Por: André Langer | 01 Novembro 2025
“‘Eu sou a minha espiritualidade’, disse Dom Pedro Casaldáliga de si mesmo. É uma espiritualidade encarnada, vivida em primeira pessoa. Não é um pedaço da sua vida; diz respeito a tudo o que ele é. O que ele é, é dito pela espiritualidade. Tudo o que faz é ato espiritual. Nossa vida é a nossa vida espiritual”. Com estas palavras, a Prof. Dra. Marília Murta de Almeida (FAJE) sintetizou o legado espiritual deste bispo espanhol que dedicou sua vida em defesa dos direitos das pessoas mais simples na Prelazia de São Félix do Araguaia, MT.
As reflexões foram feitas durante a atividade A espiritualidade teopoética em Dom Pedro Casaldáliga que aconteceu no dia 04 de outubro, e que integra a série de encontros [on-line] Debates Eclesiais em Destaque, uma iniciativa do Centro de Promoção de Agentes de Transformação - CEPAT em parceria com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Maringá - UEM, o Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB e as Comunidades de Vida Cristã - CVX, Regional Sul.
Marília Murta de Almeida é doutora em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Possui graduação em psicologia pela UFMG. Atualmente, é professora da FAJE e do Centro Loyola de Fé, Cultura e Espiritualidade, em Belo Horizonte, e coordenadora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da FAJE (PIBIC). Participa da Rede Brasileira de Teólogas – RBT e da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas.
Série de encontros 'Temas Eclesiais em Destaque', com a reflexão 'A espiritualidade teopoética em Dom Pedro Casaldáliga'
Dom Pedro vivia, sempre segundo Marília, como o povo vivia, e sua casa sempre estava de portas abertas. Vive com o povo, no meio do povo e como o povo do lugar, comprometido com as causas deste povo. Pedro viveu – e a vida é a espiritualidade – junto com o povo, em meio à natureza, às margens do Araguaia, com implicação política e fazendo versos.
O compromisso com o povo implica a tomada de posições, colocar-se do lado dos empobrecidos, fazer denúncias e assumir compromissos. Em decorrência deste compromisso, sofreu ameaças de morte, em relação às quais não se deixou amedrontar.
Em meio a todos os compromissos que tinha, fazia poesia. Sua obra poética contém uma teologia. Por isso, teopoética. Um esforço de unir teologia e literatura. Como, através da sua poesia, podemos perceber as suas ideias teológicas? Ao mesmo tempo, a poesia é um esforço de dizer em linguagem poética o que a teologia diz (ou não consegue) em prosa.
Marília explora a teopoética de Pedro, como ele gostava de ser chamado, a partir da noção de hospitalidade.
1. A hospitalidade como entrega de si
Pedro é um bispo que cria laços e corta cercas, ajuda a nos desfazer daquilo que nos distancia dos outros, da natureza, de Deus.
Marília toma e comenta algumas poesias de Dom Pedro, como segue.
1. Abertura à vida – hospitalidade à vida
O coração cheio de nomes (El tiempo y la espera) – Pedro Casaldáliga [1]
Ao final do caminho me dirão:
- Viveste? Amaste?
E eu, sem dizer nada,
abrirei o coração cheio de nomes.
No julgamento, quando indagado se viveu amando, não dirá nada, apenas abrirá o seu coração cheio de nomes, isto é, de pessoas concretas que amou e às quais dedicou sua vida.
Pobreza evangélica (Cantares de entera libertad) – Pedro Casaldáliga
Nada ter.
Nada levar.
Nada poder.
Nada pedir.
E, de passagem,
nada matar;
nada calar.
Somente o Evangelho, como uma faca afiada.
E o pranto e o riso no olhar.
E a mão estendida e apertada.
E a vida, a cavalo, dada.
E este sol e estes rios e esta terra comprada,
para testemunhos da Revolução já deflagrada.
E “mais nada”!
Aparece fortemente a imagem do nada, da pobreza evangélica, requerida a todos nós. Nada calar é um convite a gritar, quando for preciso. A palavra assume aqui uma perspectiva profética de denúncia das injustiças e compromisso com aqueles que de fato nada tem.
Não levar nada a não ser a faca afiada da palavra do Evangelho; esta é sua única arma – combater com o Evangelho.
Estes dois poemas trazem elementos de uma biografia espiritual de Dom Pedro.
2. Hospitalidade aos seres da natureza
Pedro tem uma série de poemas que abordam questões da natureza, no que se pode ver claramente uma inspiração franciscana. A espiritualidade franciscana faz parte da espiritualidade de Dom Pedro, tanto no aspecto da relação com a natureza, como também com a pobreza.
Sabiá (Clamor elemental) – Pedro Casaldáliga
Parou o motor. (O rio não parava,
mas todo ele calava, deitado,
enquanto o sol dourava o intervalo,
e a chuva esperava, contida
na fronteira cinza do horizonte...)
E então, invisível como a alma,
rompeu a cantar o sabiá divino.
O silêncio da natureza nunca é absoluto; é o silêncio dos barulhos que possam interferir para que a gente possa escutar aquilo que provém dos seres da natureza, mas que, em última instância, diz respeito à sonoridade do divino.
