21 Julho 2025
"Para que desse conflito possa surgir uma conjuntura mais favorável para a democracia e as relações internacionais justas, a desinformação e os discursos de ódios precisam ser enfrentados com firmeza. Do contrário, as narrativas falaciosas seguirão nas redes sociais causando desestabilidade para a higidez do Estado Constitucional. Com esse fim, a bancada ruralista será chamada a assumir posição e apoiar a inadiável regulamentação das big techs, travada no Congresso pelos interesses da extrema-direita. Mas nada disso será suficiente se o agronegócio continuar se comportando como ilógico inimigo do meio ambiente e dos povos originários".
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“O capitalismo, no seu período de florescimento, via nas colônias uma fonte de matérias-primas que, manufaturadas, podiam ser escoadas no mercado europeu”, observa Frantz Fanon. Mas “após uma fase de acumulação de capital, hoje ele modificou sua concepção da rentabilidade de um negócio”, continua o autor de Os Condenados da Terra. Quer dizer “as colônias se tornaram um mercado”, ou seja, “a população colonial é uma clientela que compra” (Fanon, 2022, p. 61). Para o presidente Trump, o Brasil não passa de um entreposto anexo dos Estados Unidos, pronto a obedecer quando ameaçado autoritariamente.
De xerife do mundo à tresloucada potência em franco declínio, a Terra do Tio Sam se depara com a perda da até então onipotente hegemonia econômico-militar, surgida após a Segunda Guerra Mundial e consolidada com a derrocada da União Soviética. Como se não bastasse ou muito provavelmente em razão dessa decadência, a “América” é governada por um magnata de uma arrogância que parece não ter fim nem limite.
Aquele que conspirou contra o Estado Democrático de Direito e insuflou a invasão do Capitólio de 2021, resolveu impor tarifas abusivas contra o Brasil. Trata-se de decisão absolutamente ilógica na perspectiva do comércio internacional, uma vez que os EUA são superavitários na balança comercial. Na sua justificativa, Trump acusa o país de perseguir o ex-presidente Bolsonaro, bem como atentar contra a liberdade de expressão nas redes sociais. Duas falácias descabidas e risíveis de tão absurdas e desconectadas da realidade, típicas da racionalidade destes tempos, como aponta Rubens Casara:
“A racionalidade neoliberal – que transforma tudo e todos em objetos negociáveis e só se preocupa com o lucro e com a acumulação do capital –, além de elevar o egoísmo à condição de virtude, produz um fenômeno: a dessimbolização (o desaparecimento progressivo dos valores e dos limites que condicionavam a civilização). A partir da diminuição de importância tanto da dignidade humana quanto de valores como a ‘verdade’ e a ‘liberdade’ (que cada vez mais passaram a ser tratados como se fossem ‘mercadorias)” (Casara, 2024, p. 74).
Apesar das reiteradas ameaças antidemocráticas dos últimos anos, com o aumento vertiginoso dos discursos de ódio e da desinformação, o Estado Constitucional brasileiro vem resistindo. Isso graças a um Poder Judiciário independente e ciente de suas competências impostas pela Carta de 1988. Deve-se reconhecer especialmente o fundamental papel desempenhado pela Suprema Corte na proteção dos princípios democráticos no país, nos estritos termos estipulados pela Constituição Federal.
Já o Congresso parece ter piorado, na última legislatura. Capturado por interesses nada republicanos como a briga por emendas impositivas, o aumento do número de deputados e os assombrosos projetos antiambientais, age contrariamente à maior justiça tributária em um país tão desigual como o Brasil. Além do mais, está preocupado em medir forças com o Supremo Tribunal Federal e o Poder Executivo, resvalando sucessivamente em chantagens e extrapolações inconstitucionais de suas competências.
