O final do ano no Brasil é marcado por uma sobreposição de imagens: o sol escaldante verão tropical emoldura vitrines repletas de neve artificial, pinheiros europeus e um Papai Noel cujos trajes de lã ignoram a geografia do Hemisfério Sul. Para além do estranhamento climático, essa estética revela as camadas profundas de um "processo de colonização" que, longe de ter se encerrado nos livros didáticos, permanece operante no cotidiano e no imaginário brasileiro.
O Natal, nesse sentido, apresenta-se como um palimpsesto cultural, explica o professor George Leonardo Seabra Coelho, onde a festa pagã, a liturgia católica e o motor do capitalismo global se fundem para criar uma celebração que, muitas vezes, apaga as raízes do território que habitamos. “O Natal é um palimpsesto cultural, no qual camadas de significados pagão, católico e capitalista se sobrepõem e interagem. Sua trajetória demonstra como os símbolos podem transcender o tempo e serem reinterpretados por diversas estruturas sociais. As discrepâncias entre o presépio simples e a ostentação comercial, entre o chamado à tranquilidade espiritual e o frenesi consumista, são evidentes e indicativas das tensões contemporâneas”, salienta.
Nesta entrevista concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o professor analisa como a festa do nascimento de Cristo — um Deus que opta pela "pobreza extrema" e cujos pais eram "fugitivos políticos" — foi cooptada por um sistema mercantil que transforma tudo em mercadoria. “O capitalismo promove uma significativa ressignificação do Natal, convertendo-o de uma festividade com caráter religioso e comunitário em um poderoso mecanismo de consumo”, analisa o pesquisador. “Esse processo de apropriação vai além da exploração comercial dos dados; ele realiza uma autêntica engenharia cultural, alterando seus significados originais e reestruturando seus símbolos, rituais e valores de acordo com a lógica do mercado. A celebração, que antes se concentrava no nascimento de Jesus e em valores como solidariedade e introspecção, foi gradualmente transformada no ápice do calendário econômico anual”, observa o professor.
Ao longo da conversa, o professor reflete sobre a fratura da sociedade brasileira, o "pan-identitarismo" e o papel da História Pública na descolonização das mentes. Para ele, a disciplina deve ser um campo de batalha contra o eurocentrismo, pois, caso contrário, continuaremos vivendo em uma “pátria inventada”, de costas para a nossa própria cultura.
George Coelho (Foto: Reserch Gate)
George Leonardo Seabra Coelho é graduado em História pela Universidade Federal de Goiás, mestre em História pela Universidade Federal de Goiás e doutor em História pela Universidade Federal de Goiás. Atualmente é Professor Adjunto no curso de Licenciatura em História da UFT-Porto Nacional e coordenador do PPGHispam-UFT. Também é coordenador do Núcleo de estudos Afro-brasileiros da UFT-Porto Nacional. Desenvolve pesquisa abordando as relações entre Mídias, tecnologias e História, criador e líder do Grupo de Pesquisa em Mídias, tecnologias e História (MITECHIS). É Editor da revista Antígona e criador e Editor da revista Convergências: Estudos em Humanidades Digitais (2965-2758).
IHU – Como o Natal, surgido a partir de uma antiga festa pagã, se transformou em símbolo da Igreja Católica e do capitalismo? Que contradições há (se é que há) entre essas duas expressões?
George Coelho – Ao longo de sua história, o Natal, é um fenômeno de camadas sobrepostas que demonstra como diferentes sistemas de crença e poder reapropriam e ressignificam símbolos e celebrações ao longo do tempo. Sua origem remonta às festividades pagãs pré-cristãs europeias do solstício de inverno no Hemisfério Norte, como a Saturnália romana e o culto ao Sol Invictus, que eram celebradas por grupos não convertidos à fé cristã em 25 de dezembro, que simbolizavam o renascimento do sol e a vitória da luz sobre a escuridão.
Não há uma data bíblica específica para o nascimento de Jesus. Com a conversão do Império Romano ao Cristianismo, precisou-se construir elementos simbólicos em que coubessem essa doutrina.
No século IV, a Igreja Católica, sob a liderança do Papa Júlio I, decidiu adotar essa mesma data de forma estratégica. Não se tratou de um ato de supressão, mas de "cristianização": em vez de eliminar as festividades populares, a Igreja reformulou seu sentido, trocando o "Sol Invicto" por Cristo, declarado como o verdadeiro "Sol da Justiça". Práticas pagãs, como banquetes, trocas simbólicas [presentes] e decoração com plantas perenes, foram transformadas e incorporadas a uma nova narrativa teológica focada na encarnação divina, na humildade da manjedoura e na caridade. Assim, o Natal passou a ser um marco importante do calendário litúrgico e um forte símbolo da identidade católica, exemplificando um processo de inculturação que promoveu a conversão e a unificação cultural, tanto europeu ao longo dos séculos, quanto medievais de acordo com o processo de colonização.
No entanto, a história do Natal não se limitou ao âmbito religioso. A partir da Revolução Industrial do século XIX, a comemoração passou por uma segunda grande mudança, sendo gradualmente influenciada pela lógica do capitalismo em ascensão. O Natal então foi reconfigurado como uma celebração focada na família, nos laços afetivos e, principalmente, na troca de presentes não simbólicos, mas produzidos agora por essa indústria capitalista. Os símbolos foram secularizados, muitos foram perdendo o caráter religioso e, ao mesmo tempo, foram padronizados.
