07 Mai 2025
"Mais do que em outros tempos, a morte do Papa Francisco gerou não apenas uma comoção eclesial, mas também uma mobilização notável de pessoas e grupos fora da Igreja Católica, muito para além das formalidades diplomáticas já esperadas. Em parte, isso se deve ao carisma e ao testemunho pessoais de Jorge Bergoglio, expressos em seu modo singelo de aproximar-se das 'periferias geográficas e existenciais' das pessoas e do mundo", escreve Frei João F. Júnior, Mestre em Teologia Bíblica, Assessor Técnico do Núcleo Lux Mundi da CRB, Membro da Comissão de Cuidado e Proteção da CLAR, em artigo publicado por Fique Firme, 05-05-2025.
“– Pedro, és mesmo meu amigo?
– Senhor, tu sabes tudo, tu conheces o quanto sou teu amigo!”
(cf. Jo 21,17)
As últimas semanas foram bastante intensas na Igreja Católica: o agravamento do estado de saúde do Papa Francisco e a comoção eclesial que isso gerou; sua saída do hospital e seu retorno à Casa Santa Marta, de onde seguia trabalhando; suas aparições oficiais e não oficiais aos olhos do público, expondo sua tão humana fragilidade; sua morte, no início da Oitava de Páscoa, e todos os eventos que compuseram o novo rito para o sepultamento de um papa – mais simples e mais breve, bem ao modo de Francisco. De fato, nas últimas semanas, todos os olhos estiveram voltados para Roma.
E permanecem, de certa maneira. Ao longo desta semana, teremos o tão esperado início do Conclave. Segundo a experiência dos últimos decênios e ouvindo certos consensos nas Congregações Gerais dos cardeais, é possível que, também ao longo desta semana, já tenhamos o novo papa. E isso deve acalmar provisoriamente (ou agravar?) algumas inseguranças institucionais na Igreja, bem como as especulações midiáticas que fazem parte de toda sucessão papal nesta era de informações tão instantâneas, abundantes e imediatas.
Mais do que em outros tempos, a morte do Papa Francisco gerou não apenas uma comoção eclesial, mas também uma mobilização notável de pessoas e grupos fora da Igreja Católica, muito para além das formalidades diplomáticas já esperadas. Em parte, isso se deve ao carisma e ao testemunho pessoais de Jorge Bergoglio, expressos em seu modo singelo de aproximar-se das “periferias geográficas e existenciais” das pessoas e do mundo. Mas não só! Mesmo com muitos limites, que devem ser honestamente reconhecidos, é preciso admitir: em seus 12 anos de pontificado, o Papa Francisco reposicionou a Igreja frente a importantes debates internacionais; assumiu posturas claras em discussões econômicas, políticas e ambientais relevantes – para dentro e para fora da Igreja; e desviou, em parte, o foco eclesial da velha discussão da pauta de costumes, mirando outros temas da fé que comunicam muito mais, sobretudo diante dos dilemas do nosso tempo. Exatamente por isso, como fundamento necessário, os temas eclesiológicos assumiram a primazia de todas as discussões internas, num processo verdadeiro (e inacabado) de recepção tardia das convicções do Concílio Vaticano II: de Lumen Gentium à Igreja Sinodal. De modo que, no apagar das luzes e passado o burburinho ruidoso das últimas semanas, é possível constatar: o sonho de uma “Igreja em saída”, repetido em tantos documentos desse pontificado, em parte se cumpriu.
No tema dos abusos na Igreja e do imperativo de ambientes eclesiais mais seguros e protegidos, já tivemos a chance, em textos anteriores, de reconhecer a importância decisiva do Papa Francisco. Foi a “virada copernicana” operada por este pontificado, sobretudo a partir da Carta ao Povo de Deus (2018) e de Vos Estis Lux Mundi (2019 | 2023), que o tema dos abusos foi desprivatizado. Antes compreendidos como categorias jurídico-canônicas, focadas na responsabilização individual, “abuso” e “cuidado” passaram a significar, a partir de Francisco, um desafio eclesial amplo, aberto e urgente para toda a Igreja, novamente reconhecida sob a categoria unificadora “Povo de Deus”.
Foi essa “virada eclesial” do tema que permitiu compreender o abuso como elemento sistêmico-estrutural do edifício eclesial. Assim como exige tratar o cuidado e a proteção como desafios igualmente sistêmico-estruturais, não resolutíveis com medidas esparsas e pontuais. O delito canônico (e o crime civil) do abuso é apenas parte do fenômeno – uma parte muito importante e emblemática, mas apenas uma parte. Dito de outro modo, ainda que tivéssemos na Igreja processos penais límpidos e eficientes (o que não temos), o problema ainda não estaria resolvido. Pois restariam pendentes todas as implicações eclesiológicas (por isso mesmo pastorais, ministeriais, formativas, de autoridade etc.) do tema dos abusos e da proteção. Obrigado, Francisco, por nos ensinar isso!