Por sua vez, o grupo que perdeu as eleições presidenciais em 2022 continua insistindo em uma retórica perigosa, que ameaças as instituições do país. Desde o fim do governo anterior se tenta aprovar no Parlamento uma absurda anistia aos crimes cometidos contra o Estado Democrático de Direito. Apesar da pressão dos bolsonaristas aliada a alguns setores da bancada ruralista, a narrativa de perseguição política não triunfou. Mesmo que tal enredo seja inteiramente inverídico e distorcido, essa tática vem sendo usada há algum tempo:
“No Brasil, para que a eleição de Jair Bolsonaro se tornasse possível, a verdade perdeu importância diante das certezas delirantes dos seus eleitores. Pense-se, por exemplo, nos ganhos sociais de um governo que podem ser ignorados a partir da certeza da ‘ameaça comunista’. Ou nos discursos de ódio que são revelados diante da certeza de que ‘não passavam de uma brincadeira’. [...] O estilo paranoico favorecido pelo processo de subjetivação neoliberal leva, por sua vez, a uma atuação a partir de uma certeza que não admite contraste ou contestação: para ele, admitir a simples possibilidade de estar errado já significaria uma renúncia ao gozo, o que seria inadmissível” (Casara, 2024, p. 77).
Se já não fosse suficientemente insana a paranoia impulsionada por muitos políticos e influenciadores digitais do campo da extrema-direita, Eduardo Bolsonaro (PL-SP) se licenciou do mandato de deputado federal e foi para os Estados Unidos trabalhar pela interferência do país estrangeiro nas instituições brasileiras. O único fim: livrar seu pai do julgamento por tentativa de golpe de Estado no STF. Seu lobby em favor dos interesses familiares resultou no estapafúrdio tarifaço promovido por Trump. Dentre os principais atingidos está o setor agropecuário, um bastião de apoio e defesa do bolsonarismo raiz.
Como diz Manuela Carneiro da Cunha, no prefácio à obra de Caio Pompeia, “pode-se dizer que nenhum presidente do Brasil, de Fernando Henrique Cardoso até, digamos, 2018, se subtraiu efetivamente às demandas de associações do agronegócio, mas não necessariamente o fez por inteira adesão e motu proprio” (Pompeia, 2021, p. 12). Bolsonaro encampou as bandeiras da parte mais retrógrada do agronegócio e por eles foi encampado inclusive com o financiamento dos atos antidemocráticos – segundo a denúncia da Procuradoria Geral da República. Assim preceitua a antropóloga:
“Mesmo assim, por mais que a influência política de agentes do agronegócio tenha se ampliado, a ligação dos governos com suas organizações nunca foi irrestrita – até recentemente. Vimos que nenhum governo anterior, em que pesem suas práticas e concessões, apregoou ser contrário aos direitos indígenas e ambientais. O que mudou com o governo Bolsonaro em relação aos que o precederam foi que, pela primeira vez, o discurso, as medidas provisórias e as omissões do presidente foram abertamente anti-indígenas e antiambientalistas. Isso repercutiu favoravelmente no bloco imediatista do agronegócio” (Pompeia, 2021, p. 13).
E em meio a todo esse apoio mútuo, durante a presidência anterior, o desmatamento disparou, as invasões das Terras Indígenas se multiplicaram, os garimpos ilegais pulularam com força por toda a Amazônia. Os povos indígenas e as comunidades tradicionais foram perseguidos e desprezados, com um furor desconcertante. Como não lembrar do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, dizendo que se deveria aproveitar a pandemia para “passar a boiada” e avançar com a destruição ambiental?
A banda mais atrasada do agronegócio – aquela geralmente associada ao trabalho análogo à escravidão e às ameaças às comunidades originárias – venceu e perdeu o pudor que lhe restava. O resto é história, com fartos dados empíricos disponíveis para qualquer pesquisador atento. A explosão da grilagem de terra e do crime organizado na Amazônia são incontestáveis, bem como o estrangulamento dos órgãos de fiscalização e proteção do meio ambiente e dos povos indígenas, como o Ibama, o ICMBio e a Funai. Nesse sentido constata Carneiro da Cunha:
“Com Bolsonaro, que ideologicamente se alinha à União Democrática Ruralista (UDR), o agronegócio não só está no governo como sua ala de extrema-direita está mais atuante dentro dele. O presidente da UDR, Nabhan Garcia, almejava ser ministro da Agricultura. Impedido, por razões pragmáticas, de colocá-lo no comando da pasta, Bolsonaro confio-lhe a Secretaria de Assuntos Fundiários do ministério. Garcia tem acesso direto ao presidente. Sua atuação, conforme consta, é consistente: ele se esforça para facilitar a regularização fundiária, sobretudo na Amazônia, em particular por meio da autodeclaração, que não é devidamente verificada nem pela União, nem pelos estados. Com isso, abre-se espaço para um maior número de fraudes” (Pompeia, 2021, p. 15-16).