Uma perspectiva sentimental do feriado foi popularizada por escritores como Charles Dickens em Um Conto de Natal, e o mercado a absorveu com entusiasmo. Os símbolos foram secularizados e normalizados: o símbolo religioso da imagem de São Nicolau foi substituído pelo Papai Noel contemporâneo, que vai ocupar os espaços de consumo do Natal. Um ícone feliz e corpulento cuja representação foi globalizada por meio de campanhas publicitárias, como as célebres da Coca-Cola nos anos 1930. Cuja a imagem, ao longo do tempo, foi sendo globalizada e os símbolos natalinos foram se homogeneizando.
O sistema mercantil conseguiu apropriar-se habilmente da carga emocional do Natal — os princípios de paz, amor familiar e generosidade — para criar um forte incentivo ao consumo. Atualmente, a "temporada de Natal" é o motor principal do varejo mundial, uma época em que a pressão pelo consumo e as métricas de vendas muitas vezes eclipsam o sentido religioso original. Em suma, o capitalismo apropriou-se de tudo.
Essa temporada natalina se iniciou em novembro quando as lojas começaram as decorações. Eu estou no Tocantis, se substituir o pinheiro por um pé de pequi, vai mudar alguma coisa? Será que trocar o Papai Noel tradicional por um símbolo com a “cara do Brasil” mudaria alguma coisa? O consumo seria o mesmo.
Há profundas e estruturais contradições entre essas duas expressões: a católica e a capitalista. O núcleo evangélico do Natal cristão comemora o nascimento de um Deus que opta pela pobreza extrema, pela simplicidade de uma manjedoura e pela solidariedade com os excluídos. O desapego material, a humildade e uma "boa nova" voltada aos pobres constituem seus valores fundamentais.
Quero ressaltar que a família de Jesus era de fugitivos políticos da Palestina. Eles fugiam de um rei que perseguia por medo de perder seu trono. José era um carpinteiro, alguém que à época não era pobre, miserável.
Em nítido contraste, o Natal consumista se concentra na acumulação, ostentação e mercantilização dos sentimentos, em que o amor e o pertencimento são geralmente demonstrados por meio da habilidade de oferecer presentes caros. Ao passo que a tradição cristã preconiza um período de reflexão e tranquilidade, a versão atual é caracterizada por ansiedade, pressa, dívidas e uma produtividade acelerada. A grande ironia é que uma festa que foi criada para comemorar a libertação das amarras materiais acabou se tornando um dos principais mecanismos de incentivo ao consumismo e à perpetuação do ciclo de endividamento e de desperdício.
Contudo, essa conexão não se resume apenas a uma oposição. Também existe uma adaptação mútua e uma convergência prática. A Igreja aproveita a visibilidade e o apelo emocional da data para divulgar suas mensagens de caridade e evangelização, ao passo que o mercado se apropria de valores cristãos, como fraternidade e generosidade, para criar campanhas publicitárias impactantes. Para muitas pessoas na sociedade atual, o Natal tornou-se uma espécie de "religião civil", um conjunto de rituais — como a árvore, a ceia e os presentes — realizados mais por conta da tradição social e da pressão cultural do que por crença religiosa, funcionando principalmente para fortalecer os laços familiares e impulsionar a economia. Mesmo as famílias mais religiosas não deixam de ter esse "momento de consumo".
Em resumo, o Natal é um palimpsesto cultural, no qual camadas de significados pagão, católico e capitalista se sobrepõem e interagem. Sua trajetória demonstra como os símbolos podem transcender o tempo e serem reinterpretados por diversas estruturas sociais. As discrepâncias entre o presépio simples e a ostentação comercial, entre o chamado à tranquilidade espiritual e o frenesi consumista, são evidentes e indicativas das tensões contemporâneas. Ainda assim, a coexistência dessas dimensões mostra a complexidade com que as sociedades humanas constroem e reconstroem o sentido de suas celebrações, fazendo do Natal um espelho das transformações religiosas, culturais e econômicas do mundo ocidental.
Inclusive, os símbolos decoloniais [não servem] para reinterpretar o Natal ocidental, branco e cristão.
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IHU – Professor, para entendermos o contexto histórico, como e quando o Natal passa a ser comemorado no Brasil? Quem traz a festa para o país?
George Coelho – A celebração do Natal no Brasil teve início durante os primeiros anos da colonização portuguesa, no século XVI – o Natal que chega com os portugueses não é o mesmo que temos hoje e esse é o aspecto que merece uma reflexão profunda. Cabe ainda destacar, que os portugueses chegaram a um território em que havia outros povos, ou seja, estamos em uma “pátria inventada”, parafraseando Benedict Anderson, “comunidade imaginada” que é o Brasil.
Os colonizadores lusitanos trouxeram a festa diretamente, especialmente os missionários da Igreja Católica, em particular os jesuítas, que tiveram um papel crucial em sua disseminação e também no extermínio e conversão dos indígenas e escravização dos povos africanos. Esses agentes da colonização trouxeram todo o calendário litúrgico europeu, sendo o Natal uma data central, oficializada no século IV. Muito embora, nos Estados Unidos, tenha uma importância mais capitalista do que fraterna, porque o Dia da Ação de Graças cumpre esse papel.
Assim, a celebração não surgiu como uma prática popular espontânea, mas como um componente fundamental do projeto colonial e da catequese. Ela foi incorporada ao processo de imposição da fé cristã e da cultura portuguesa aos povos indígenas e, posteriormente, aos africanos escravizados.