Seria possível encontrar os sinais dessa virada em diversos textos desse pontificado e em diversos episódios do testemunho pessoal do Papa. Como primeiro exemplo, tomo uma espécie de “nota metodológica” da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013)1, a carta magna de Francisco. Após recolocar a evangelização como tarefa primordial da Igreja – tarefa que ela exerce com alegria, Francisco escreve:
16. Com prazer, aceitei o convite dos Padres sinodais para redigir esta Exortação. Para o efeito, recolho a riqueza dos trabalhos do Sínodo; consultei também várias pessoas e pretendo, além disso, exprimir as preocupações que me movem neste momento concreto da obra evangelizadora da Igreja. Os temas relacionados com a evangelização no mundo atual, que se poderiam desenvolver aqui, são inumeráveis. Mas renunciei a tratar detalhadamente esta multiplicidade de questões que devem ser objeto de estudo e aprofundamento cuidadoso. Penso, aliás, que não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo. Não convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de proceder a uma salutar “descentralização”.
17. Aqui escolhi propor algumas diretrizes que possam encorajar e orientar, em toda a Igreja, uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo. Neste quadro e com base na doutrina da Constituição dogmática Lumen gentium, decidi, entre outros temas, de me deter amplamente sobre as seguintes questões:
a) A reforma da Igreja em saída missionária.
b) As tentações dos agentes pastorais.
c) A Igreja vista como a totalidade do povo de Deus que evangeliza.
d) A homilia e a sua preparação.
e) A inclusão social dos pobres.
f) A paz e o diálogo social.
g) As motivações espirituais para o compromisso missionário.
Não é difícil reconhecer nesse pequeno trecho elementos que se relacionam diretamente com a “virada eclesiológica” do tema dos abusos e da proteção: exercício do poder, lugar do magistério, interdisciplinaridade, primazia do evangelho, caracterização da vulnerabilidade, sinodalidade...
Depois de Evangelii Gaudium, a Carta Encíclica Laudato Sì (2015), mais tarde acompanhada da Exortação Apostólica Laudate Deum (2023) também propõe temas que nos interessam. Mesmo que num diálogo difícil com toda a herança notadamente antropocêntrica da fé cristã, há em Laudato Sì quatro ocorrências da palavra “abuso”, sempre relacionada à ação humana contra a natureza ou contra outros seres humanos:
LS 2: Esta irmã [terra] clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou.
LS 66: Longe deste modelo [de Francisco de Assis], o pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza.
LS 200: Se às vezes uma má compreensão dos nossos princípios nos levou a justificar o abuso da natureza, ou o domínio despótico do ser humano sobre a criação, ou as guerras, a injustiça e a violência, nós, crentes, podemos reconhecer que então fomos infiéis ao tesouro de sabedoria que devíamos guardar.
LS 215: Prestar atenção à beleza e amá-la ajuda-nos a sair do pragmatismo utilitarista. Quando não se aprende a parar a fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se transforme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos.
Pouco depois, na Exortação Apostólica Amoris Laetitia (2016) sobre o amor humano, os temas relacionados aos abusos sexuais, ao maltrato e à violência aparecerão diversas vezes. Mas há um dado particularmente interessante. Diferente de textos magisteriais anteriores sobre a moral sexual e familiar[2], Amoris Laetitia procura restaurar a primazia da vida sobre a doutrina, compreendendo que a complexidade de uma não pode se submeter à imobilidade da outra: “perante situações difíceis e famílias feridas, é preciso lembrar sempre um princípio geral: Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações. O grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, e podem existir fatores que limitem a capacidade de decisão. Por isso, ao mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há que evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diferentes situações, e é preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição” (AL 79). É verdade que isso está longe de resolver os dilemas que nascem da compreensão oficial da indissolubilidade do matrimônio, bem como o “regime de exceção” sob o qual vivem muitos fiéis em “situações matrimoniais irregulares”. Mas é também verdade que os parágrafos 76-79 de Amoris Laetitia desautorizam explicitamente o verdadeiro abuso espiritual, em forma de ameaça doutrinal, que muitos impõem aos fiéis em nome da moral familiar. E não passa desapercebido o apelo às “semina Verbi”, categoria herdada do decreto Ad Gentes do Concílio Vaticano II sobre a missão: lá onde os ditames da pertença institucional falham ou não existem, ainda assim é possível encontrar as “sementes da Palavra”, que Deus mesmo planta onde quiser. E elas germinam, florescem e frutificam à revelia da instituição e de suas exigências doutrinais.
