No período entre o contato inicial para esta entrevista e o momento em que ela efetivamente ocorreu, menos de 24 horas, 103 pessoas morreram em Gaza: 47 enquanto tentavam chegar às ajudas alimentares, sete de fome e as demais em diversas operações militares israelenses. David Grossman, assim como quem escreve, leu os números no Haaretz: e foi disso que esta conversa parte. "Ditada, ele explica, por um sentimento de "inevitabilidade. Sinto uma urgência interior em fazer a coisa certa, e este é o momento de fazê-la", explica. "Às vezes, você só consegue entender realmente as coisas falando sobre elas."
A entrevista é de Francesca Caferri, publicada por la Repubblica, 01-08-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vamos começar pelos números: quando lê o número de mortos em Gaza, o que pensa?
Sinto-me mal. Mesmo sabendo que esses números passam pelo controle do Hamas e que Israel não pode ser o único culpado por todas as atrocidades a que assistimos. Apesar disso, ler num jornal ou ouvir nas conversas com amigos na Europa a justaposição das palavras ‘Israel’ e ‘fome’; fazer isso com base na nossa história, na nossa suposta sensibilidade aos sofrimentos da humanidade, na responsabilidade moral que sempre afirmamos ter para com todos os seres humanos e não apenas para com os judeus... tudo isso é devastador. E me causa confusão: não do ponto de vista moral, mas pessoal. Pergunto-me: como pudemos chegar a esse ponto? A ser acusados de genocídio? Até mesmo o mero proferir a palavra ‘genocídio’ em referência a Israel, ao povo judeu: bastaria isso, o fato de existir essa justaposição, seria suficiente para nos dizer que algo muito ruim está acontecendo conosco. Um juiz do Supremo Tribunal de Israel disse certa vez que o poder corrompe, e que o poder absoluto corrompe de modo absoluto. E aqui está, aconteceu conosco: a Ocupação nos corrompeu. Estou absolutamente convencido de que a maldição de Israel começou com a ocupação dos territórios palestinos em 1967. Talvez as pessoas estejam cansadas de ouvir falar disso, mas é isso mesmo. Nos tornamos muito fortes militarmente e caímos na tentação gerada pelo nosso poder absoluto e pela ideia de que podemos fazer tudo".
Você usou a palavra proibida: "genocídio". Em um artigo publicado há alguns dias no Haaretz, a jurista israelense Orit Kamir chamou o que está acontecendo em Gaza de "uma traição às vítimas do Holocausto". No New York Times, o historiador israelense Omer Bartov escreveu: "Estudo genocídios, tenho condições de reconhecer um quando o vejo. Um genocídio está em curso em Gaza." Você concorda?
Por anos, recusei-me a usar esta palavra: 'genocídio'. Mas agora não posso deixar de usá-la, depois do que li nos jornais, das imagens que vi e de falar com as pessoas que estiveram lá. Mas veja bem, essa palavra serve principalmente para fins de definição ou jurídicos: eu, ao contrário, quero falar como um ser humano que nasceu dentro desse conflito e teve toda a sua vida devastada pela Ocupação e pela guerra. Quero falar como alguém que fez tudo o que pôde para evitar chamar Israel de Estado genocida. E agora, com imensa dor e o coração partido, tenho que constatar que está acontecendo diante dos meus olhos. ‘Genocídio’. É uma palavra ‘bola de neve’: uma vez que você a profere, ela simplesmente cresce, como uma avalanche. E traz ainda mais destruição e mais sofrimento.
Para onde ir agora?
Devemos encontrar uma maneira de sair dessa associação entre Israel e o genocídio. Em primeiro lugar, não devemos permitir que aqueles que têm sentimentos antissemitas usem e manipulem a palavra 'genocídio'. E também devemos nos perguntar: somos capazes como Nação, somos fortes o suficiente para resistir aos germes do genocídio, do ódio e dos assassinatos em massa? Ou deveríamos nos render ao poder que nos garante que somos os mais fortes? Ouço pessoas como Smotrich e Ben Gvir (dois ministros israelenses de extrema direita, ndr) dizerem que devemos reconstruir os assentamentos em Gaza: mas o que eles estão dizendo? Não se lembram do que acontecia quando estávamos lá, com o Hamas matando centenas de civis israelenses, mulheres e crianças, sem que pudéssemos protegê-los? Não deixamos Gaza por generosidade, mas porque não conseguimos proteger a nossa gente. O grande erro dos palestinos foi que eles poderiam tê-la transformado em um lugar próspero: em vez disso, cederam ao fanatismo e a usaram como rampa de lançamento para os mísseis contra Israel. Se tivessem feito a outra escolha, talvez isso tivesse levado Israel a ceder também a Cisjordânia e pôr um fim à Ocupação anos atrás. Em vez disso, os palestinos foram incapazes de resistir à tentação do poder: eles atiraram em nós, nós atiramos neles e nos encontramos na mesma situação de sempre. Se nós e eles tivéssemos sido mais maduros politicamente, mais corajosos, a realidade poderia ter sido completamente diferente”.