As celebrações de Natal, no início, tinham um caráter puramente religioso e comunitário, funcionando como um instrumento pedagógico. Os jesuítas realizavam missas solenes, procissões e representações do nascimento de Cristo, conhecidas como presépios vivos ou autos religiosos, com o objetivo de transmitir a história cristã de maneira visual e dramática. Tratava-se de um processo muito didático de repetição dos ritos. A Missa do Galo, uma tradição ibérica realizada à meia-noite, passou a ser o ponto alto. Nesse período, o presépio figurativo era a principal decoração, ao passo que a figura do Papai Noel e a árvore de Natal não estavam presentes. O ciclo de celebrações se prolongava até o Dia de Reis, em 6 de janeiro, originando manifestações folclóricas sincréticas, como o Reisado.
A comemoração foi sendo progressivamente modificada pela sociedade brasileira ao longo dos séculos. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, preservou seu núcleo religioso, porém começou a incorporar elementos das culturas locais, principalmente nas manifestações musicais e nas celebrações populares que ocorriam após os ofícios religiosos. Com a chegada da família real portuguesa e de novos imigrantes europeus, símbolos como a árvore de Natal se tornaram populares nos centros urbanos no século XIX. Entretanto, ao longo do século XX, houve uma mudança para uma celebração mais familiar e comercial, impulsionada pela cultura americana, que solidificou a figura do Papai Noel e a tradição da troca intensa de presentes.
Desse modo, o Natal no Brasil é fruto de um extenso processo histórico de aculturação. Originado como uma exigência religiosa colonial no século XVI, ele passou por reinterpretações e fusões, ganhando camadas de significado ao integrar elementos das culturas indígena, africana e de várias ondas imigratórias. De qualquer forma, o Natal é comemorado de diferentes maneiras no Brasil e é muito difícil pensar nessa transformação do Natal como um todo. Por mais que tentem introduzir como uma festa de identidade nacional, ela encobre as diversas culturas.
De uma festa predominantemente católica e catequética, passou a ser uma comemoração plural que, de forma única, une o sagrado e o profano, o tradicional e o global, espelhando a formação da identidade nacional.
IHU – É o Natal uma festa popular no Brasil?
George Coelho – É uma festa que se torna popular no Brasil, porque se pensarmos no que é do Brasil, isso não existe – e isso não é ruim. Eu sou um antinacionalista, porque nacionalismo e patriotismo só trazem tragédia. O que é a identidade brasileira forjada no século XX? Não existe. Tentaram impor o futebol, mas é o futebol inglês? O samba também não, porque ele não é popular como no Rio de Janeiro em todos os lugares. A identidade do brasileiro é não ter identidade cultural, é ter esse pan-identitarismo.
IHU – Há diferenças substanciais entre o Natal no Brasil e no restante da América Latina?
George Coelho – O Brasil vive de costas para a América Latina e de frente para a Europa. Somos o único país das américas que fala português. O Brasil não se vê como latino-americano, mas como brasileiro, que também não é nada. Tem uma música do Titãs que diz assim:
Não sou brasileiro
Não sou estrangeiro
Não sou brasileiro
Não sou estrangeiro
Eu não sou de nenhum lugar
Sou de lugar nenhum
Sou de lugar nenhum
Não sou de São Paulo
Não sou japonês
Não sou carioca
Não sou português
Não sou de Brasília
Não sou do Brasil
Nenhuma pátria me pariu
No Bairro da Liberdade, em São Paulo, não são brasileiros, são os “japoneses”, no Sul, são “italianos” e os “alemães”. Se formos por essa perspectiva, não existe brasileiro porque o Brasil não existe. E os indígenas também não existem, são povos das suas etnias. Esse fenômeno é muito interessante: a busca por uma ancestralidade que é impossível de alcançar. Por exemplo, o “japonês” aqui até pode se achar como tal, mas se for ao Japão, não é visto como se fosse um.
Muitos alemães que vieram para cá no final do século XIX, quando houve a ascensão do nazismo voltaram para a Alemanha e não eram bem recebidos, porque os sotaques de terceira geração dessas famílias não era o sotaque aceitável lá. O Gersem Baniwa tem uma questão muito interessante: um japonês, quando vem do Japão para cá, pode dizer que é japonês; mas o indígena nunca pode falar que é indígena. Essa é uma sociedade fraturada. Tenho receio que isso acabe em um extremismo louco que possa fragmentar ainda mais.
Apesar de o Brasil ter uma base católica e vivenciar um Natal em clima tropical como seus vizinhos latino-americanos, a comemoração no país possui diferenças significativas, influenciadas por heranças culturais particulares e expressões ritualísticas únicas. Embora a matriz ibérica e o catolicismo popular criem um terreno comum na maior parte da região, as particularidades resultantes da colonização portuguesa, da imigração europeia e das dinâmicas sociais locais dão ao Natal brasileiro um caráter distinto no contexto continental. Além disso, a ceia no Rio Grande do Sul não é a mesma no Pará.
Uma das diferenças mais significativas está na dimensão comunitária e religiosa. Em muitos países hispano-americanos, as festividades de Natal são marcadas por rituais públicos e prolongados que reúnem as comunidades. Las Posadas no México e América Central, em que grupos reencenam a peregrinação de José e Maria de 16 a 24 de dezembro, e a Novena de Aguinaldos na Colômbia e Venezuela, com nove dias de orações e cânticos em torno do presépio, são exemplos notáveis. No Brasil, apesar de haver tradições como a Novena de Natal, elas geralmente se limitam ao contexto doméstico ou paroquial, sem ganhar a mesma visibilidade nas ruas. O auge da festividade brasileira se concentra claramente no encontro familiar privado da ceia na noite de 24 de dezembro, Véspera de Natal, seguida pela Missa do Galo – um elemento amplamente comum em toda a região. Muitas das grandes celebrações no Brasil se tornaram consumos, são palcos que cobram ingressos para turistas. O capitalismo é uma benção: tudo vira mercadoria [risos].
