A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 21º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 13,22-30.
“Esforçai-vos por entrar pela porta estreita...” (Lc 13,24)
Jesus está a caminho de Jerusalém, onde também pretende fazer chegar a Boa Notícia do Reino. Nesse percurso, o evangelista Lucas recolhe uma série de afirmações do Mestre que tem como objetivo instruir os discípulos e a nós sobre o seu seguimento.
Mais uma vez estamos diante de uma pergunta curiosa apresentada por alguém da multidão que o seguia: “é verdade que são poucos os que se salvam?” Jesus não responde diretamente à questão pois a salvação não significa um voluntarismo para cruzar a linha de chegada na vida; ela é dom de Deus, que desperta em nós o desejo de entrar no fluxo da sua Graça, esvaziando-nos do “ego” e abrindo-nos a uma atitude de serviço oblativo e gratuito.
Jesus não está preocupado com a quantidade dos que se salvarão, nem dá resposta à pergunta pela salvação final. Pelo contrário, faz um sério apelo a praticar a justiça no momento presente. Muda, assim, a direção da resposta esperada acerca do futuro para centrar-se no chamado a viver o presente com mais sentido e intensidade. A salvação não é simplesmente uma realidade do futuro, mas está conectada com as atitudes assumidas no presente, ou seja, é consequência de uma prática da justiça. O decisivo não é o futuro, que está nas mãos de Deus, mas o presente das ações justas ou injustas.
Jesus usa a imagem da “porta” para falar dessa passagem de uma vida limitada e autocentrada, a uma vida expansiva, aberta à realidade. Porta que possibilita “entrar” na vida; dom em plenitude.
Na realidade, há uma tendência em todos nós de vivermos trancados em nossos mundos limitados; criamos e vivemos em “mundos-bolha”. Qual é o problema deste mundo-bolha? Porque questionar se alguém está tranquilo, comodamente instalado em suas seguranças, rodeado de um universo familiar e não ameaçante? Porque este afã por romper a bolha?
É difícil sair do terreno conhecido. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro dos limites politicamente corretos. Portas são trancadas em todas as dimensões da vida: afetiva, social, religiosa, política... Podemos construir uma vida encapsulada em espaços feitos de hábitos e seguranças, situações estáveis, convivendo com pessoas que pensam e vivem do mesmo modo...; podemos ancorar-nos em três ou quatro seguranças que nos permitem viver sem sair de terrenos conhecidos.
Com isso, acabamos estabelecendo fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isto acontece, terminamos tendo perspectivas pequenas, visões incompletas, horizontes atrofiados e, provavelmente, ignorância sobre um mundo amplo, complexo e cheio de ricas possibilidades.
Em outras palavras: colocamos “portas” intelectuais e espirituais à audácia do amor. Falta-nos fé nas maravilhas do Espírito. Essa atitude de sair por nossas portas em direção à necessidade alheia com criatividade é a essência do Seguimento.
O tema da “porta” é mencionado muitas vezes pelos evangelistas para indicar uma passagem significativa ou a entrada em uma nova maneira de viver. O próprio Jesus se definiu como a “Porta da Vida”; Ele não veio complicar a vida com mais exigências. Só passa pela “porta estreita” quem se esvazia do próprio ego. Bater à porta significa desejo de entrar na intimidade; abri-la é sinal de acolhida e fechá-la é dizer não a quem se aproxima.
De fato, o símbolo da “porta” não se define em si como um espaço, não é um lugar, mas é o “limite” entre um lugar e outro, é o interstício entre dois espaços; é, portanto, o que divide dois modos de ser e viver: egoico ou oblativo.
A “porta” representa o lugar onde acontece a passagem de um estado a outro, a dobradiça entre dois mundos... ; a “porta” protege o sagrado, esconde o mistério...; tem o seu momento “fascinante”, mas comporta também um “tremendum”; ela nos situa num momento de ansiedade, de espera, de inquietação que toda passagem de um estado a outro provoca; esta preocupação com o que está “além da porta”, ou seja, a passagem de uma situação que se conhece a uma outra que se revela inédita, mas na qual se desejaria entrar, provoca medo e insegurança.
