11 Outubro 2025
"Motivadas pela ânsia do lucro e visando acumular riquezas, as grandes empresas de abastecimento de água e esgotamento sanitário procuram cada vez mais se apropriar e controlar os recurso hídricos dos territórios, transformando tais serviços em mercadorias", escreve Sandoval Alves Rocha.
Sandoval Alves Rocha é jesuíta, doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), trabalha no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), em Manaus.
Eis o artigo.
O Vicariato Apostólico de Iquitos/Peru realizou entre 1 e 3 de outubro a Cumbre Amazónica del Agua, reunindo quase 400 lideranças, representes de múltiplas comunidades eclesiais, movimentos sociais, organizações e entidades da sociedade civil para discutir as formas como são geridos os mananciais hídricos da região. O Fórum das Águas do Amazonas participou do evento, apresentando o modelo de abastecimento de água e esgotamento saneamento adotado na cidade de Manaus a partir da ótica da privatização.
Na Cumbre del Agua estiveram presentes representantes da hierarquia católica, como os Cardeais Carlos Castillo e Pedro Barreto, além de outros bispos da região amazônica. O Cardeal Micheal Czerny, prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, enviou de Roma uma mensagem de vídeo para os participantes do evento. Dom Rafael Cob Garcia, presidente da Rede Eclesial Pan-amazônica (REPAM), também participou da iniciativa, enaltecendo a organização e a importância do acontecimento.
Na sua mensagem enviada por vídeo, Micheal Czerny enfatizou para todos que “a água não pode ser possuída, vendida nem negociada: ela deve ser partilhada, defendida e celebrada”. Com estas palavras, o clérigo demonstrou a sua preocupação com as práticas e políticas contemporâneas de apropriação e mercantilização da água, assim como alertou sobre a necessidade de se proteger os mananciais hídricos que são cada vez mais afetados pela mineração, construção de barragens e hidrelétricas, desastres envolvendo petróleo, diversos tipos de poluição, desmatamento e mudanças climáticas.
Esta preocupação com a disponibilidade de água potável tem prejudicado o consumo humano e já tinha sido expressa pelo Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si (2015). No nº 30, este documento denuncia a má qualidade da água servida aos mais pobres e destaca a perigosa tendência de se privatizar este recurso, tornando-o uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Com isso, várias cidades ampliam o sofrimento das pessoas mais pobres dificultando o acesso à água potável, ignorando um direito humano essencial, fundamental e universal.
Na sua Carta, Francisco alerta também que no atual contexto de crises climáticas o controle da água por grandes empresas pode se transformar numa das principais fontes de conflitos do século XXI. De fato, esta situação pode ser percebida em vários locais, onde grandes empresas se apropriam da água, usando tal controle como arma para submeter população inteiras. Motivadas pela ânsia do lucro e visando acumular riquezas, as grandes empresas de abastecimento de água e esgotamento sanitário procuram cada vez mais se apropriar e controlar os recurso hídricos dos territórios, transformando tais serviços em mercadorias.
O Relator Especial da ONU para os Direitos Humanos à Água e Saneamento, o professor espanhol Pedro Arojo-Agudo também esteve na Cumbre da Água, manifestando o seu apoio à iniciativa do Vicariato del Agua (Iquitos/Peru) e celebrando o envolvimento eclesial e de tantos movimentos sociais na luta pela água no território amazônico. Pedro assumiu esta responsabilidade frente a Organização das Nações Unidas em 2020, depois do mandato do brasileiro Léo Heller, que é professor, pesquisador e membro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS).
Na sua fala, o professor Pedro proferiu que a situação da Amazônia lembra a realidade de outras regiões do mundo cuja população que sofre com a falta de água potável geralmente está situada próxima a grandes reservatórios hídricos. Tal sofrimento, portanto, não é causado pela falta de água doce, mas é resultado da ação de interesses econômicos, que promovem o controle, a poluição hídrica e a degradação ambiental, reduzindo a disponibilidade de água para os mais pobres.