A culinária natalina também demonstra essas características únicas. A tradição alimentar brasileira é fortemente influenciada pela herança portuguesa, com pratos como bacalhau e rabanada, e pela influência italiana, com a presença do panetone. Pratos como peru ou chester, farofa e salpicão fazem parte de um cardápio que, embora adaptado, mantém essas raízes. Por outro lado, países vizinhos possuem protagonistas gastronômicos fortemente ligados às suas tradições: a hallaca da Venezuela, os tamales do México, o pan de jamón, o vitel toné no Rio da Prata ou a pachamanca andina. Esses pratos destacam uma conexão mais direta com ingredientes e métodos específicos pré-colombianos ou coloniais espanhóis.
Outro aspecto que a distingue é a figura que traz os presentes. No Brasil, Papai Noel, uma figura cultural trazida de outros países e amplamente divulgada pelo comércio e pela mídia, é o protagonista na noite de 24 ou na manhã de 25. Porém, em grande parte da América Latina, ainda existem costumes em que os presentes estão ligados ao Niño Jesús (Menino Jesus), como ocorre na Colômbia e na Venezuela, ou são dados pelos Reis Magos no dia 6 de janeiro, uma data de grande importância em países como México, Argentina e Paraguai. Essa diferença indica uma preservação mais intensa de símbolos religiosos na dinâmica das festas em diversos países vizinhos. Em contrapartida, no Brasil, observa-se uma assimilação mais pronunciada de ícones globais e comerciais, mesmo que adaptados ao clima tropical, como a representação de um Papai Noel em roupas leves.
No entanto, é importante destacar os sólidos fundamentos que conectam o Natal brasileiro ao restante da América Latina. A noite de 24 de dezembro (Nochebuena), com sua abundante ceia que se prolonga até a madrugada, é o centro da comemoração. O presépio continua sendo um símbolo religioso fundamental, encontrado em residências e locais públicos. É uma festividade de origem católica, predominantemente familiar, adaptada ao verão ou a climas mais agradáveis, que permitem comemorações ao ar livre e fogos de artifício.
Assim, o Natal no Brasil, mais do que uma ruptura, representa uma variação regional de um modelo comum latino-americano. Suas características únicas — um foco mais acentuado na esfera familiar privada, uma influência luso-italiana, a predominância do Papai Noel e uma estética comercial tropicalizada — o diferenciam sem desvinculá-lo da matriz comum. As diferenças, que são significativas, estão menos na essência da celebração e mais no sotaque cultural, histórico e ritual pelo qual ela se manifesta, evidenciando a diversidade com que o continente vivencia uma de suas tradições mais importantes.
É fundamental reconhecer os alicerces que unem o Natal brasileiro ao restante da região. É a celebração da noite do dia 24 com a ceia, a decoração da casa, o presépio. Portanto, muito mais do que uma ruptura, existe esta variação, porque o cerne é o mesmo, o nascimento de Cristo, que foi cooptado pelo capitalismo.
IHU – Como explicar o Natal do Papai Noel, com neve e roupas quentes, em um país tropical como o Brasil e como esses símbolos apontam para uma perspectiva colonizada do ponto de vista cultural e econômico?
George Coelho – Vou fazer um parêntese antes de responder a questão, porque os temas se conectam. Quando eu era jovem, lá nos anos 1990, – minha geração era muito mais crítica do que a atual –, afirmava que o Papai Noel era um símbolo imperialista. À época, todo mundo era punk, rock e crítico de tudo. A juventude está conservadoríssima.
Eu vejo que os bolsonaristas da extrema-direita falam que a “História doutrina”. O ensino da História no Brasil não ajudou a pensar criticamente. Eu tive ensino de História nos anos 1980 e 1990 e eu ouvia falar de “Revolução de 1964”. E nós crescemos muito mais rebeldes nos anos 1990 do que os jovens que cresceram com o ensino da História progressista. Esse ensino da História, que deveria transformar a geração que está hoje entre os 20 e 30 anos em pessoas mais críticas, fez o contrário. Onde foi que o ensino da História errou? Por que o ensino da História não consegue fazer essa virada? Primeiro, porque é pouca aula – uma vez ou duas na semana. Para os jovens, é culpa da esquerda o “politicamente correto” e a falta de “liberdade de expressão”, porque a ditadura os permitia falarem tudo.
A esquerda progressista defende todas as minorias, mas é preciso medir as palavras. Outro dia usei a expressão “vamos clarear o pensamento”, no sentido de trazer luz, e fui acusado de fazer uma fala racista. E, por outro lado, na extrema-direita, está autorizado a chamar o negro de macaco, a mulher de “sapatão”. São dois extremos malucos. O jovem não está nem aí para este debate.
A representação do Papai Noel trajando roupas de inverno pesadas, rodeado por neve artificial e pinheiros europeus sob o forte sol do verão brasileiro, vai além de uma mera contradição climática. Esta cena ilustra um fenômeno intrincado de colonização cultural, que se manifesta por meio da naturalização de símbolos estrangeiros e da consequente marginalização das expressões culturais locais. A ideia capitalista de fazer muitos produtos, mas também padronizá-los, permite a adoção dessa simbologia importada.
A figura natalina que celebramos tem suas origens em um processo de transformação cultural que se iniciou com São Nicolau do Mediterrâneo, passou por diversas reinterpretações no norte da Europa e foi finalmente estabelecida pela indústria cultural dos Estados Unidos. A transformação do Papai Noel em um ícone global por meio das campanhas publicitárias da Coca-Cola no século XX ilustra como símbolos culturais são descontextualizados de suas origens para atender aos interesses econômicos transnacionais. Ao chegar ao Brasil, esse imaginário não é apresentado como uma alternativa entre outras, mas sim como o modelo predominante e "adequado" de celebração.