O que está além da porta provoca arrepios; “passar a porta” significa, portanto, ir ao encontro do novo, do futuro, do diferente, do “fora do normal” ...
O “outro lado” é um espaço não esclarecido, é um lugar ainda não explorado.
Há um véu que impede a visão, é o lugar da inacessibilidade, comporta a proibição de se aproximar da “sarça ardente”. “O homem não pode ver a face de Deus e continuar vivendo”, diz a Bíblia.
Está cada vez mais difícil encontrar algo que soa verdadeiramente diferente: sair de nossas seguranças para adentrar-nos no terreno do incerto; sair dos espaços onde nos sentimos fortes para arriscar-nos a transitar por lugares onde somos frágeis; sair do inquestionável para enfrentarmos o novo...
É decisivo estarmos dispostos a abrir espaços em nossa história a novas pessoas e situações, novas vivências, novas experiências... Porque sempre há algo diferente e inesperado que pode nos enriquecer.
A vida está cheia de possibilidades; inumeráveis caminhos que podemos percorrer; pessoas instigantes que aparecem em nossas vidas; desafios, provocações, aprendizagens, motivos para celebrar... lições que aprenderemos e nos farão um pouco mais lúcidos, mais humanos e mais simples...
Portanto, a primeira atitude é sair do “ego” (“sair do seu próprio amor, querer e interesse” – S. Inácio). E isso significa desconstruir nossa linguagem, nossa presença, nossas seguranças, nosso solo nutrício; deixar-nos romper, abrir-nos aos outros e ao grande Outro; não sermos nós o centro do processo a partir de nossas seguranças e daquilo que conhecemos.
“Vivo já fora de mim, porque vivo no Senhor que me quis para si” (S. Teresa de Ávila).
O compromisso é “viver fora de mim”. E “viver fora de mim” implica estar aberto ao inesperado, ao surpreendente, ao desconcertante.
“Dá-me, Senhor, capacidade e valentia para deixar o terreno conhecido, para sair do já sabido, para aprender cada dia aquilo que possa se tornar novidade, surpreendente, diferente” (oração Magis)
A “porta estreita” que atravessamos representa a nossa porta pessoal, que precisamos encontrar e atravessar, para deixar o rastro da nossa própria vida neste mundo. O caminho espaçoso representa o que todos usam; o apertado é o caminho que Deus preparou para cada um de nós: é o caminho único e original, no qual vivemos e deixamos transparecer a imagem que Ele tem de cada um de nós.
Na verdade, o caminho estreito leva a um horizonte mais amplo. Nele, alcançamos a harmonia conosco. Aquele que se contenta em seguir os outros não vive de verdade. Nosso processo de humanização só pode ser completado se encontrarmos nosso caminho pessoal e percorrermos por ele.
John Sanford afirma: “O caminho largo é aquele da vida que seguimos de forma inconsciente, é o caminho da menor resistência e da identificação com as massas. O estreito exige consciência e atenção desperta se não quisermos nos desviar do caminho”.
A experiência de oração é um risco, é uma travessia para um outro “lugar” e deixar-se afetar por este “outro lugar”: lugar provocativo, carregado de uma Presença que chama, que fala, que envia...
“Passar a porta” revela que em toda experiência de oração está implícita a ideia de uma “soleira”, de um “limiar e, portanto, um momento de “passagem”. Não se pode estar “dentro” e “fora” ao mesmo tempo; não se pode ser mero observador na experiência de oração: ou se fica fora da porta, ou se dá o passo que “desinstala”, que “compromete”, que “vincula”.
- Atravesse a “porta” de sua interioridade e viva a intimidade com Aquele que está sempre à sua espera; entre em diálogo com Ele.