“O projeto bolsonarista, como o de um Milei na Argentina, é a falência, o endividamento, a subordinação e a subalternidade internacional”, adverte o sociólogo
Embora se autodenomine patriota, a extrema-direita brasileira demonstra uma idolatria pelos Estados Unidos. Curvam-se ao imperador, sacrificando a soberania nacional – o princípio fundamental do patriotismo – em favor de interesses próprios e de um movimento político global.
Na avaliação do sociólogo Ricardo Costa de Oliveira, esse entreguismo pode ser explicado porque, na visão dos militantes desse campo político, “só existe o centro de poder nos Estados Unidos, dívidas e posição dependente e associada aos grandes interesses das oligarquias burguesas de lá, das quais Trump é um membro e representante junto com os maiores bilionários e ‘big techs’, sempre politicamente aliados”. Segundo indica, “a soberania nacional brasileira é um entrave aos grandes interesses destes grupos capitalistas internacionais predadores”.
Forjada por uma “cultura golpista” e por um ideário que bebe na fonte do neoliberalismo, a extrema-direita no Brasil tem como projeto de país a “concentração de renda para poucos”, analisa Oliveira na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “O objetivo [da direita] sempre foi a manutenção das desigualdades sociais, da exclusão social, uma cultura das armas e da violência”, complementa.
Pesquisador da genealogia das famílias no país, o professor titular de sociologia da Universidade Federal do Paraná – UFPR tem analisado o histórico das famílias que estão no poder no país. Conforme assinala, por trás dos cargos dos altos escalões de todas as esferas do governo estão as castas brasileiras. “Muitos cargos de poder no Brasil passam pela hereditariedade de seus ocupantes”, aponta.
Associados a estes núcleos familiares de nepotismo e riqueza, está a extrema-direita, que “possui seu núcleo duro na classe dominante tradicional ao lado de novos ‘animadores ideológicos’, gente nova procedente das mídias, de programas de rádio e TV, influenciadores e novos pastores evangélicos, os antigos e os novos donos do poder e das riquezas, os tradicionais e os emergentes”.
Para trazer um exemplo de como essas famílias continuam operando para se perpetuar no poder, Ricardo de Oliveira usa o exemplo do Orçamento Secreto. Segundo ele, trata-se de “um orçamento de famílias políticas e de redes de nepotismo, famílias políticas com membros em Brasília, nas prefeituras, governos estaduais, estatais como a Codevasf e outras, um parente ‘carimba’ recursos para as bases políticas e eleitorais da família, com parentes e associados nos esquemas e lucros eleitorais”.
Ricardo Costa de Oliveira (Foto: Reprodução | YouTube)
Ricardo Costa de Oliveira é professor titular e decano do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestrado em Planejamento Urbano pela University College of London e doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp. Autor de 11 livros, atualmente pesquisa a genealogia genética brasileira em um projeto internacional e atua como coordenador do Núcleo de Estudos Paranaenses (NEP-UFPR).
IHU – Como se caracteriza o imaginário da extrema-direita bolsonarista em relação ao Brasil e à política?
Rardo Costa de Oliveira – O bolsonarismo é um movimento político centrado em Jair Bolsonaro e na família Bolsonaro, uma típica rede de nepotismo com filhos, mulheres, ex-mulheres, assessores, militares, milicianos, pastores, empresários e influenciadores de extrema-direita. O bolsonarismo sempre forjou um imaginário de direita e foi mais um movimento com ideologias reunidas do que um partido político, sempre com dificuldades de institucionalização, pelo seu caráter familiar, no qual o nepotismo da família Bolsonaro é o comando e a maior força agregadora.
A figura de Jair Bolsonaro reuniu todos os valores excludentes, preconceitos, visões de mundo superficiais e ideologias de direita ao seu redor. A grande diferença em relação à geração anterior, da ditadura militar, é o seu entreguismo privatizador e neoliberal, o falso nacionalismo de aparência, só usado como elemento de mobilização, sem expressão nacionalizadora efetiva na economia, educação ou na cultura.
