A guerra não acabou. Artigo de Jean Marc von der Weid

Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil

22 Setembro 2025

A anistia aos golpistas ronda o Congresso, enquanto o governo navega em um olho de furacão. A calmaria é ilusória, e a tempestade que se aproxima pode redefinir os rumos da frágil democracia brasileira.

O artigo é de Jean Marc von der Weid, publicado por Outras Palavras, 21-09-2025.

Jean Marc von der Weid é um economista agrícola e ambientalista brasileiro. Foi presidente da UNE, entre 69/71. É fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA) e ex-membro do CONDRAF/MDA 2004/2016.

Eis o artigo.

1.

Dos quase dez anos de exílio na França, eu trouxe algumas lembranças idiomáticas. Uma delas é uma expressão muito usada na imprensa francesa, “politique politicienne”. Ela se refere às práticas parlamentares que interessam apenas a eleitos, senadores ou deputados. Em bom português, usaríamos a expressão, hoje pouco usada, mas muito presente no nosso Congresso, a politicagem.

Escrevo isso para justificar o adiamento de um artigo que estou elaborando sobre as COPs e em especial sobre o que esperar desta COP 30. A politicagem do Congresso ocupa o espaço político de forma absolutamente dominante já há algum tempo, mas neste ano de 2025 parece que não existem outros temas de interesse do povo brasileiro para serem tratados pelos que ele elegeu, em 2022.

Os PLs tratando de temas como segurança, distribuição dos encargos tributários, meio ambiente, educação, saúde e outros estão parados enquanto suas excelências discutem a anistia para os golpistas e a proteção dos próprios congressistas a atos do judiciário.

Não é um acaso este açodamento em buscar a intocabilidade dos congressistas e o perdão para os golpistas.

No primeiro ponto, lembremos que há mais de 80 deputados e senadores sendo investigados pela Polícia Federal (com muitos outros no radar), suspeitos de envolvimento em “malfeitos” na distribuição de recursos públicos pelas emendas ditas Pix.

No segundo ponto, os partidos da direita, do PL (extrema-direita) e do dito Centrão, (na verdade um Direitão), o MDB e o Novo (direita discreta) estão se movendo para votar a anistia aos golpistas condenados e por condenar, divergindo, mais por razões táticas (favorecer a família Bolsonaro ou o candidato in pectore da direita, Tarcísio de Freitas).

As consequências da politicagem podem ser muito graves para o futuro da democracia.

Se a blindagem dos congressistas passar não só eles ficarão intocáveis pela justiça, como estarão sossegados para continuar a usar gordos e crescentes recursos públicos para garantir a sua reeleição em todos os pleitos futuros.

Suas excelências podem assim se perpetuar no poder que vem usurpando, criando o que eu chamo de parlamentarismo bastardo, que se apropria do orçamento federal em proveito próprio, diminuindo a capacidade do executivo de agir em prol do desenvolvimento do país e do funcionamento das instituições de Estado voltadas para o bem estar do povo. É um golpe parlamentar explícito em prol de uma nova casta de parasitas e contra o país.

Se a anistia passar teremos algo ainda mais grave, a retomada da vergonhosa história do Brasil, que nunca puniu golpistas bem ou malsucedidos, abrindo caminho para novos golpes. Desde logo, uma anistia que permita um Bolsonaro candidato no ano que vem, traz consigo o risco, caso vença, de organizar melhor o golpe fracassado, sobretudo se o Congresso votar a lei (já preparada), permitindo expurgar o STF de ministros incômodos. Este é o script usado nas chamadas “democracias iliberais”, como a da Hungria, Venezuela e outras, onde o judiciário está sob controle.

Se a anistia votada não for a “ampla geral e irrestrita” desejada pelo bolsonarismo e (da boca para fora) pelo pré-candidato a presidente pelo Centrão (sempre buscando herdar os votos de Bolsonaro), Tarcísio, ainda haveria um embate crucial com o STF que já vem apontando, pela maioria de seus membros, a inconstitucionalidade desta medida.

2.

Este novo impasse entre o congresso e o STF vai manter o país amarrado na interminável politicagem. A direita sabe que não conseguirá dobrar a corte suprema sem uma enorme pressão política e vai tentar criar uma onda insustentável. E quem poderá assumir este papel e por que razões?