Mesmo com a derrota do projeto político anterior na última disputa presidencial, declaradamente antiecológico e anti-indígena, a hipertrofiada bancada ruralista continua apostando no “quanto pior, melhor”. Os exemplos de atuação irresponsável e caótica foram as aprovações da Lei 14.701/23, que institui o Marco Temporal e do PL da Devastação, que destrói o licenciamento ambiental. Ambas iniciativas estão fundadas em uma visão tacanha de lucro imediato e de retrocesso constitucional, na medida em que rasgam o disposto nos arts. 225 e 231 da Constituição Cidadã.
Se é verdade que não se pode comparar os ataques perpetrados na gestão passada com o discurso do atual governo, também é verdade que a proteção do meio ambiente e dos povos originários não são prioridades do terceiro mandato do presidente Lula. Ainda que tenha uma frágil base parlamentar, a administração petista e o próprio partido pouco fizeram para deter os projetos de morte e avançar nas demandas históricas do movimento indígena. Pode-se comprovar facilmente tal afirmação ao se deparar com as irrisórias demarcações de terras indígenas realizadas até o momento. Falta vontade política e os gestos simbólicos não bastam!
É preciso romper com um modelo neoextrativista que serve a interesses de uma pequena elite imperial. Nessa esteira pontuam Ulrich Brand e Markus Wissen:
“O modo de vida imperial – a precondição e o meio de lidar com as contradições socioecológicas do capitalismo – revela-se um intensificador de crises no momento de universalização. Ele é a causa do aumento das tensões ecoimperiais entre os países do Norte global e entre eles e as potências emergentes do Sul. O modo de vida imperial, portanto, implica a possibilidade de relações internacionais cada vez mais marcadas por conflitos e violência. Tais relações sofrerão maior impacto quando o uso exclusivo dos recursos humanos e naturais pelo Norte global, bem como dos sumidouros, for questionado em futuras mudanças geopolíticas e econômicas” (Brand e Wissen, 2021, p. 197-198).
Como reagirá o agronegócio e suas entidades representativas diante dos graves e inaceitáveis ataques promovidos pela administração Trump à soberania nacional? Suas manifestações até o momento foram tíbias e insuficientes parecendo querer poupar a extrema-direita pelos seus atos. Considerando o apoio prestado a esse campo político nos últimos anos serão capazes de reagir com firmeza e cobrar as responsabilidades devidas da família Bolsonaro por suas ações e discursos antipatrióticos?
E a influente bancada ruralista no Congresso, como agirá nessa crise que promete se intensificar nas próximas semanas? Continuará subserviente aos interesses do bolsonarismo mesmo contrários às suas próprias exportações para os Estados Unidos? Apostará em um malabarismo retórico para tentar transferir a culpa para a atual gestão do país, como tentam fazer desesperadamente os políticos bolsonaristas? Ou finalmente se somará aos esforços diplomáticos do governo federal, condenando as conspirações engendradas pela família Bolsonaro?
O momento emblemático de ameaça da soberania brasileira, que não se via desde o golpe de 1964 – que contou com o apoio estadunidense –, exige união das forças democráticas e razoáveis do país para enfrenta-lo com assertividade e altivez. Se o agronegócio está longe de ser um bloco homogêneo, já passou da hora de se isolar o grupo de extrema-direita que flerta com o golpismo autoritário e que cresceu nos últimos anos. Nesse sentido observa Carneiro da Cunha:
“Os interesses e a cultura política dos grandes e médios produtores rurais nem sempre coincidem com os das indústrias, sobretudo a jusante da porteira. A criação sucessiva de organizações, cujas hegemonias acabam se revelando passageiras, é outro indicador dessas diferenças. Até a chamada bancada ruralista no Congresso, por mais que siga as diretrizes recebidas do Instituto Pensar Agropecuária (IPA), parece, em alguma medida, distinta do resto das representações do agronegócio. [...] Mesmo assim, para evitar rupturas, os diferentes grupos preferem se apresentar publicamente como um bloco indiviso” (Pompeia, 2021, p. 12).