Tarcísio enganador viveu a vida inteira no Estado, foi educado, ganhou cargos e se beneficiou na grande mídia e no bolsonarismo para projetá-lo artificialmente no Estado. Pela primeira vez operações desmascaram a corrupção em São Paulo, bilhões sonegados via PCC e Ultrafarma+
— Ricardo Costa de Oliveira (@Ricardo_Cd_Oliv) September 4, 2025
IHU – Existe algum projeto de país de direita brasileira? Que projeto é esse? Se não há, por que esse espectro político tem adesão de mais ou menos um terço da população?
Ricardo Costa de Oliveira – A direita sempre teve o projeto de poder da concentração de renda para poucos, não um projeto de país para todos. O objetivo sempre foi a manutenção das desigualdades sociais, da exclusão social, uma cultura das armas e da violência, como se o Brasil já não as tivesse em grau elevado.
O projeto do bolsonarismo encontrou seu "primeiro-ministro" na economia na figura de um Paulo Guedes, um conhecido economista neoliberal associado ao capital financeiro pelo seu casamento com uma família de banqueiros. A adesão de parte da população sempre foi uma adesão cultural e ressentida aos valores do bolsonarismo por parte da população mais conservadora e reacionária, com formas armamentistas, tipos de racismo, misoginia, ataques às mulheres, negros, LGBTQIAP+, bem como preconceitos contra estrangeiros e migrantes de países, classes sociais e regiões pobres e vulneráveis.
A extrema-direita é historicamente um projeto de ódio e exclusão. O bolsonarismo se caracteriza pela falta de investimentos em educação, ciência, tecnologia e cultura.
IHU – Como os bolsonaristas e neoliberais atuam em relação à soberania nacional? Que dissonâncias há entre o discurso e a prática?
Ricardo Costa de Oliveira – O bolsonarismo no conjunto da economia implementou desnacionalizações e privatizações, como nas refinarias e sistemas da Petrobras, tentaram entregar empresas como a Embraer e a subordinação à direita estadunidense, o papel de capachos subalternos no trumpismo. A derrota de Trump nas eleições de 2020 teve um impacto nas posições da internacional de extrema-direita, da mesma maneira que o seu retorno nas eleições de 2024.
O projeto bolsonarista, como o de um Javier Milei na Argentina, é a falência, o endividamento, a subordinação e subalternidade internacional aos Estados Unidos, Israel e ao Fundo Monetário Internacional – FMI, por exemplo, um projeto de vassalagem semicolonial quase do tipo de um Porto Rico. Para eles só existe o centro de poder nos Estados Unidos, dívidas e posição dependente e associada aos grandes interesses das oligarquias burguesas de lá, das quais Trump é um membro e representante junto com os maiores bilionários e "big techs", sempre politicamente aliados, como verificamos. A soberania nacional brasileira é um entrave aos grandes interesses destes grupos capitalistas internacionais predadores.
IHU – Após o 11 de setembro brasileiro, com a condenação dos artífices da tentativa de golpe em 2022, o senhor vislumbra a possibilidade de um fim de um ciclo da direita brasileira?
Ricardo Costa de Oliveira – Houve uma derrota histórica da direita nas eleições presidenciais de 2022 no Brasil. Lula e as forças progressistas construíram uma frente ampla democrática, antifascista e antigolpista às ameaças de setores radicais do bolsonarismo, os que iniciaram o processo de golpe fracassado no fim de 2022 e culminaram no ataque do dia 08-01-2023. Além de vários atos de violência em Brasília, como ameaças terroristas de explosões no plano piloto, no aeroporto, ataques contra torres de transmissão elétrica pelo país, todo um conjunto de ações golpistas e criminosas, com logística e estrutura militar. [Esses atos e atores] foram denunciados e condenados no julgamento histórico do dia 11 de setembro, uma nova data a ser comemorada ne defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito.
O que não tivemos na derrota da ditadura nos anos 1980 aconteceu agora, em 2025: Bolsonaro, que idolatrava a tortura da ditadura, condenado com alguns dos seus oficias generais, militares, policiais, ex-ministros e ex-assessores.
IHU – O senhor pesquisa as relações entre estruturas de parentesco e poder político no Brasil. Poderia explicar como funcionam essas “redes de nepotismo” no país, o que são e onde atuam?
