Vozes de Emaús: Dimensão evangélica de religiões de matriz africana. Artigo de Frei Betto

Arte: Laurem Palma | IHU

18 Junho 2025

Jesus de Nazaré anunciou o evangelho de libertação. Colocou-se ao lado de pobres, marginalizados, doentes e excluídos. Nas religiões afro-brasileiras, a própria existência dessas tradições já é um ato de resistência — nascidas da dor da escravidão, da opressão colonial, da tentativa de apagamento cultural. Praticar o Candomblé ou a Umbanda no Brasil é, até hoje, uma forma de reafirmar a dignidade de um povo e a profundidade de sua fé.

O artigo é de Frei Betto, escritor, autor de Jesus revolucionário: contradição de classes no evangelho de Lucas (Editora Vozes), entre outros livros.

Frei Betto (Foto: Reprodução | Acervo pessoal).

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Eis o artigo.

Ao longo da história religiosa brasileira, religiões de matriz africana, como Candomblé, Umbanda e suas diversas vertentes, foram frequentemente marginalizadas, incompreendidas, perseguidas, muitas vezes vistas por óticas distorcidas e preconceituosas. No entanto, um olhar livre de estigmas revela que essas tradições espirituais carregam uma essência evangélica, no sentido mais original da palavra “evangelho”, boa nova, anúncio de vida plena, comunhão com o divino e prática do amor ao próximo.

O evangelho, nas palavras e práticas de Jesus, é centrado na relação com Deus como Pai/Mãe amoroso, na busca por justiça e valorização da vida. De modo semelhante, as religiões afro-brasileiras colocam no centro da experiência espiritual a relação com orixás, voduns ou inquices — entidades sagradas que representam forças da natureza e aspectos da própria existência humana. Essa comunhão não é distante ou hierarquizada de forma rígida, mas construída a partir da reciprocidade, do respeito, da entrega e da gratidão; em suma, uma vivência profunda de espiritualidade, que remete ao amor divino que permeia todas as coisas.

Essa conexão com o sagrado não é apenas pessoal, mas comunitária. Os rituais religiosos, as festas, os toques de tambor, as danças e as oferendas são expressões de fé coletiva, que criam laços e promovem o cuidado mútuo, valores que coincidem com a mensagem de comunhão e fraternidade encontrada no evangelho.

O amor ao próximo é um dos pilares do evangelho de Jesus. Nas religiões afro-brasileiras, o cuidado com a comunidade é igualmente essencial. Os terreiros funcionam como espaços de acolhimento, proteção e cura, tanto espiritual quanto emocional. Ali se escutam as dores do outro e se oferece remédio, não apenas físico, mas também simbólico e afetivo.

A solidariedade, a partilha e o amparo mútuo são práticas cotidianas nesses espaços. As lideranças religiosas, como mães e pais de santo, exercem função pastoral, orientando os filhos e filhas de santo e protegendo e fortalecendo suas comunidades. Essa função remete, de maneira clara, ao papel dos padres e pastores nas igrejas, com diferença de forma, mas não de essência: o compromisso com a vida, o bem-estar do outro e a construção de um mundo mais justo.

Jesus de Nazaré anunciou o evangelho de libertação. Colocou-se ao lado de pobres, marginalizados, doentes e excluídos. Nas religiões afro-brasileiras, a própria existência dessas tradições já é um ato de resistência — nascidas da dor da escravidão, da opressão colonial, da tentativa de apagamento cultural. Praticar o Candomblé ou a Umbanda no Brasil é, até hoje, uma forma de reafirmar a dignidade de um povo e a profundidade de sua fé.

Assim como Jesus enfrentou as estruturas de poder religioso e político em nome da liberdade espiritual e da justiça social, os terreiros de matriz africana continuam sendo espaços de resistência ao racismo, à intolerância religiosa e à desumanização. Eles anunciam, com seus tambores e cantos, uma boa nova enraizada na ancestralidade e na esperança: a de que todo ser humano é sagrado.

Outro ponto de convergência é a moral baseada na vida. Nas religiões afro-brasileiras há uma ética que valoriza o equilíbrio, a harmonia, o respeito ao ciclo natural das coisas, à Terra, aos ancestrais e aos seres humanos. Essa moralidade não se pauta em dogmas rígidos, mas na responsabilidade com o outro, com o planeta e com o sagrado que habita em tudo.

Essa visão coincide com a mensagem de Jesus sobre o Reino de Deus como uma realidade de paz, de justiça e de reconciliação. O Reino não é apenas uma promessa futura, mas algo que começa aqui, quando o ser humano vive com verdade, amor e consciência.

Reconhecer a essência evangélica das religiões de matriz africana é um exercício de diálogo inter-religioso, de superação do preconceito e de reconhecimento da diversidade como manifestação da graça divina. É entender que o evangelho, enquanto anúncio de vida plena, libertação e amor, não está restrito a uma única tradição religiosa, mas pode ser encontrado onde quer que a vida seja celebrada, defendida e reverenciada.

O axé, força vital que sustenta o Universo segundo as tradições afro-brasileiras, pode ser compreendido como expressão da mesma energia do Espírito Santo, que age onde há amor, justiça e fé. Assim, o evangelho vivido nos terreiros é um evangelho com axé: vibrante, encarnado, libertador.

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