Por fim, para fechar os grandes textos do Papa Francisco, a Carta Encíclica Fratelli Tutti sobre a Fraternidade a Amizade Social (2020) faz uma tipologia interessante sobre o tema dos abusos, ainda mais ampla que a trilogia “abusos sexuais, de consciência e de poder” da Carta ao Povo de Deus:
FT 38: Infelizmente, outros são "atraídos pela cultura ocidental, nutrindo por vezes expetativas irrealistas que os expõem a pesadas decepções. Traficantes sem escrúpulos, frequentemente ligados a cartéis da droga e das armas, exploram a fragilidade dos imigrantes, que, ao longo do seu percurso, muitas vezes encontram a violência, o tráfico de seres humanos, o abuso psicológico e mesmo físico e tribulações indescritíveis.
FT 111: É preciso, porém, ter cuidado para não cair em alguns equívocos que podem surgir de um errado conceito de direitos humanos e de um abuso paradoxal dos mesmos. De facto, há hoje a tendência para uma reivindicação crescente de direitos individuais – sinto-me tentado a dizer individualistas –, que esconde uma conceção de pessoa humana separada de todo o contexto social e antropológico, quase como uma “mônada” cada vez mais insensível (…). Na realidade, se o direito de cada um não está harmoniosamente ordenado para o bem maior, acaba por conceber-se sem limitações e, por conseguinte, tornar-se fonte de conflito e violência.
FT 167: A tarefa educativa, o desenvolvimento de hábitos solidários, a capacidade de pensar a vida humana de forma mais integral, a profundidade espiritual são realidades necessárias para dar qualidade às relações humanas, de tal modo que seja a própria sociedade a reagir face às próprias injustiças, às aberrações, aos abusos dos poderes económicos, tecnológicos, políticos e midiáticos.
FT 222: O individualismo consumista provoca muitos abusos. Os outros tornam-se meros obstáculos para a agradável tranquilidade própria e, assim, acaba-se por tratá-los como incómodos; e a agressividade aumenta. Isto acentua-se e atinge níveis exasperantes em períodos de crise, situações catastróficas, momentos difíceis...
FT 227: Com efeito, a verdade é uma companheira inseparável da justiça e da misericórdia. Se, por um lado, são essenciais – as três todas juntas – para construir a paz, por outro, cada uma delas impede que as restantes sejam adulteradas. De facto, a verdade não deve levar à vingança, mas antes à reconciliação e ao perdão. A verdade é contar às famílias dilaceradas pela dor o que aconteceu aos seus parentes desaparecidos. A verdade é confessar o que aconteceu aos menores recrutados pelos agentes de violência. A verdade é reconhecer o sofrimento das mulheres vítimas de violência e de abusos. Cada ato de violência cometido contra um ser humano é uma ferida na carne da humanidade; cada morte violenta diminui-nos como pessoas. A violência gera mais violência, o ódio gera mais ódio, e a morte mais morte. Temos de quebrar esta corrente que aparece como inelutável.
FT 256: No coração dos que maquinam o mal, há falsidade, mas aqueles que têm conselhos de paz, viverão na alegria" (Pv 12,20). No entanto, há quem busque soluções na guerra, que frequentemente se nutre com a perversão das relações, com as ambições hegemónicas, os abusos de poder, com o medo do outro e a diferença vista como obstáculo. A guerra não é um fantasma do passado, mas tornou-se uma ameaça constante. O mundo está a encontrar cada vez mais dificuldade no lento caminho da paz que empreendera e começava a dar alguns frutos.
Tão ampla quanto a tipologia dos abusos listados é o apelo às relações de cuidado e de proteção, também presentes em diversas passagens do texto. E não nos esqueçamos de que Fratelli Tutti foi publicado em 03 de outubro de 2020, no primeiro ano da pandemia de COVID-19, quando foram registrados os índices mais brutais da letalidade do vírus, mas também os episódios mais dramáticos de injustiça, em escala global, no acesso ao tratamento médico, às vacinas e ao direito de morrer com dignidade e cuidado.
Esses são apenas alguns exemplos de como o tema dos abusos foi assumido durante o Pontificado de Francisco como tema eclesial. Há muito por fazer e o risco de um retrocesso institucional sempre existe. Mas tomara que o caminho iniciado, e tão exemplarmente afirmado na Carta ao Povo de Deus e em Vos Estis Lux Mundi, seja igualmente assumido pelo próximo papa. Por ora, resta-nos dizer: obrigado, Francisco!
1 Todos os textos de Francisco citados daqui em diante podem ser encontrados aqui.
2 Cf. por exemplo: aqui e aqui.