Ricardo Costa de Oliveira – A classe dominante tradicional brasileira é uma classe social histórica, com um núcleo duro de continuidade familiar ao longo de muitas gerações no Estado. Podemos identificá-los empiricamente pelo quem é quem familiar e genealógico de muitos sobrenomes, muitas continuidades em todas as regiões brasileiras, principalmente nas mais antigas vindas da República Velha, do Império e do Período Colonial. Para tanto, basta analisarmos as biografias, famílias políticas e genealogias dos detentores dos poderes no Executivo, Legislativo, Judiciário, tribunais de contas, cartórios, militares, empresários e nas mídias.
Muitas estruturas de poder no Brasil também são estruturas de parentesco, a estrutura social, em boa parte, é uma estrutura genealógica. Pesquisamos os nomes e as famílias em todo Brasil, grande municípios e pequenos, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, antigas e novas cidades e instituições são atravessadas por famílias políticas, genealogias e nepotismos.
Partidos políticos são muito lucrativos e formam uma poderosa formação familiar de nepotismo, como o UNIÂO BRASIL e antes o PSL ! pic.twitter.com/Z4uJTt9Yvu
— Ricardo Costa de Oliveira (@Ricardo_Cd_Oliv) September 18, 2025
IHU – Quais as consequências que essa “casta” provoca na democracia e no funcionamento do Estado? Essas redes fortalecem a desigualdade de que maneira?
Ricardo Costa de Oliveira – A herança escravista no Brasil – fomos a maior e a mais duradoura sociedade escravista no mundo moderno – é um dos fatos sociais que condiciona a concentração de terras, de patrimônios, rendas e escolaridades. Uma maioria trabalhadora excluída e com os piores indicadores sociais têm origens na escravidão e destribalização, na falta de cidadania, de educação, de saúde, de investimentos profissionais e oportunidades para os mais pobres.
O neoliberalismo, o capitalismo contemporâneo, rouba direitos sociais, trabalhistas e aposentadorias. Enquanto isso, o número e a concentração de riquezas no topo do modo de produção capitalista, nos mais ricos bilionários e milionários, crescem em escala exponencial, com o roubo social das rendas e direitos da maioria trabalhadora empobrecida e com baixos salários.
IHU – É possível identificar se os atores de extrema-direita brasileiras estão ligados a essas redes?
Ricardo Costa de Oliveira – Sim, a extrema-direita possui seu núcleo duro na classe dominante tradicional ao lado de novos "animadores ideológicos", gente nova procedente das mídias, de programas de rádio e TV, influenciadores e novos pastores evangélicos, os antigos e os novos donos do poder e das riquezas, os tradicionais e os emergentes. Sempre precisamos de listas, como a dos bilionários, os chefes de poderes, o quem é quem com nomes e sobrenomes, histórias de vidas e trajetórias, para fins de pesquisas genealógicas detalhadas revelando como chegam lá e como se reproduzem familiarmente na economia e no Estado.
IHU – Com os planos bolsonaristas, chegamos à 14ª tentativa de golpe no Brasil. Como a cultura golpista forjou certos setores da sociedade e qual impacto nas relações sociais e de classe?
Ricardo Costa de Oliveira – A cultura golpista forjou a extrema-direita militar e ativistas radicalizados. Os que tentaram o golpe em 2022 e 2023 conspiraram em todos os lugares, acamparam nas frentes dos quartéis, nos parlamentos, nas redes sociais, fizeram movimentos antidemocráticos e foram novamente derrotados. Lembremos que também tentaram golpes e bombas contra a abertura [democrática], como no Riocentro e ataques contra a OAB, bancas de jornais, naquela conjuntura no fim da ditadura militar derrotada.
Ficaram na impunidade [militares da ditadura] e somente agora houve o fim da impunidade para elementos extremistas nas forças armadas e policiais golpistas, devidamente julgados e condenados pelo processo legal, com muitas delações e documentos dos próprios golpistas. Faltou punir alguns dos empresários que financiaram muitas das atividades golpistas, sempre com o apoio dos setores da classe dominante mais reacionários, entre eles, muitos ruralistas.
IHU – De que forma a genealogia das famílias pode explicar o centrão?
Ricardo Costa de Oliveira – A genealogia é fundamental para entendermos o poder em uma sociedade de classes. A pesquisa da história familiar revela as formas de reprodução social das elites da classe dominante, como os novos poderosos sempre são preparados e beneficiados por formas de nepotismo, muito dinheiro e recursos das gerações passadas sempre no Estado e na política. Não existem grandes empresários sem grandes conexões políticas no Estado e nas negociatas políticas.