Tudo vai depender do que vai fazer o protoditador Donald Trump e qual a amplitude das medidas de retaliação prometidas por Marco Rúbio para a próxima semana. Ameaças rosnadas por uns ou outros trumpistas, desde a condenação de Jair Bolsonaro, incluem dobrar as taxas às exportações brasileiras, voltar a taxar os produtos retirados da pauta, suspender as operações de bancos brasileiros, atuando nos EUA que não cumprirem as medidas da lei Magnitsky, suspender o uso dos satélites americanos acessados por brasileiros (inclusive as Forças Armadas).

Como vão reagir as empresas brasileiras prejudicadas por essas medidas? Até agora tanto o agronegócio como a Faria Lima, os principais prejudicados e ameaçados, tem adotado uma postura discreta, sem endossar o grito inicial dos mais açodados, dentre eles responsabilizando o governo Lula pelo tarifaço.

Esta prudência tem duas razões: a primeira é a decisão do governo de ajudar os prejudicados com recursos públicos e a segunda era a ilusão de que conseguiriam convencer a administração Trump (diretamente e através de seus parceiros entre as empresas americanas importadoras) do interesse dos EUA em retirá-los da lista dos tarifados. As delegações de empresários brasileiros aos Estados Unidos deram com os burros n’água, ouvindo de seus interlocutores a recomendação de pressionarem o STF para livrar Jair Bolsonaro das malhas da lei.

Um recrudescimento das medidas econômicas pode levar, e provavelmente levará, os nossos empresários a fazer o que lhes foi recomendado e a pressionar o STF a capitular.

Uma campanha pela anistia, que vai durar meses e meses, levará o bolsonarismo a mobilizar suas bases em manifestações públicas tão frequentes e amplas quanto for possível. Por outro lado, podemos esperar um infernal bombardeio das redes sociais na mesma direção, com todo o festival de fake news de uso corrente.

A postura da grande mídia, que tem sido consistentemente contrária à anistia e pela condenação dos golpistas também pode se alterar, quando seus pares do campo empresarial se posicionarem fortemente a favor.

Finalmente, não se pode prever como vai reagir a opinião pública a este bombardeio de manifestações de todo tipo a favor da anistia. As pesquisas de opinião dão, até agora, um placar contra a anistia a Jair Bolsonaro de 41%, com 36% a favor, 10% defendem uma anistia apenas para os condenados do badernaço de 8 de janeiro de 2023 (Quaest, 16/9).

São apenas 51% os que estão contra a anistia de Bolsonaro e seus colegas golpistas e ainda temos 13% que não tem posição. Embora seja a maioria, ela é estreita e não dá para festejar. Esta maioria pode mudar e pressionar o voto do STF.

Como já escrevi em outro artigo, o STF já alterou posições aparentemente consolidadas de acordo com as mudanças do clima político e pode voltar a fazê-lo, em nome da “pacificação” do país.

3.

Enquanto isso, o governo Lula está no olho do furacão, como escrevi em artigo postado no site A Terra é Redonda. Para quem não sabe, o chamado olho do furacão é um espaço de calmaria cercado pela brutalidade das forças da natureza. Ele está longe de ser um lugar seguro porque, mais cedo ou mais tarde, os ventos e ondas se deslocam e o atingem.

Até agora Lula, o governo, o PT e a esquerda tem se comportado como se a ameaça do furacão não pudesse atingi-los. Muitos comemoraram a ofensiva trumpista como uma benção por ter dado a Lula a oportunidade de mostrar uma postura patriótica frente ao inacreditável comportamento da família Bolsonaro e de seus simpatizantes, apoiando Donald Trump contra o Brasil, vide a exibição da maior bandeira americana já apresentada em todo o mundo, decorando a manifestação do Sete de Setembro na Paulista.

Tudo isso castigou o bolsonarismo e tirou Lula das cordas onde estava encurralado desde o início do ano. Mas o governo está paralisado e a reboque da politicagem no Congresso, sem forças para barrar a ofensiva pró anistia e confiando na resistência do STF.

E a esquerda? Continua vigendo o padrão de desmobilização crescente desde os 13,5 anos de governos populares e a perda da iniciativa política ocorrida a partir das jornadas de 2013. Dilma Rousseff foi impichada e Lula preso sem que as massas reagissem nas ruas. A indignação frente aos desmandos sem fim do governo de Jair Bolsonaro provocou uma retomada modesta das manifestações da esquerda, sempre superada nas ruas pelos bolsonaristas e mais ainda nas redes sociais.

