Vozes de Emaús. Uma palavra para riscar de nosso vocabulário: identitarismo! Artigo de Claudio de Oliveira Ribeiro

Arte: Laurem Palma | IHU

16 Mai 2025

"Os esforços e lutas por justiça e paz devem transcender identidades fixas, promovendo solidariedade entre grupos diversos sem ignorar ou desvalorizar as especificidades e visões de cada um. As questões religiosas estão quase sempre presentes neste quadro. Por isso, os diálogos inter-religiosos e interculturais são essenciais para superarmos polarizações indevidas, aglutinando esforços para a efetivação de uma visão de democracia que valorize a convivência justa e a transformação social. Outros caminhos mais dialógicos precisam ser forjados."

Claudio de Oliveira Ribeiro (Foto: Reprodução | Instagram)

Cláudio de Oliveira Ribeiro, pastor metodista e professor.

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que começa a ser publicada hoje e que contará com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui

Eis o artigo.

Em alguns círculos, muito tem se falado sobre identitarismo e se criticado as posturas denominadas “politicamente corretas”. Para todos nós que sempre estivemos mobilizados em torno das lutas em prol da justiça social e da paz, este é um ponto que nos faz pensar ...

Aprendi algo muito significativo com o jornalista Antônio Prata, em um pequeno, porém magistral, texto, publicado por ele em vários canais da Internet, chamado “Sommeliers de movimento social”, cujo subtítulo é crucial: ele diz que “o epicentro da tragédia brasileira, qualquer pessoa de boa-fé tem de admitir, é a escravidão”. O que mais me chamou a atenção foi este autor dizer que, antes de tematizarmos as duas situações inicialmente citadas – o identitarismo e o politicamente correto -, deveríamos já ter dado demonstrações bem explícitas e robustas de posturas pessoais antirracistas, antimachistas e anti-homofóbicas. No texto, ele afirma que “em quase três décadas participando de eventos literários, raras foram as vezes em que não me perguntaram: ‘O que você acha da patrulha do politicamente correto?’. Até poucos anos atrás, nem uma única vez haviam me perguntado ‘o que você acha de piadas racistas/machistas/homofóbicas?’”.

O fato é que gastamos quase toda a energia crítica nos posicionando contra o que chamamos de identitarismo (nem sempre com a adequada distinção do que sejam, de fato, as pautas identitárias) e pouquíssimo esforço na compreensão e na contraposição às desigualdades étnico-raciais e de gênero presentes na sociedade.

Prata nos indica em seu artigo que essa perspectiva revela muito sobre o Brasil. Ou seja, mesmo na bolha supostamente mais progressista – ou, ao menos, mais letrada –, considera-se que fazer reparos e críticas às posturas das minorias contra a discriminação é mais importante do que repudiar a discriminação. Esquecemos que “nenhum outro país sequestrou, escravizou, vendeu e comprou seres humanos na mesma escala. Ao longo de quase quatro séculos, cerca de cinco milhões de pessoas chegaram aqui acorrentadas e aqui morreram”. E acrescentemos as dores e as ações de violência de todas as ordens sofridas pelas mulheres, até os dias de hoje, as marcas sofridas das ações resultantes do machismo estrutural na sociedade, somadas às discriminações e preconceitos nos diferentes ambientes da vida. E o que dizer das pessoas LGBTQIA+? São assustadores os números de casos de violência que as afligem, sem contar as formas explícitas ou veladas de discriminação e preconceitos em praticamente todos os âmbitos da sociedade brasileira.

Assim como diversas pessoas e grupos que conheço, eu procuro, mesmo com enormes contradições e ambiguidades, trilhar esse caminho minoritário de não culpabilizar as vítimas desse processo histórico, que marginaliza as pessoas negras, mulheres, e LGBTQIA+, acusando-as de identitaristas pelas reações mais contundentes delas aos privilégios dos homens e das pessoas brancas. Além disso, um esforço sempre maior é preciso ser feito para procurar entender e valorizar as reações que vêm destes grupos e buscar formas dialógicas de interação crítica para que os processos mais globais de libertação social, cultural e política sejam fecundos e embrenhados nas raízes das opressões sofridas, considerando os níveis pessoal, coletivo e sociopolítico. E, neste quadro, crítica e afeto se unem.