Essa importação cultural demonstra uma hierarquia simbólica subentendida, na qual o padrão estético europeu e norte-americano é visto como universal e superior ao Conesul, ao passo que as expressões culturais brasileiras são reduzidas à condição de "folclore" ou tradição regional de menor importância.
De uns anos para cá, o halloween tem ganhado força, mas nós tínhamos tantas coisas sinistras para colocar no lugar do halloween, como o Boitatá, a Mula Sem Cabeça, o Saci-Pererê, a Cuca, tudo foi jogado fora e deixado como folclore. O nosso folclore tinha símbolos legais que foram construídos ao longo da infância, mas que se perderam por conta da colonização cultural.
Não bastou a colonização territorial, a exploração dos recursos naturais e agora, os símbolos mais cotidianos, estão se perdendo. Não sei se é possível reverter isso.
A diferença estética entre o Natal representado como inverno e a realidade tropical vivida evidencia uma desconexão significativa entre o imaginário festivo e a experiência real da população. O calor do verão é deixado de lado em prol de uma fantasia de neve que nunca ocorrerá naturalmente no Brasil.
Do ponto de vista econômico, essa colonização simbólica não é neutra. Dentro da lógica do capitalismo globalizado, o Papai Noel vestido com roupas pesadas atua como uma eficaz estratégia de marketing. Ele incentiva a compra de produtos específicos, como enfeites, roupas e alimentos importados, que muitas vezes substituem as produções locais e artesanais. Com seu ambiente artificialmente regulado, os shoppings centers transformam-se em locais onde essa fantasia de inverno pode ser preservada, desvinculando o ato de consumo da realidade externa quente e úmida.
A continuidade desse imaginário colonial indica uma dupla subordinação: cultural, ao fortalecer a supremacia simbólica do Norte global, e econômica, ao vincular as festividades brasileiras a ciclos de consumo que favorecem, sobretudo, as cadeias produtivas globalizadas. Além de marginalizar as expressões culturais locais, essa dinâmica também desvaloriza as formas comunitárias de celebração que tradicionalmente marcam o fim de ano no Brasil.
No entanto, surgem resistências e ressignificações. Sugestões de um Papai Noel tropical, a utilização de plantas nativas na decoração, a valorização da culinária local com frutas sazonais e a recuperação de tradições como o Reisado ou festas afro-brasileiras são formas de tentar descolonizar o Natal. Essas ações desafiam a predominância do modelo importado e sugerem uma comemoração que converse com a realidade climática, histórica e cultural do Brasil.
Assim, o Natal brasileiro com neve artificial e Papai Noel de roupa pesada revela-se como um espelho que reflete não apenas contradições climáticas, mas sobretudo estruturas profundas de dominação cultural e econômica. O primeiro passo para imaginar celebrações que possam incorporar de maneira significativa as cores, sabores, ritmos e histórias do território que realmente habitamos é reconhecer esse fenômeno como uma expressão de colonialismo persistente.
IHU – Por que a visão europeizada ou norte-americana de Natal se mantém?
George Coelho – As pessoas não entendem que não é simples mudar as estruturas culturais. Não as mudamos ao nosso bel prazer. Émile Durkheim falava que as transformações não são se dão pelos interesses das pessoas.
A continuidade da estética natalina europeia e norte-americana no Brasil, durante o verão tropical, não é fruto de um acaso cultural, mas de um processo histórico e estrutural que consolidou esse imaginário como padrão predominante. Desde o período colonial, as elites locais estabeleceram suas noções de civilidade e modernidade com base em modelos europeus, trazendo não somente práticas religiosas, mas também um conjunto completo de símbolos associado ao solstício de inverno do hemisfério norte. A combinação de festividades pagãs, como a Saturnália e o culto ao Sol Invicto, com a data cristã do nascimento de Jesus resultou em uma iconografia que inclui elementos não presentes na realidade brasileira, como a neve, o pinheiro, a lareira e as roupas de inverno. Ao ser transferida para um ambiente tropical, essa matriz cultural permaneceu bastante inalterada, ao contrário de outras manifestações que passaram por um intenso processo de abrasileiramento, como a arte barroca e a culinária.
Essa dominação persiste porque os elementos culturais não são intrínsecos ao inconsciente coletivo do que as estações do ano. Essa permanência é reforçada pela igreja, mas pela poderosa engrenagem da indústria cultural global.
Na atualidade, a poderosa máquina da indústria cultural global e os interesses do capitalismo transnacional fortalecem essa permanência. O domínio do "soft power" dos Estados Unidos e Europa propaga, por meio do cinema, música e publicidade, um padrão de Natal ligado a emoções de carinho, encanto e consumo. Com a Coca-Cola liderando, empresas multinacionais estabeleceram a imagem do Papai Noel vestido de vermelho no imaginário global, tornando-o um símbolo universal – um “ícone” da humanidade. O que permite esquecermos a fome e as guerras na África, a guerra na Faixa de Gaza, no Afeganistão, Síria e no Oriente Médio como um todo.
Sob a perspectiva econômica, é mais rentável e eficaz para o mercado globalizado replicar um único pacote simbólico, produzido em larga escala e de fácil reconhecimento, do que incentivar a diversidade de estéticas locais. Os shoppings, considerados templos do consumo contemporâneo, encapsulam essa fantasia com neve artificial e ar-condicionado, criando uma bolha que isola o ritual do calor externo e o integra a um circuito comercial uniforme.