Quem levou milhões para manifestações foi Lula na campanha eleitoral e esta capacidade de liderança foi essencial para garantir sua vitória, muito embora só tenha ganho (no fotochart) pela adesão de uma parcela do centro democrático e republicano à sua candidatura, somando preciosos 2% que fizeram a diferença.

O PT e a esquerda fizeram uma leitura errada das eleições e acharam que a vitória tinha sido deles, embora o voto de esquerda, todos somados, tenha ficado em 30% (23% no PT e 7% no PSOL, PCdoB, PSB e PDT), medidos pelo número de sufrágios recebidos pelos deputados federais dos partidos da coligação. Os outros 18% dos votos de Lula no primeiro turno vieram de gente que votou nele e em deputados de partidos do centro ou da direita.

Durante este governo, a esquerda segue ausente das ruas e minoritária nas redes, embora tenha melhorado a sua presença nestas últimas. O Sete de Setembro passado refletiu a continuidade deste marasmo, com meros 20 mil manifestantes em todo o país contra seis vezes mais bolsonaristas. Não dá para apostar na capacidade de mobilização da esquerda para barrar a provável onda pela anistia.

4.

O governo tenta, desde a posse de Lula, recuperar a popularidade do presidente, que deixou o governo em 2011, com mais ou menos 81% de aprovação. As políticas adotadas para chegar a este objetivo foram um repeteco das aplicadas nos tempos dos governos populares, Bolsa Família turbinado, Minha Casa Minha Vida, Luz Para Todos, aumentos reais do salário-mínimo, retomada do desenvolvimento com emprego, entre muitas outras repaginadas ou simplesmente retomadas, como o Mais Médicos.

O impacto destes repetecos não foi o esperado, embora tenha sido positivo no que concerne o emprego e nos números (modestos, mas positivos) do PIB e na melhoria da renda. Ocorre que a inflação dos alimentos corroeu a renda e, os empregos com carteira assinada, embora tenham alcançado um recorde histórico, continuam representando menos de 40% do total dos empregados.

Por outro lado, tanto o SUS como o ensino continuaram sofrendo com o sucateamento provocado durante o governo Bolsonaro. E a violência virou um problema ainda maior que no passado, tornando-se uma prioridade (não respondida) na opinião dos consultados nas pesquisas. As novas medidas para melhorar a renda dos mais pobres e dos remediados, tais como a lei que isenta quem receber menos de 5 mil reais por mês de pagar imposto de renda, estão dormindo no Congresso e sem prazo para serem votadas. Idem idem no que se refere à segurança.

Lula e seu governo não tem um projeto de reforma da economia para introduzir outro padrão de desenvolvimento, sustentável e inclusivo. Segue apostando em aumentar o PIB dando apoio a setores como o automotor, de exploração de combustíveis fósseis e o agronegócio. Tudo isso perpetua um padrão de desenvolvimento inteiramente divorciado das necessidades do enfrentamento das questões mais importantes do presente e do futuro: o aquecimento global, a destruição da biodiversidade, o esgotamento dos recursos naturais, entre outras.

Para completar, vou dar um spoiler do próximo artigo: o Lula que se pretende líder de um movimento internacional ambientalista vai ser posto em cheque na próxima COP, em Belém. Acelerar o desenvolvimento na direção do passado não o credencia para este papel e, se os representantes dos governos na COP 30 não vão se incomodar, já que tem ainda mais culpa no cartório que Lula, os ambientalistas e cientistas de todo o mundo não se iludem, sobretudo os brasileiros.

Não dá para conciliar este pretendido papel com a decisão de ampliar a exploração de petróleo, inclusive em áreas sensíveis do ponto de vista ambiental, favorecer a indústria automotora e pedir ingresso na OPEP, enquanto o agronegócio desmata e queima Amazônia, Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica e Caatinga como se não houvesse um amanhã (talvez eles saibam que não vai haver um amanhã para o planeta e estejam explorando tudo ao máximo enquanto podem).

E este síndrome do mais do mesmo (com menor impacto) vai fazer da eleição do ano que vem a mais difícil da história política de Lula. Resta o discurso já usado nas últimas eleições: sem Lula, Bolsonaro volta, ou um seu apaniguado. Cruz credo!

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