09 Setembro 2025
"Anistia como amnésia é a naturalização do esquecimento. Sob o manto de “pacificação nacional” pretende apenas adiar conflitos e manter privilégios intocados. Sem memória não há reconciliação possível", escreve Frei Betto, escritor, autor de “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco), entre outros livros.
Eis o artigo.
Em tempos de crises políticas recorrentes, convém revisitar certos conceitos que, de tão manuseados, perdem o brilho original. Um deles é a anistia, precioso instrumento jurídico-político que, no Brasil, conseguiu realizar o prodígio de ser interpretado como uma espécie de passe de mágica para apagar responsabilidades penais.
Anistia não é amnésia. Não é varinha de condão que transforma torturadores em heróis nacionais nem converte atentados contra a democracia em episódios folclóricos para serem narrados entre risadas em churrascos de caserna.
A proposital confusão entre anistia e amnésia talvez seja fruto da semelhança fonética. No Brasil, sempre houve quem desejasse transformar a primeira na segunda. Para Norberto Bobbio, “anistia é um instituto de pacificação, mas não de justiça. O que ela apaga, o direito não vê; mas a memória social permanece.” Nelson Mandela, ao depor na Comissão da Verdade e Reconciliação na África do Sul, em 1995, frisou que “a anistia só tem sentido quando acompanhada da verdade. Sem verdade, não há reconciliação; há apenas esquecimento imposto.” No caso do Brasil, espero que a verdade não deixe em liberdade os golpistas de 2023.
A ditadura tratou a anistia como se fosse amnésia coletiva: tortura, censura, sequestros, assassinatos e desaparecimentos, se tentou varrer tudo para debaixo do tapete, como demonstra a peça “Lady Tempestade”, de Silvia Gomez, estrelada por Andréa Beltrão. Se ninguém lembrar, ninguém foi culpado, pretendiam os algozes do regime militar.
Nossa história republicana é generosa em anistias, sempre concedidas com aquele ar magnânimo de quem “libera geral” após um período de autoritarismo ou convulsão. A anistia de 1892 beneficiou os revoltosos da República da Espada; a de 1934 foi concedida a opositores da Revolução de 1930; a de 1945, após o Estado Novo, abriu caminho para eleições democráticas; a de 1961 tentou estancar a crise desencadeada com a renúncia de Jânio à presidência da República; e a de 1979 - aberração jurídica que tornou imunes e impunes os carrascos da ditadura -, foi o ovo da serpente que, chocado em 8 de janeiro de 2023, gorou.
Em cada episódio, a anistia funcionou como válvula de escape para permitir recompor o jogo político. Mas sempre marcada por um pacto tácito de esquecimento, o que condena o Brasil a repetir os mesmos erros.
A anistia promulgada em 28 de agosto de 1979 foi apresentada como gesto de reconciliação. Mas reconciliação com quem? O texto da lei equipara opositores aos sucessivos governos militares - presos, exilados, perseguidos, desaparecidos, assassinados - aos agentes do próprio Estado que haviam torturado, executado e ocultado cadáveres. A isso se deu o nome pomposo de “anistia recíproca”.
Ora, não se pode colocar na mesma balança quem resistiu à ditadura e quem se beneficiou dela para cometer crimes de lesa-humanidade. Em termos acadêmicos, trata-se de um caso clássico de falsa simetria. Em termos mais coloquiais, é como se o juiz de futebol expulsasse tanto o jogador agredido quanto o agressor por “conflito mútuo”.
As consequências têm sido devastadoras, pois até hoje o Brasil é o único país da América Latina que não julgou criminalmente torturadores do período ditatorial. Argentina, Chile, Uruguai e Peru separaram o joio do trigo. Nosso país segue refém de uma anistia que se travestiu de esquecimento. É o que deputados federais, senadores da oposição e adeptos do bolsonarismo querem que se repita, para que tudo fique como dantes no quartel de Abrantes.
É um sinal de amadurecimento de nossa democracia militares estarem sendo, pela primeira vez em 135 anos de República, julgados por um tribunal civil por tramar um golpe de Estado. Intriga juristas estrangeiros a persistente permanência dos tribunais militares no Brasil. Criados com a justificativa de garantir disciplina interna, funcionam, na prática, como uma espécie de sindicato armado revestido de toga.
Se todos são iguais perante a lei - princípio basilar do Estado de Direito -, por que um militar acusado de crime deve ser julgado por uma corte composta por colegas de farda? A resposta é óbvia, para proteger o “espírito de corpo”.
Na prática, os tribunais militares operam como zonas de conforto jurídico, nas quais a imparcialidade cede lugar à cumplicidade. Não por acaso, a maioria esmagadora dos militares denunciados por crimes acaba absolvida. Como se o uniforme conferisse não apenas autoridade, mas também imunidade. O que para alguns parece coincidência estatística, para outros é apenas a confirmação de que no Brasil farda funciona como espécie de capa de invisibilidade jurídica.
Tentativa de golpe de Estado é crime gravíssimo. Não se trata de “ato patriótico”, nem “manifestação cívica”. É um atentado frontal contra a ordem constitucional, passível de punição em qualquer democracia séria. No entanto, em terras brasileiras, parece que ainda há quem encare tais episódios como mal-entendidos históricos. Tentar derrubar um governo democraticamente eleito é um crime contra o estado de direito, uma afronta à Constituição e uma colossal ofensa à liberdade de escolha dos eleitores.
Anistia como amnésia é a naturalização do esquecimento. Sob o manto de “pacificação nacional” pretende apenas adiar conflitos e manter privilégios intocados. Sem memória não há reconciliação possível. A verdadeira anistia só pode ocorrer quando acompanhada de verdade, justiça e responsabilização. Do contrário, não passa de amnésia seletiva, essa patologia nacional que nos condena a tropeçar, sempre de novo, nas mesmas pedras da história.
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