Esse fenômeno vai além do aspecto comercial; está enraizado em uma lógica profunda de colonialidade tanto do poder quanto do imaginário. A adoção de uma hierarquia cultural invisível leva à percepção do modelo europeu-norte-americano como mais autêntico, sofisticado e atraente, ao passo que as expressões locais são geralmente consideradas folclóricas. Historicamente, reproduzir uma ceia com bacalhau e castanhas, por exemplo, serviu como um indicador de status e distinção social, em contraste com os alimentos tropicais abundantes. Essa inércia simbólica é mantida por uma estrutura que não proporciona um espaço adequado de visibilidade e reconhecimento para as tradições populares brasileiras, como as Folias de Reis, os Pastoris ou as festividades comunitárias, que poderiam integrar um Natal verdadeiramente tropical.
Como resultado, preservar essa visão importada de Natal demonstra uma dependência simbólica que espelha relações de poder desequilibradas. Ela é eficaz: atende a um mercado global, cumpre uma demanda social ligada ao ideal de "Primeiro Mundo" e naturaliza uma hierarquia cultural na qual o centro estabelece os padrões estéticos e emocionais. Embora surjam esforços de ressignificação, com adaptações que incorporam frutas locais, decorações com temas tropicais e um foco maior no aspecto comunitário e religioso local, essas iniciativas ainda não possuem a força econômica nem a abrangência da máquina midiática global. Assim, o Natal no Brasil continua sendo um espelho duplo: de um lado, reflete o impacto poderoso da globalização cultural; do outro, evidencia os vestígios de uma mentalidade colonizada que ainda reluta em aceitar completamente a ideia de uma comemoração que seja universal em seu espírito, mas profundamente brasileira em sua expressão.
IHU – Qual o papel da História para o processo de descolonização?
George Coelho – A História começou como uma ciência de dominação – os historiadores não gostam de lembrar dessa origem –, mas ela começou como elemento para reforçar a dominação dos grandes homens, de poder e de construção de identidade. Hoje, há saídas porque começamos a falar da história cultural, dos marginalizados, dos excluídos e daqueles que estão “fora” da história – mulheres, negros, crianças, gays, indígenas, deficientes etc.
A História acadêmica não contribui porque ninguém lê o que escrevemos. Isso ocorre porque há um processo de formação de mestres e doutores tão acelerado que mal dá tempo de um trabalho se constituir em profundidade. Segundo, os temas são legais, mas ler aquilo é muito chato. Quais são os caminhos para a História? A História pública no Brasil começa a ter um pouco de espaço.
O processo de descolonização é estruturado pela História, que atua como um instrumento de crítica, base para a identidade e ferramenta para a mobilização política. Sua principal tarefa é desnaturalizar a dominação colonial, apresentando-a como uma construção histórica e política, em vez de um destino inevitável ou uma missão civilizatória. Ao desmistificar a ideia de superioridade europeia, a historiografia revela que as sociedades colonizadas já possuíam estruturas políticas, sistemas de conhecimento e trajetórias autônomas antes da invasão estrangeira, como demonstram os estudos sobre impérios africanos pré-coloniais e civilizações milenares asiáticas. Esse resgate é essencial para deslegitimar a opressão e criar uma base simbólica para as lutas de independência.
A História não só desempenha um papel crucial na reconstrução de identidades nacionais, mas também ajuda a desmantelar narrativas coloniais. As comunidades foram frequentemente fragmentadas e um forte sentimento de inferioridade cultural foi imposto pela colonização. Ao resgatar tradições, idiomas e episódios de resistência que foram silenciados, a disciplina reforça o senso de pertencimento e estabelece os vínculos de coesão necessários para unir diferentes grupos em um projeto coletivo de autodeterminação. Líderes como Gandhi, Nkrumah e Mandela souberam usar estrategicamente esse passado reavivado, ligando a memória da resistência às lutas atuais. Isso não só mobilizava as pessoas, mas também dava à causa da independência uma legitimidade moral e política diante do mundo.
No entanto, a função da História não se limita apenas à conquista formal da independência. Ela também é fundamental para a "descolonização das mentes", um processo constante de questionamento das heranças coloniais que foram internalizadas. Isso requer uma revisão abrangente dos currículos e dos métodos de produção de conhecimento, lutando contra o eurocentrismo que ainda persiste na educação e na academia. A escrita de uma história decolonial procura permitir que os indivíduos silenciados — indígenas, camponeses, mulheres, populações diaspóricas — se expressem, reconhecendo-os como agentes ativos em vez de simples objetos da narrativa de outrem. Ao destacar as conexões entre o passado colonial e as desigualdades estruturais atuais, como o racismo e a dependência econômica, a História oferece uma consciência crítica fundamental para entender que a descolonização é um processo ainda não concluído.
Desse modo, a História funciona como um campo de batalha político e epistêmico. Além de documentar o processo de descolonização, ela é parte integrante dele, oferecendo os argumentos para a ruptura, os símbolos para a unidade e as ferramentas para uma crítica contínua das relações de poder. Ao reescrever narrativas a partir de perspectivas marginalizadas e interagir com diferentes ecologias de saberes, a disciplina histórica permite a imaginação de futuros verdadeiramente autônomos, ajudando a desmantelar não só as estruturas políticas do colonialismo, mas também a colonialidade do saber, do poder e do ser que ainda persiste.
A formação de História ainda é a mesma das décadas de 1970 ne 1980. O Grupo de Pesquisa em Mídias Tecnologias e História – MITECHIS, que eu coordeno, está promovendo o IV Congresso Internacional de Humanidades Digitais, Cultura e Ensino –CIHDCE & V Simpósio Nacional em Mídias, Tecnologias e História – SNMTH.
