O perdão como horizonte da justiça

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24 Setembro 2015

A integração entre justiça e perdão como caminho para reparação das vítimas e responsabilização efetiva dos agressores

Xabier Etxeberría Mauleon
Foto: Cristina Guerini Link/IHU
Seria possível aliar o perdão em um contexto judicial onde se ajuízam os atos de pessoas envolvidas em violações graves, como as cometidas em contexto de guerra e nas ditaduras ocorridas em diversas partes do mundo? Para o professor Xabier Etxeberría Mauleon não só é possível como fundamental para que haja um processo tanto de reparação das vítimas, quanto de responsabilização dos agressores. Durante sua conferência intitulada “A justiça e o perdão”, na última quarta-feira, dia 16-09-2015, o professor defendeu que apesar do perdão e da justiça se situarem em esferas diferentes é possível a integração de ambos. “O perdão está na instância privada, das relações intersubjetivas. A justiça está no âmbito público da ordem social. Porém, o perdão e o arrependimento também têm impacto público”, explica.

A conferência fez parte da programação do III Colóquio Internacional IHU | VI Colóquio Cátedra Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança. A justiça, a verdade e a memória na perspectiva das vítimas. A narrativa das testemunhas, estatuto epistêmico, ético e político, promovidos entre os dias 15 e 16-09-2015 no campus São Leopoldo da Unisinos.

Segundo Xabier Etxeberría Mauleon, nas relações subjetivas marcadas pelo ato de perdoar e pelo arrependimento, há uma dimensão pública. Esse fato, aponta o professor, propicia a integração do perdão na justiça e a relação entre saúde cívica e espiritualidade privada. O ponto mais importante salientado na aproximação entre esses dois polos é a transformação, das pessoas envolvidas (agressor e vítima) e dos papeis de cada um nos processos. “O perdão é efetivado quando há o arrependimento e a transformação nas duas partes. A vítima se transforma profundamente, há a abertura ao outro, ao apoio à transformação do outro. O agressor também se transforma, sua culpa surge a partir do olhar que lança à vítima, é uma mudança de postura profunda, uma transformação psicológica traumática, mas também libertadora. Esse movimento implica no centramento do olhar na vítima”, frisa.

Para o professor a justiça precisa se transformar e deixar de ser retributiva, de pagar o mal com o mal, e o perdão precisa assumir sua dimensão pública para que não haja impunidade no sentido irrestrito da palavra. “A culpabilidade moral é condicionante do perdão. Nesse sentido, a culpabilidade do Direito Penal substitui-se por responsabilidade, por consciência de seu ato. Somente a visão ética hiperbólica do perdão pode liberar o Direito de seu aprisionamento entre o polo ideal e o empírico”, conclui.

Xabier Etxeberría Mauleon relatou que práticas claramente inspiradas no perdão têm sido utilizadas com êxito pelo sistema judiciário para amparar e complementar a justiça penal. Um dos exemplos citados foram os encontros restaurativos promovidos entre as vítimas do E.T.A. - Pátria Basca e Liberdade (envolvidos na busca de independência política e territorial na Espanha) e os chamados ex-etarras, pessoas que integravam o grupo E.T.A. “As vítimas expressaram sua dor e questionaram os agressores. Em momentos como esse se vivem os esquemas de perdão e arrependimento. Essas práticas suprem carências importantes da justiça. Inserir ações inspiradas na lógica do perdão liberta vítimas e agressores”.

Francisco De Roux
Foto: Leslie Chaves/IHU
Na segunda conferência da tarde, intitulada “Justiça restaurativa na Colômbia”, o professor Francisco De Roux também abordou a questão da dor das vítimas em meio às negociações políticas. Ele contou sua experiência de participação em ações de defrontação entre agressores e vítimas, como a citada pelo professor Xabier Etxeberría Mauleon, e a importância desses momentos. “Em um dos encontros de conciliação que participei, envolvendo integrantes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – FARCs, governo, forças militares, paramilitares e vítimas, cada um dos atores assumiu sua responsabilidade, apesar de não se tratar de um cenário de justiça. Os agressores participaram desse encontro partindo de três pressupostos básicos: respeitar a dor das vítimas, assumir as responsabilidades e não negociar impunidades. As vítimas expuseram a dor que sentem em sua pele, mas também sentiram a necessidade de mostrar que os seres humanos são capazes de coisas sublimes. É quase um momento de morte e ressurreição. Esse evento impulsionou um salto qualitativo nos processos de negociação de paz na Colômbia”, ressalta.