Por que não há milhões de pessoas nas ruas em Israel para impedir tudo isso? A fome, os massacres... Por que há sempre apenas uma minoria do país nas ruas?
Porque é mais fácil não ver. E render-se ao medo e ao ódio é muito simples. Ainda mais depois de 7 de outubro: você estava aqui naqueles dias, pode entender quando digo que foi horrível, tantas pessoas ainda não entendem o que significou para nós. Muitas pessoas que conheço, desde aquele dia, abandonaram os nossos valores de esquerda compartilhados, cederam ao medo; e de repente suas vidas se tornaram mais fáceis, se sentiram acolhidas pela maioria, não tiveram mais a necessidade de pensar. Sem entender que quanto mais você cede ao medo, mais isolado e odiado você fica fora de Israel. A vida é a história que contamos a nós mesmos: vale para todos. Mas quando você é Israel, cercado por vizinhos que não o querem nesta região, como a Síria, e começa a perder o apoio da Europa, o isolamento cresce e você se vê em uma armadilha cada vez mais profunda, da qual é difícil escapar. Aliás, da qual você corre o risco de não conseguir escapar.
O silêncio da maioria corre o risco de arrastar a todos indistintamente, israelenses e judeus, incluindo aqueles que não concordam. Você sabe o que aconteceu recentemente em um posto de conveniência perto de Milão? Depois, houve o navio que não foi autorizado a atracar na Grécia. Artistas e escritores israelenses viram convites do exterior serem retirados, apesar de criticarem o governo: pensa que isso poderia acontecer com você também?
Claro que penso nisso: seria um sinal dos tempos em que vivemos. Seria desagradável. Mas não será isso a me impedir de dizer o que penso: acredito que escutar ideias como as minhas neste momento é essencial. Para Israel e para aqueles que amam Israel.
Você disse que tudo começou com a Ocupação. Escreveu isso em "Il Vento Giallo", e era 1987. Vamos falar da Cisjordânia então: na Europa, ainda se fala em dois Estados, mas basta sair de Jerusalém para ver que não existe mais, fisicamente, espaço para dois Estados. As colônias estão comendo as terras dos palestinos...
Continuo desesperadamente fiel à ideia de dois Estados, principalmente porque não vejo alternativas. Será complexo, e tanto nós quanto os palestinos teremos que nos comportar de maneira politicamente madura diante dos ataques que certamente ocorrerão. Mas não há outro plano.
O que acha do reconhecimento do Estado Palestino por Macron?
Acho que é uma boa ideia, e não entendo a histeria que a acolheu aqui em Israel. Talvez lidar com um Estado de verdade, com obrigações reais, não com uma entidade ambígua como a Autoridade Palestina, poderá ter as suas vantagens. É claro que haverá condições bem específicas: sem armas. E a garantia de eleições transparentes, das quais qualquer pessoa que pense em usar violência contra Israel seja banida.
Ao final desta conversa, gostaria de pedir que você respondesse àqueles — são muitos— que dizem que vocês, intelectuais israelenses, não disseram ou fizeram o suficiente para impedir o que está acontecendo em Gaza.
Acredito que atacar aqueles que lutaram contra a Ocupação por quase 60 anos e que investiram a maior parte de suas vidas e carreiras nessa batalha é injusto. Quando essa guerra começou, estávamos em um estado de desespero total por termos perdido tudo em que acreditávamos e amávamos: acredito que nossa reação lenta foi natural e compreensível. Levamos tempo: para entender o que sentíamos e o que pensávamos, e então encontrar as palavras para expressar isso. Aqueles que buscavam uma reação em tempo real deveriam ter procurado em outro lugar: falo por mim e por aqueles que vejo nas manifestações todas as semanas, há anos. Nosso coração está no lugar certo: e bate numa realidade sem coração.