14 Outubro 2025
Levará tempo para absorver a emoção dos últimos dois dias, como quando, cambaleante, você se levanta após uma longa doença. "Estou feliz, mas fico me repetindo para ser cauteloso. Muitas vezes, as coisas se precipitaram no último minuto", fala o escritor israelense Etgar Keret ao La Stampa enquanto seu telefone vibrava incessantemente. Todos sentem a necessidade de falar, contar, comentar.
A entrevista é de Francesca Paci, publicada por La Stampa, 11-10-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
O eterno presente parece ter acabado. Você acha que o futuro, seja qual for, é agora menos assustador do que o que Israel está deixando para trás?
Os israelenses ainda não absorveram o 7 de outubro. Nestes dois anos, vivemos por reflexo, sem pensar, falando apenas de nós mesmos, um estado de estagnação coletiva. A partir de amanhã, teremos que refletir, superar a vergonha, não podemos mais contornar as 20.000 crianças que morreram em Gaza. Os responsáveis pela situação a que chegamos terão que assumir a responsabilidade. Não será um processo rápido. A sociedade está doente, um em cada três israelenses sofre de transtorno de estresse pós-traumático e ninguém sabe quanto tempo durará.
As famílias daqueles que estão prestes a deixar Gaza se preparam para o dia mais longo, e a diplomacia estadunidense, galvanizada por Trump, está brindando. O que resta do 7 de outubro?
A praça dos reféns está sempre lotada, alegre e aliviada, embora será muito difícil descobrir em que condições retornarão aqueles que retornarem. Mas o país está dividido; na direita aninha-se o ódio e a desconfiança contra a suposta conspiração de esquerda para parar a guerra, e do outro lado, fervilha a raiva contra o governo que permitiu o massacre de 7 de outubro e depois não se empenhou o suficiente para trazer os reféns de volta. Temos pela frente uma grande batalha por nossa identidade. Que tipo de país seremos amanhã? Quando Netanyahu evoca o ‘modelo Esparta’, vejo-me projetado num equivalente judaico do Iêmen fundamentalista dos Houthis: o desafio é grande e a escolha é nossa.
No final, Donald Trump não conseguiu ganhar o Prêmio Nobel da Paz, mas obteve um resultado histórico. Teria apostado nisso?
Trump é parecido com Netanyahu, ambos amam mais a mídia do que a verdade, o tratamento que reservou a Netanyahu é o mesmo que este costuma destinar aos seus homens: intimidador, agressivo, desonesto. O plano em si é cheio de sombras, mas isso não importa para a narrativa: o Hamas ainda não havia aceitado e o presidente estadunidense já elogiava sua incrível disposição. Inacreditável. Mas talvez fosse o único caminho.
Não havia um caminho europeu?
A Europa tentou em vão seguir o caminho clássico, diplomático; nesta fase, são os durões que vencem, a honestidade não compensa. Além disso, esse acordo é o mesmo proposto há um ano; teríamos poupado milhares de vidas se Netanyahu, como o Hamas, tivesse dito sim a Biden em vez de esperar que Trump o impusesse brutalmente. Estou feliz que a guerra tenha acabado, mas estou deprimido pela falta de uma liderança: que o mundo esteja nas mãos de Trump é muito triste.
Netanyahu já começou a assumir o crédito pela vitória.
Era previsível e é ridículo. E o Hamas está fazendo a mesma coisa. É algo alucinante porque ambos destruíram as suas respectivas sociedades: Israel está isolado econômica e politicamente, nove em cada dez habitantes de Gaza estão desabrigados, todos nós perdemos. No entanto, a vasta maioria de israelenses e palestinos só quer viver com dignidade.
Os ministros Ben Gvir e Smotrich votaram contra, mas por enquanto permanecem no governo. De quem Israel deve se precaver hoje?
Smotrich e Ben Gvir estão cavalgando a pradaria na extrema-direita de Netanyahu, onde, diante de um acordo negociado também pelo Catar, têm a oportunidade de roubar votos dele. Construíram suas carreiras no ódio. E mesmo Netanyahu, depois de prometer uma guerra até o último homem do Hamas, terá que encarar a realidade e encontrar mil desculpas. O maior perigo para o roteiro recém-iniciado vem dele e do Hamas.
Você tem uma mensagem para as famílias israelenses que aguardam seus entes queridos e uma para as famílias palestinas, distantes, mas muito próximas de Tel Aviv?
Estamos no início de uma jornada desconhecida. Até agora, deixamos as emoções prevalecerem, mas os abraços e os funerais devem marcar uma mudança de rumo. Em Gaza, apesar da destruição ser incomensurável, o estado de espírito é semelhante. Todos nós viemos de dois anos em que, como quando se cai da escada, não sabíamos onde iríamos bater, que osso quebraríamos, rolávamos às cegas e só pensávamos em proteger a cabeça com as mãos.
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