"Sim, esse é o caminho mais seguro para entendermos a chave de compreensão da mística do cotidiano. Essa atenção essencial de que tanto falou Simone Weil, que nos convoca a perceber em cada instante, nos mais inesperáveis lugares, a presença de algo simples mas esplendoroso, que convoca a um pasmo essencial, que pode dar um significado novidadeiro para a dinâmica da existência"
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo e colaborador do IHU e do Canal Paz e Bem.
Faustino Teixeira (Foto: Ricardo Assis/UFJF/divulgação)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Tenho trabalhado com afinco e alegria nos últimos tempos o tema da mística do cotidiano. É algo simplesmente esplendoroso estar presente no tempo e com o olhar atento para cada detalhe do cotidiano. Aprendi muito com Thomas Merton na sua experiência de eremita.
Thomas Merton dizia em seu diário que a sua experiência de eremita significou um verdadeiro “retorno ao mundo”. Para ele, ter conseguido a licença para estar fora da abadia foi uma “grande bênção”. Como expressou muito bem, o espaço digno é o do “mundo criado e redimido por Deus”.
Foi nesse período que ele escreveu um de seus mais belos livros: Reflexões de um espectador culpado. Merton sublinhou na ocasião que sua opção pela solidão no eremitério não era uma fuga do mundo, mas uma experiência de “busca penosa” para encontrar “a verdadeira dimensão escatológica” de seu chamado.
Levou consigo para a experiência os livros de Rilke, que para ele era um autor que falava “de sua própria vida”, em particular as Elegias de Duíno e os Quatro quartetos. Eram livros que tocavam o seu ser, destino, cristianismo e vocação. Ou seja, a sua vocação específica no mundo.
Sua experiência no eremitério era, na verdade, a busca de uma “solidão sonora”, cheia de mundo e de vida. A seu ver, a solidão que não significasse total abertura da liberdade e do amor não seria nada, pois, como disse, “a verdadeira solidão abarca tudo”.
A solidão autêntica, dizia Merton, “arranca todas as máscaras e todos os disfarces”. É um passo essencial para o despojamento radical. Dizia que ali naquele espaço garantido de Deus não precisava de nenhuma concentração, mas simplesmente “estar presente”, como um peixe na água.
Esse “trabalho de cela”, na solidão sonora, era o passo essencial para que ele pudesse sentir os “sons” que envolvem a voz de Deus emaranhada na Natureza. Ele entendia o seu trabalho contemplativo como um exercício para que essa Voz não se dispersasse na história.
Dizia ainda que ele tinha se casado com o “silêncio da floresta”, e que era dali, daquela “quentura escura” que provinha “o segredo que só se ouve em silêncio, mas que está na raiz de todos os segredos sussurrados na cama, em todo o mundo, por todos os que estão se amando”. Ele fazia menção a tal momento como o “ponto virgem” que está no centro de todos os amores.
Retomando a ideia de uma mística do cotidiano, acho muito singular a reflexão trazida por D.T. Suzuki, no livro Zen budismo e psicanálise, de 1970, retomando um haicai de Basho (1644-1694). O Haicai dizia:
“Quando olho atentamente
vejo florir a nazuna
ao pé da sebe!”
Conforme Suzuki, é possível que tal poema tenha nascido numa das caminhadas de Basho pelas estradas do campo, quando foi tomado pela atenção a “alguma coisa quase desprezada junto à sebe”. Era uma flor, uma coisinha miúda, insignificante, que passaria despercebida a muitos, mas que tocou a sensibilidade do poeta.
E por que tocou o peregrino zen? Isso ocorreu pela atenção poética que Bashô tinha com respeito à natureza. Como apontou Suzuki, os poetas orientais “amam tanto a natureza que se identificam com ela, sentem todas as pulsações que lhe percutem as veias”. São pessoas especiais, capazes de ler em cada pétala, em cada ramo, “o mais profundo mistério da vida ou do ser”. Isso aconteceu com Bashô. Um espírito quando franqueado ao poético é capaz de ver “até numa haste de relva silvestre” algo que “transcende realmente os sentimentos humanos baixos e venais”.
É a sensibilidade que também podemos captar em trecho singular de Alberto Caeiro no Guardador de Rebanhos:
"O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...”
Sim, esse é o caminho mais seguro para entendermos a chave de compreensão da mística do cotidiano. Essa atenção essencial de que tanto falou Simone Weil, que nos convoca a perceber em cada instante, nos mais inesperáveis lugares, a presença de algo simples mas esplendoroso, que convoca a um pasmo essencial, que pode dar um significado novidadeiro para a dinâmica da existência.