Para De Roux, nos processos de negociação não se pode perder de vista que “todos somos responsáveis por tudo que acontece. Temos responsabilidades distintas, mas todos estamos implicados. A crise humana que estamos enfrentando é nossa responsabilidade”. Embasado nessa percepção, o professor tem uma atuação relevante nos processos de negociação com os diversos atores envolvidos nos embates que ocorrem na Colômbia, principalmente junto aos grupos que são vitimados conflitos armados. “Sempre lembro da parábola do pastor com as ovelhas no campo para pensar o trabalho nas negociações. As ovelhas não precisam do pastor para guiá-las, nem para mostrar que tipo de pasto devem comer, tão pouco para indicar-lhes por onde devem seguir, mas ele está sempre acompanhando-as. Entretanto, quando se aproxima um lobo e ameaça esses animais é aí que o pastor se projeta e os defende, mostrando que eles estão amparados. Quando há um conflito, geralmente muito grave como os massacres que com frequência acontecem, nós procuramos chegar o mais rápido possível ao vilarejo onde se deu o problema. Isso é muito importante para as comunidades perceberem que não estão sós, como na história do pastor e das ovelhas. A partir daí já tem início os processos de justiça restaurativa para essas pessoas”, explica.

O professor enfatiza que apesar da gravidade e da violência dos atos cometidos no cenário de guerra, os grupos de negociação sempre procuram o diálogo atuando na consciência dos agressores, tomando o cuidado de não se posicionar acima deles. “Levamos em conta a complexidade da consciência das pessoas e que o uso da violência a obscurece e a degrada”, destaca.

A abordagem das consciências das pessoas envolvidas nas violações provocadas em cenários de guerras, ditaduras, ou outros contextos de conflito, está no cerne da integração do perdão nos processos de justiça restaurativa. Conforme diz o professor Xabier Etxeberría Mauleon, “o perdão está imbricado na justiça restaurativa, é sua principal inspiração. A justiça restaurativa busca fazer o bem onde se fez o mal, e para isso é necessário um gesto reflexivo. Ainda, tudo precisa estar assentado na verdade dos fatos incorporada aos critérios de verdade jurídica, onde o agressor precisa reconhecer o dano que causou à vitima, direta ou indiretamente”.

Mas como restaurar violações que causam marcas indeléveis nas vidas das vítimas diretas e indiretas desses atos? Para Xabier Etxeberría Mauleon, “a justiça restaurativa é um ideal, nasce para reparar a vítima e deveria ser alternativa sistêmica e não um apêndice da justiça. Essa reparação só acontece quando há o arrependimento do agressor. Como reparar um homicídio? Não é possível trazer de volta quem foi morto, mas é possível oferecer algum tipo de reparação as vítimas ligadas à pessoa assassinada quando há o reconhecimento do crime, a responsabilização”.

A partir de seu contexto de vida, o professor Francisco De Roux nos deixa um alerta importante para reflexão. “Na Colômbia não temos alternativa. Vivemos em um cenário inumano, por isso precisamos buscar o diálogo. Ainda creio no ser humano, por isso buscamos o perdão como forma de evocar os valores morais. Mas para haver restauração é necessária uma metamorfose inevitável de todos, é uma construção coletiva. Temos que lembrar que nosso DNA esteve envolvido em inúmeras atrocidades, para não as repetirmos. Por isso precisamos reconstruir as memórias desses momentos bárbaros e dimensionar as responsabilidades de todos nesses processos”.

Quem são os conferencistas:

Xabier Etxeberria Mauleon é espanhol, professor Emérito da Universidad de Deusto – Espanha e doutor em Filosofia pela mesma universidade. Entre suas publicações estão La educación para la paz reconfigurada.La perspectiva de las víctimas (Madri: Ed. Catarata, 2013) e La construcción de la memoria social: el lugar de las víctimas (Santiago de Chile: Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, 2013).

Francisco De Roux é colombiano, fundador do Programa de Desenvolvimento e Paz de Magdalena Medio. Graduou-se em Filosofia e Letras na Universidad Javeriana e é mestre em Economia pela Universidad de Los Andes e também pela London School of Economics – LSE (Inglaterra). É doutor em Economia pela Université Paris-Sorbonne (França). É jurado do Prêmio Nacional da Paz (Colômbia), organizado pela Fundación Friedrich Ebert.

Por Leslie Chaves

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