O centrão é a base política fisiológica e, muitas vezes, corrupta no Congresso, presente em todas as regiões brasileiras. Boa parte do centrão são famílias políticas, e quem é novo ou emergente forma uma nova família política, como a própria família de Jair Bolsonaro, com as mesmas práticas denunciadas há muito tempo, como rachadinhas, desvios e sonegação.
Para entender o centrão é preciso usar o conceito de "rede de nepotismo", são famílias políticas operando orçamentos com parentes em diferentes cargos:
— Ricardo Costa de Oliveira (@Ricardo_Cd_Oliv) September 15, 2025
Elmar Nascimento, deputado federal (União).
Elmo Nascimento , irmão, prefeito de Campo Formoso (BA) +
https://t.co/rvgT94WOnI
IHU – O que é e como se dá a ideologia da família militar de direita?
Ricardo Costa de Oliveira – Da mesma maneira que todas as instituições, as pesquisas sobre as Forças Armadas revelaram forte endogamia e reprodução social e ideológica em famílias militares. Quase todos os ministros militares do governo Bolsonaro eram filhos e parentes de militares, muitos com as mesmas genealogias antigas na classe dominante tradicional, no senhoriato. Recomendo [a leitura do] nosso artigo "A Nobreza Armada" e artigos publicados na Revista NEP, Núcleo de Estudos Paranaenses.
Também os militares denunciados no golpe de 2022 apresentam elevado número de pais e membros de famílias militares. A cultura política autoritária e golpista continuou em vários grupos reativados com o bolsonarismo. A formação e educação democrática sempre precisam ser reforçadas para as novas gerações.
IHU – Qual a importância dos estudos sociológicos sobre família e poder na formação nacional?
Ricardo Costa de Oliveira – Só entendemos o poder no Brasil com o conceito de família política. Por exemplo, um tema atual é o orçamento secreto, um orçamento de famílias políticas e de redes de nepotismo, famílias políticas com membros em Brasília, nas prefeituras, governos estaduais, estatais como a Codevasf e outras, um parente "carimba" recursos para as bases políticas e eleitorais da família, com parentes e associados nos esquemas e lucros eleitorais. Todas as instituições políticas também devem ser estudadas pela epistemologia da Teoria do Nepotismo, que explica quem tende a ser eleito, quem tem mais dinheiro, quem controla fundos partidários, fundos eleitorais, quem ocupa as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado e as mesas diretoras. Muitos cargos de poder no Brasil passam pela hereditariedade de seus ocupantes.
IHU – Como o senhor avalia a aprovação, na Câmara, da PEC da Impunidade? Quais devem ser as consequências deste projeto?
Ricardo Costa de Oliveira – A PEC da Impunidade foi uma tentativa de blindagem de políticos e presidentes de partidos. Ela segue a lógica dos interesses das famílias políticas e redes de nepotismo do centrão, não só dos parlamentares, mas também dos presidentes e dirigentes de partidos políticos, muitos dos quais estão envolvidos em denúncias de vários tipos de crimes e esquemas de corrupção divulgados nos meios de comunicação.
Recentemente, tivemos denúncias de roubos na Previdência, no orçamento secreto e esquemas de quadrilhas, como o do Primeiro Comando da Capital – PCC, com fintechs, terminais portuários, postos de combustíveis, muitos policiais e políticos de direita sempre envolvidos. A privatização abre espaço para a corrupção e falta de fiscalização do Estado.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Ricardo Costa de Oliveira – Sempre pesquisamos e elaboramos novos materiais e livros sobre a Teoria do Nepotismo. Investigamos casos empíricos em todas as esferas políticas e estatais. As presidências, os ministros, deputados, senadores, conselheiros de tribunais de contas, diplomatas, magistrados, procuradores, militares, mídia, bilionários, empresários, dirigentes esportivos, intelectuais, existe toda uma cartografia genealógica do poder no Brasil a ser feita e atualizada de maneira constante, na esfera nacional, regional e local, em todos poderes e instituições, sempre com rigorosa base científica, genealógica e sociológica. Assim conhecemos melhor o nosso país.