realmente engajados em um projeto de igreja que é profético e inconformado diante do vale de ossos secos (Ez 36,1-11) que o capitalismo globalizado nos apresenta? Ou estamos presos a propostas e dogmas que frequentemente esvaziam o verdadeiro sentido da fé?
O Papa Francisco, assim como os reformadores que o precederam, tinha uma visão clara para a igreja. Historicamente as reformas surgiram como resposta às contradições dentro das instituições eclesiásticas, que proclamavam misericórdia e compaixão, enquanto alguns de seus líderes se envolviam em disputas por poder. Essa contradição se torna ainda mais evidente com morte do Papa. Por um lado, há a dor genuína das pessoas que sentem sua partida; por outro, vemos alianças e jogos de poder que se afastam do projeto idealizado pelo Bispo de Roma.
A morte do Papa e as incongruências que surgem em seu funeral, marcado pela simplicidade do ataúde, nos lembram da igreja periférica, composta por pessoas vulneráveis, em contraste com o luxo e a ostentação que permeiam muitas de nossas instituições.
Hoje, é impossível não lançar um olhar crítico sobre o que parte do cristianismo se transformou: um movimento triunfalista, afastado da verdadeira essência da cruz, burocratizado, onde muitas de suas lideranças se rendem à cultura das redes sociais e adotam a lógica dos 'influencers', priorizando a autopromoção e reduzindo Jesus a um mero acessório.
“Crês nisso?” foi a pergunta de Jesus a Marta. Marta, você acredita que eu, Jesus, sou a ressurreição e a vida, e que quem crê em mim nunca morrerá? “Crês nisso?” é a pergunta que todos nós, cristãos de diferentes tradições, precisamos nos fazer. Qual é o verdadeiro significado de professar a fé em Jesus Cristo?
Ao observar as práticas e discursos recorrentes, arrisco dizer que, muitas vezes, Jesus é um mero coadjuvante nas igrejas. As práticas seletivas que silenciam e excluem mulheres que buscam autonomia, ou que rejeitam pessoas LGBTQIAPN+ que desejam ser seguidoras de Jesus sem renunciar à sua identidade, são exemplos dessa realidade. Muitas igrejas desenvolvem projetos assistenciais, desde que os beneficiados não reivindiquem seu lugar na comunidade. Os ataques ao padre Júlio Lancellotti evidenciam essa situação. Falar de uma igreja voltada para os pobres tornou-se um discurso desprovido de autenticidade.
Não podemos prever o futuro do cristianismo diante de um mundo e de uma humanidade com tantas crises; ambiental, econômica, social, política e humanitária. Que a pergunta de Jesus a Marta, “Crês nisso?”, nos inspire a enfrentar nossas contradições com coragem e humildade.