O Relator também identificou dois grandes desafios para a humanidade afetada pela crise hídrica. Primeiro, promover uma governança democrática da água que deve ser vista como um bem comum e não como uma mercadoria para ser negociada; Segundo, é necessário fazer as pazes com os rios, com os ecossistemas aquáticos, com a natureza. Assim, ele resgatou e reforçou as culturas indígenas locais segundo as quais não somos superiores à natureza, mas somos partes dela. Dessa forma, Pedro Arojo destaca a incoerência do paradigma de dominação da natureza, que promove a devastação, a doença e a morte.
Arojo também lembrou que a convivência respeitosa com o meio ambiente é uma grande geradora de saúde, uma vez que a vida saudável só pode ser alcançada dentro de uma relação adequada e harmoniosa com o entorno. Isso possibilitou o pesquisador questionar a lógica mercantil contemporânea, afirmando que os serviços oferecidos pela água e pela natureza não podem ser trocados por dinheiro, como a saúde da família, a dignidade e a vida. Diante disso, o critério mais adequado para configurar a governança da água não deve ser o retorno econômico, mas um princípio ético que orienta para uma relação de respeito e cuidado.
Iquitos e Manaus possuem algumas características comuns, como a proximidade do Rio Amazonas, a estreita relação com a economia da borracha (no final do século XIX) e a precariedade ou ausência dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Embora Manaus seja significativamente mais populosa e mais rica do que Iquitos, não oferece um bom exemplo na gestão dos recursos hídricos. Como Iquitos, Manaus é largamente afetada pela poluição dos rios e igarapés. Os interesses econômicos comandam a vida na cidade, anulando as vozes e os clamores da população. A política é sequestrada pelo corporativismo empresarial, impedindo uma governança ética, justa e sustentável.
Além disso, na capital amazonense o sistema de abastecimento de água e esgotamento sanitário é democraticamente deficitário e pauta-se pelo retorno econômico, excluindo milhares de famílias do usufruto de direitos essenciais. Este cenário não favorece a formação de uma cidade justa, saudável e sustentável, uma vez que a presença normalizada de esgoto a céu aberto impossibilita a existência de um ambiente adequado para uma vida saudável. A cidade é marcada por uma população vulnerável e rios (natureza) tratados como inimigos.
As denúncias expostas na Cumbre Amazónica del Agua refletem a realidade de Manaus, conectando-a tragicamente com grande parte das cidades amazônicas. O evento, no entanto, é um sinal de esperança, pois a presença de tantas lideranças empenhadas e organizadas sugere a emergência de um movimento pan-amazônico em defesa dos direitos humanos à água e em prol do cuidado da casa comum.
Leia mais
- Repúdio à privatização da água e esgoto em Manaus. Artigo de Sandoval Alves Rocha
- Água e saneamento em discussão. Artigo de Sandoval Alves Rocha
- Manaus: a qualidade de vida revela a qualidade dos políticos. Artigo de Sandoval Alves Rocha
- Manaus: todas as formas de vida importam, mas quem se importa? Artigo de Sandoval Alves Rocha
- A guerra pela água em Manaus. Artigo de Sandoval Alves Rocha
- Seca, fogo, mineração e destruição. Artigo de Sandoval Alves Rocha
- Povos indígenas mostram uma saída para a humanidade. Artigo de Sandoval Alves Rocha
- A Amazônia saqueada. Artigo de Sandoval Alves Rocha
- Água é vida, não é mercadoria! Artigo de Sandoval Alves Rocha
- Privatização do saneamento de Manaus. 24 anos de sofrimento. Artigo de Sandoval Alves Rocha
- Manaus anseia por um saneamento democratizado. Artigo de Sandoval Alves Rocha
- Águas de Manaus suga dos pobres até a última moeda. Artigo de Sandoval Alves Rocha
- Extração de potássio ameaça águas e territórios amazônicos. Artigo de Sandoval Alves Rocha
- Os desastres ambientais desmascaram o capitalismo. Artigo de Sandoval Alves Rocha
- Alto lá, esta terra tem dono: atrocidades do país da COP30. Artigo de Gabriel Vilardi
- Como operam os barões do saneamento básico?
- Falta de saneamento básico causou mais de 273 mil internações em 2019
- Mais de metade da população global sem acesso à água potável
- Escassez de água potável aumentará nas próximas décadas
- A escassez de água potável pode desencadear guerras e ameaçar a vida. Artigo de Leonardo Boff