Os professores de história e o historiador precisam conhecer e dominar a linguagem das redes sociais, das mídias digitais para romper com esses processos de colonização, de avanço da extrema-direita, de racismo, de homofobia. Não adianta mantermos um profissional com a mentalidade de uma formação dos anos 1970 e 1980.
Os professores de qualquer área precisam dominar e entender as linguagens digitais. A escola é um espaço de troca de conhecimento e informação, o outro é pela internet, a cultura digital. Podemos dialogar com Manuel Castells, A Sociedade da Informação, ou Henry Jenkins, A Sociedade da Convergência.
Se continuarmos ensinando história com a cabeça do século passado, não vai adiantar. É preciso tirar esse conhecimento da academia e trazer ele até o povo, até os jovens. Precisamos usar esses espaços, porque, senão, quem vai usar é o Brasil Paralelo, que já usa muito bem. Eles dominam a linguagem e a narrativa com assuntos toscos.
As pessoas criticam o Eduardo Bueno, mas ele consegue escrever em uma linguagem que as pessoas conseguem ler. Por que nós não conseguimos escrever um livro para, por exemplo, o padeiro ler? Precisamos sair da Torre de Marfim, parafraseando os Modernistas da década de 1920, que falavam que a Academia Brasileira de Letras – ABL vive em um Torre de Marfim, ou seja, escreve coisas que o povo não lê. A academia, mais do que nunca, está na Torre de Marfim, produz coisas que ninguém vai ler e que as pessoas não têm acesso.
Nós temos a revista Convergências: estudos em Humanidades Digitais –CONEHD, que colabora com o processo. Para a história romper com o processo de formação e descolonizar, é preciso uma formação inicial e continuada para docentes que dialogue com os espaços de comunicação do século XXI, a internet, Instagram, Facebook, Youtube, falar com os jovens.
O futuro do Brasil são os jovens, mas estamos perdendo eles para a extrema-direita.
IHU – De que forma o ensino da História pode contribuir para a valorização das culturas locais e dos povos originários?
George Coelho – O ensino da História desempenha um papel essencial na valorização das culturas locais e dos povos indígenas, tornando-se um espaço para resgate, reconhecimento e diálogo intercultural. Ao transcender perspectivas eurocêntricas e homogeneizadoras, a disciplina possibilita a recuperação de narrativas silenciadas, dando destaque às trajetórias, resistências e contribuições dos povos indígenas e comunidades tradicionais, que foram marginalizadas ou reduzidas a estereótipos nos currículos escolares por séculos. Essa abordagem educacional combate visões folclorizadas e anacrônicas, mostrando essas culturas em sua complexidade e atualidade, o que ajuda a desconstruir preconceitos e a promover o respeito à diversidade.
Essa valorização é alcançada por meio de um currículo descolonizado, fundamentado em marcos legais como a Lei 11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena. Ao integrar conhecimentos, idiomas, modos de vida e cosmovisões indígenas como elementos centrais, em vez de simples apêndices, a educação histórica reforça as identidades coletivas e os laços comunitários. A utilização de diferentes fontes, como depoimentos orais, expressões artísticas, mapas tradicionais e a memória das comunidades, valida formas não hegemônicas de conhecimento e possibilita que os alunos vejam a História como um processo dinâmico e próximo, que está presente no território, nas tradições e nas lutas locais.
Ademais, o ensino de História adquire um caráter emancipador ao destacar os processos de resistência, o papel desses povos na construção social e suas constantes batalhas por direitos. O caráter emancipador é um problema porque a sociedade está ficando conservadora demais. Dias atrás, em São Paulo, o pai de uma aluna chamou a polícia porque a professora estava falando da religiosidade africana na aula. As pessoas estão muito radicais, ou é contra ou está contra. Este é um pensamento autoritário, é o neofascismo. Não existe mais diálogo.
Ao analisar criticamente as violências históricas e as desigualdades estruturais, os alunos cultivam uma consciência cidadã dedicada à promoção da diversidade e à proteção dos direitos humanos. A sala de aula se torna um espaço de intercâmbio e reconhecimento recíproco por meio de práticas pedagógicas que incluem o protagonismo indígena, projetos interdisciplinares e diálogos com lideranças. Assim, o ensino de história não só esclarece o passado, mas também desempenha um papel ativo na criação de uma educação democrática e inclusiva, fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade justa e plural. Mas, da forma como ele está, não funciona mais.
Se formos à escola pública ou privada, todos são conservadores, nos anos 1990 não era assim. Pode parecer saudosismo, mas naquela época as pessoas tinham vergonha de dizer que eram homofóbicas, elas não falavam, tinham vergonha. Hoje a pessoa tem orgulho de dizer que é machista, homofóbica. Com isso, volto ao tema da juventude: a minha geração era transviada e essa está perdida.
O pensamento progressista foi associado à esquerda e ela não é progressista. Porque conheço várias pessoas de esquerda que são machistas, homofóbicas etc. Todo o progressista é de esquerda, mas nem todo mundo da esquerda é progressista. Por exemplo, os Sem-Terra são de esquerda pela luta pela terra, mas, em geral, o homem do campo é conservador. Essa ferida precisa ser tocada.
Se a pessoa nasce no Brasil, ela é conservadora, machista e homofóbica. O primeiro passo para romper com isso é saber que você é, o segundo é combater a todo o momento um pensamento que é inferior.
IHU – De que forma o capitalismo se apropria e ressignifica o Natal?