Se insistirem em adotar uma postura corporativista e sem autocrítica, as entidades do agronegócio perderão uma ótima oportunidade de se desvencilhar do que há de mais atrasado e retrógrado em suas diversas fileiras. Talvez seja o suficiente para despertar uma reação de repulsa de suas bases sobre quão ideológicas são suas estruturas e principais lideranças. Uma coisa parece certa: a história não perdoará àqueles que trabalharem contra os interesses do país em troca do benefício de uma única família ou mesmo grupo político.
Não há espaço para ceder às chantagens autoritárias de Donald Trump. Aceitar a interferência no Supremo Tribunal Federal seria decretar o fim do Estado Democrático de Direito e a falência completa da Constituição Federal, tão duramente conquistada na redemocratização. Ou se respeita a autonomia das instituições e se rechaça com veemência as investidas inaceitáveis contra o procurador-geral da República e os ministros do STF ou se aceita que no Brasil prevalece a lei do mais forte.
Apesar dos desastrosos impactos que as medidas estadunidenses podem ter na economia nacional, não se deve ignorar que essa crise pode ser uma oportunidade. Primeiro ao esclarecer para o país quem são aqueles que realmente são patriotas daqueles que conspiram por interesses próprios. Depois, ao permitir que as relações do Brasil se expandam em novas configurações, mais livres, justas e diversas.
A ascensão de um neoimperialismo impõe-se como inconcebível, podendo ser esta uma ocasião para o país reafirmar a força do Sul global e aposta em um multilateralismo democrático e anticolonial. Vale conferir a posição de Brand e Wissen:
“No entanto, as mudanças reais nas lógicas estruturais e dominantes (do capitalismo, do racismo, do patriarcado e das relações imperiais globais) não ‘advêm’ somente dos processos de mudança e modernização que já estão em curso; elas demandam ação estratégica e estão ligadas, sobretudo, ao fato de nosso modo de vida insustentável e seu aprofundamento estarem entrelaçados a múltiplos interesses e rotinas interconectadas. Nesse contexto, a ação transformadora pressupõe, juntamente com os processos de aprendizado e inovações, que os conflitos também são necessários para avançar nas causas sociais e ambientais” (Brand e Wissen, 2021, p. 81-82).
Para que desse conflito possa surgir uma conjuntura mais favorável para a democracia e as relações internacionais justas, a desinformação e os discursos de ódios precisam ser enfrentados com firmeza. Do contrário, as narrativas falaciosas seguirão nas redes sociais causando desestabilidade para a higidez do Estado Constitucional. Com esse fim, a bancada ruralista será chamada a assumir posição e apoiar a inadiável regulamentação das big techs, travada no Congresso pelos interesses da extrema-direita.
Mas nada disso será suficiente se o agronegócio continuar se comportando como ilógico inimigo do meio ambiente e dos povos originários. Afinal, isso manterá sempre um “telhado de vidro”, pronto a ser usado pelos compradores internacionais quando for conveniente. Como observa Pompeia (2021, p. 338), “essencial para o Brasil e o mundo, o tratamento consequente das questões socioambientais no país será indispensável para a perspectiva de suas cadeias de alimentos, fibras e energias renováveis”. Se não for pela convicção da importância das comunidades indígenas e dos ecossistemas equilibrados, então pelo menos que seja para proteger suas atuais e futuras exportações.
De fato, como citou o ministro Alexandre de Moraes o imortal Machado de Assis, “a soberania nacional é a coisa mais bela do mundo, com a condição de ser soberania e de ser nacional”. E aqui não se trata de ufanismo estúpido ou de nacionalismo barato, mas sim de lutar pela manutenção da “ordem e progresso” garantidos pela Constituição Federal e sua harmônica separação de Poderes. Ameaçar a Suprema Corte brasileira é ameaçar a ordem democrática e a dignidade de cada brasileiro e brasileira. E isso é inegociável! Trump, Bolsonaro e sua tirania vão passar, já o Brasil sairá maior.
BRAND, Ulrich; WISSEN, Markus. Modo de vida imperial: sobre a exploração de seres humanos e da natureza no capitalismo global. São Paulo: Elefante, 2021.
CASARA, Rubens. A construção do idiota: o processo de idiossubjetivação. Rio de Janeiro: Da Vinci Livros, 2024.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
POMPEIA, Caio. Formação política do agronegócio. São Paulo: Elefante, 2021.