Imaginar o cantar do “sabiá divino”, a música que canta para nós, de alguma forma faz ressoar o que seria a voz de Deus que está no mundo e que conseguimos ouvir quando silenciamos as nossas vozes, representadas pelo barulho do motor.
Canoa (Clamor elemental) – Pedro Casaldáliga
Simplicidade perfeita.
Brincadeira de crianças grandes.
Réplica fiel de pássaros e peixes.
O mais belo veículo que talharam os homens!
Esculpida, a machado e pé.
pela suprema arte dos índios.
Pura estabilidade,
sem peso e sem medida,
somente à mercê do remo, do vento e do olhar...
Todos os diversos elementos (pessoas, utensílios, sons...) estão integrados naquilo que chama de “mais belo veículo que talharam os homens”; isso está integrado, o que remete novamente à espiritualidade, um convite para vivê-la no nosso ser inteiro. Para isso é preciso perceber os laços todos que vão ligando tudo. A “arte suprema dos índios” é uma arte integradora.
Série de encontros 'Temas Eclesiais em Destaque', com a reflexão 'A espiritualidade teopoética em Dom Pedro Casaldáliga'
3. Hospitalidade ao outro humano
É na relação com o outro humano que toda dimensão política, da luta, do combate vai aparecer com maior força. Porque são as injustiças feitas às outras pessoas que nos trazem mais indignação, revolta.
Caim (Sonetos neobíblicos precisamente) – Pedro Casaldáliga
Leva o destino nas costas, com o agasalho,
o amor é morto e a tristeza viva.
A alma esquecida no olhar opaco.
É uma solidão à deriva.
Cruzou a ilha, o Araguaia,
a sociedade, o tempo, o mal. Foge
da luz do sol e do sonho da praia.
Foge de todos, de si mesmo foge.
Condenado a viver sua vida morta.
Se violou a lei, a paz presumida,
A ela matamos a paz certa.
Pode ser Caim, mas é humano,
e, por ele, Deus, zeloso, nos pergunta:
- Abel, Abel, que fez de seu irmão?
Aqui, Pedro dirige a pergunta originalmente feita por Deus a Caim (Gn) ao próprio Abel: “Abel, Abel, que fez de seu irmão?” Caim é irmão de Abel. Caim, apesar de tudo o que fez, é humano e merece que sua dignidade seja respeitada. Aqui está uma chave para mudar aquela concepção popular de que “bandido bom é bandido morto”. Deus vai nos perguntar: o que é feito dos nossos irmãos que matam, nas prisões superlotadas, como agem as forças da ordem... Aqui, Marília remete a um texto da Clarice Lispector intitulado “Mineirinho”.
4. Hospitalidade ao Espírito, a Deus
Como um rio (pelo rio das mortes) – (El tiempo y la espera) – Pedro Casaldáliga
Como um rio que me invade mansamente.
Em que penetro, deslumbrado. Como um rio
que me arrasta, poderoso em sua corrente
enquanto abro, livremente, o curso que é meu.
Como um rio que respeita minhas margens.
Com o céu todo em seu regaço.
Que eu sigo, pelas noites, de joelhos
e circundo, sob o sol, com um abraço.
Como um rio que me embala, que me sacia.
Que eu crio com as águas da Sua graça.
Como um rio já chegado e por chegar.
Onde morre o dia e nasce o dia novo.
Como um rio que me leva e que eu levo.
Como um rio que se sabe rio e mar.
O rio como uma imagem rica para uma antropologia teológica rica para expressar a espiritualidade. Nossas vidas são rios que correm para o mar. Cada rio é uma vida, uma vida espiritual, pois “me invade mansamente”. Ao mesmo tempo “em que penetro, deslumbrado”. Esta imagem preserva a individualidade (“saber-se rio). Este rio, ao mesmo tempo, respeita os meus limites (as minhas “margens próprias”), a minha individualidade, mas não é os meus limites. Ela é em si mesma algo que ultrapassa esses limites.
A imagem do abraço retoma a ideia da hospitalidade. Nós criamos a nossa vida, mas as águas não são nossas; nos vêm, nos são dadas pela graça divina. Está presente o paradoxo entre a integralidade que eu sou ilimitadamente e o que me preenche, que é a presença da vida divina em mim. O rio me conduz, mas ao mesmo tempo há uma autonomia e liberdade, um modo próprio de cada um de nós, e isso remete também a compromissos que cada um de nós vai assumindo.
Finalizando, Marília diz que a teopoética de Dom Pedro tem a característica de já nascer dentro do contexto bíblico e teológico cristão e que, de modo mais geral, o recurso à poesia para fazer teologia é interessante porque o poeta, na poesia, deixa o coração falar, de onde pode provir uma teologia com outros matizes, nem sempre tão racional e mais intuitiva e experiencial.
Abaixo, disponibilizamos a íntegra da exposição e debate.
Nota
[1.] As poesias de Dom Pedro foram traduzidas do espanhol para o português por Marília Murta de Almeida.
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