George Coelho – O capitalismo promove uma significativa ressignificação do Natal, convertendo-o de uma festividade com caráter religioso e comunitário em um poderoso mecanismo de consumo. Esse processo de apropriação vai além da exploração comercial dos dados; ele realiza uma autêntica engenharia cultural, alterando seus significados originais e reestruturando seus símbolos, rituais e valores de acordo com a lógica do mercado. A celebração, que antes se concentrava no nascimento de Jesus e em valores como solidariedade e introspecção, foi gradualmente transformada no ápice do calendário econômico anual. Nesse período, o consumo em massa de presentes, enfeites e experiências é retratado como a manifestação autêntica do "espírito natalino".
Uma dupla operação torna possível essa metamorfose: a mercantilização do sagrado e a secularização estratégica. Símbolos religiosos ou tradicionais têm seu significado original diluído e são reusados como ícones comerciais que podem ser universalizados. A imagem do Papai Noel, cuja representação moderna foi estabelecida e difundida globalmente pelas campanhas publicitárias da Coca-Cola nos anos 1930, ilustra essa dinâmica: de símbolo do altruísmo cristão, transformou-se no embaixador mundial do consumo. Ao mesmo tempo, elementos confessionais são suavizados para que a data seja aceitável e adaptável a diferentes contextos, inclusive em países que não têm tradição cristã. Dessa forma, estabelece-se uma estética natalina padronizada, caracterizada por neve, pinheiros e cores específicas, que é exportada até mesmo para regiões tropicais. Nesses locais, onde não há correspondência com o clima ou a cultura local, a demanda por produtos e decorações aumenta.
O núcleo da ressignificação capitalista está na conversão de sentimentos e valores em combustível para o mercado. A publicidade utiliza conceitos como amor, generosidade e união familiar, associando-os de forma sistemática ao ato de comprar. O material em questão transforma-se no indicador social do afeto, e a habilidade de consumir passa a ser uma evidência pública de desempenho e pertencimento. Essa lógica não só incentiva o endividamento, frequentemente justificado pelo 13º salário, mas também gera exclusão, criando um “Natal para quem pode pagar” que intensifica as divisões sociais sob o discurso superficial de universalidade e felicidade. A solidariedade em si é muitas vezes cooptada e convertida em estratégias de marketing, nas quais a generosidade está vinculada ao consumo, como no modelo "compre um e doe uma parte".
Dessa forma, o Natal é reconfigurado como um rito civil de consumo, em que os shoppings centers desempenham o papel de catedrais contemporâneas e a transação comercial substitui a oração como rito principal. O período atua como um mecanismo cíclico de perpetuação do sistema, impulsionando a produção em massa, o fetiche pela mercadoria e a cultura do descartável. No entanto, essa apropriação não é completa nem indiscutível. Em várias situações, surgem movimentos críticos e alternativos que tentam resistir a essa lógica, incentivando Natais solidários, comunitários ou minimalistas. Essas ações buscam recuperar o espírito de compartilhamento, diminuir o consumismo e reforçar valores de sobriedade e responsabilidade coletiva, evidenciando que a disputa pelo significado do Natal continua sendo um campo aberto de conflito cultural e político.
IHU – Diante um país fraturado, um mundo em guerras e a solidão apesar da conexão, qual sua mensagem para esse Natal?
George Coelho – Sou um pessimista nato. A mensagem é cada um pensar nos seus atos do dia a dia, é amar o outro como a si mesmo – um pensamento cristão. Mas, como se as pessoas não se amam, como elas vão ter amor suficiente para amar o próximo. É pensar a cada dia nas suas ações, ter bons pensamentos, fazer boas ações, defender quem está em situação precária. Agora, não podemos aceitar maldades, não podemos ficar em silêncio diante dos erros dos outros.
IHU – Deseja acrescentar algo?
George Coelho – Quero aproveitar o espaço para falar da Campanha Escola Solidária do nosso grupo de pesquisa. Um percentual dos valores cobrados das inscrições do evento do grupo de pesquisa é destinado à compra de materiais escolares para crianças indígenas e quilombolas do Tocantis. Convido a todos a também colaborarem para aquisição dos materiais por meio do Pix.
🚀 Campanha ESCOLA SOLIDÁRIA 2025: A Todo Vapor!
Convidamos vocês a apoiarem a campanha de 2025:
• Meta: comprar 50 Kits Escolares
• Apoie Crianças Quilombolas e Indígenas no Tocantins.
• Doe qualquer valor
• Nossa campanha se encerra dia 20 de janeiro de 2026!!!
Mais de 30 pessoas já realização a doação, se você já fez a sua, compartilhe essa ação com seus contatos!!!
Realização: Grupo de Pesquisa em Mídias Tecnologias e História (MITECHIS)
Responsável: Prof. Dr. George Seabra Coelho (contato - 62 9858-23500)
Material adquirido até o momento:
• 32 mochilas – meta é 50 mochilas
• 50 borrachas – meta alcançada
• 140 lápis de escrever – meta é 250 lápis de escrever
• 50 apontadores – meta alcançada
• 35 cx. de Lápis de cor – meta é 50 cx de Lápis de cor
• 30 tesouras – meta é 50 tesouras
• 30 cx. de Giz de cera – meta 50 cx. de Giz de cera
• 25 colas brancas – meta é 50 colas brancas
• 30 kits de réguas escolares – meta é 50 kits de réguas escolares
• 25 estojos para lápis – meta é 50 estojos para lápis
• 100 cadernos de capa dura – meta é 200 cadernos de capa dura
• 10 bolas de futebol – meta 15 bolas de futebol
• 0 bolas de vôlei – meta é 15 bolas de vôlei
Agência: 380
PicPay
Agência: 0001
Conta corrente: 89204720-8
Nome: Luiz Gustavo Martins da Silva
Pix: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.