Tem sido várias as situações que nos colocam diante do que alguns se referem como identitarismo. Basta lembrarmos de algumas desqualificações da importância social do filme "Ainda Estou Aqui", ganhador do Oscar, por não focar em questões da negritude. O mesmo se dá em tantos exemplos de debates acirrados nos mais variados espaços da vida social, nos quais a questão da negritude, da ótica feminista ou LGBTQIA+ passa a ser a única referência e não são considerados outros aspectos da vida, igualmente marcados por opressões e desigualdades. O que fazer diante de reducionismos como estes?

Obviamente, não temos respostas prontas. No entanto, em um âmbito de caráter mais pessoal, posso dizer que refletir de forma plural e global, mas levando em conta tudo de concreto e doloroso que as pessoas vivem, sobretudo as que não têm os privilégios que eu tenho, sempre foi fascinante e desafiador para mim. Aliás, mais do que desejar, é ter como projeto de vida mesmo! Então, eu tenho me arriscado em dizer algo, ainda que frágil, intuitivo e incipiente, sobre esse ponto, sem deixar de reconhecer que ele é por demais delicado e sensível.

O particularismo (eu prefiro o uso desta expressão a identitarismo!) tem, entre os seus efeitos, desfocar as pautas identitárias, gerando processos nos quais, ao invés de lutarmos contra racistas, machistas e homofóbicos, brigamos entre nós mesmos. Considero importante que isto seja dito e percebido, sem que seja retirado o espaço e as condições para que as pessoas expressem suas dores e visões. Ou seja, ao olhar e avaliar a realidade sob um único e exclusivo ponto de vista, ainda que nobre e urgente, sem considerar outras perspectivas e experiências, a postura particularista perde a possibilidade de focar as lutas identitárias, especialmente contra os racismos, machismos e homofobias, com a força suficiente e necessária para enfrentar as suas dimensões estruturais. Estas quase sempre são articuladas por diferentes aspectos, como os econômicos, os históricos, os culturais e os das relações de poder.

Na crítica a movimentos que priorizam identidades específicas (como cor da pele, gênero ou etnia) em detrimento de uma visão mais ampla de justiça social, é importante ressaltar, em um diálogo crítico e construtivo, que eles, embora sejam extremamente válidos em sua luta por reconhecimento, correm o risco de se tornarem restritivos caso se absolutizem identidades.

Assim, vamos reforçando guetos, perdendo a capacidade de diálogo, desfocando as lutas sociais em sua importância, condicionamentos estruturais e no discernimento das estratégias. As mãos, já calejadas por tantos espinhos, que a dureza da vida impõe a tanta gente sofrida, especialmente as mais pobres, vão ficando ainda mais arranhadas. Mas, não nos cansaremos de uni-las.

Ficam vislumbrados aí caminhos de reunião do elemento acolhedor, dificílimo por suposto, das visões, palavras e atitudes particulares dos mais distintos grupos subalternizados, explosivas ou não, incisivas ou mais serenas, com a dimensão crítica às formas de particularismo, da qual não devemos abrir mão, para que possamos ter perspectivas mais profundas de transformação social.

Neste país, forjado na escravidão e em formas violentas de dominação, com feridas que permanecem abertas, afirmar que devemos combater incisivamente o identitarismo, sem compreender o que as atitudes afirmativas representam no processo mais global de libertação sociopolítica, pode ser um equívoco. Daí a importância da valorização do pluralismo e do diálogo entre diferentes grupos culturais e religiosos, vistos a partir das nobres tarefas decoloniais, que valorizam os entrelugares e as fronteiras culturais, dando voz e espaço a pessoas, organizações e grupos subalternizados. A revisão crítica das posturas e ações particularistas pode contribuir na visualização de estruturas de opressão, mais amplas e complexas, como as forjadas pelo capitalismo e pelas formas de colonialidade do saber, do poder e do ser, e as consequentes formas conjuntas de ações libertadoras, tendo em vista a defesa dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais, ambientais e sexuais.

Os esforços e lutas por justiça e paz devem transcender identidades fixas, promovendo solidariedade entre grupos diversos sem ignorar ou desvalorizar as especificidades e visões de cada um. As questões religiosas estão quase sempre presentes neste quadro. Por isso, os diálogos inter-religiosos e interculturais são essenciais para superarmos polarizações indevidas, aglutinando esforços para a efetivação de uma visão de democracia que valorize a convivência justa e a transformação social. Outros caminhos mais dialógicos precisam ser forjados.

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