03 Junho 2025
Qualquer governo que pretenda reduzir as desigualdades e promover a democracia e a justiça social deve se preocupar com a regulação do uso dos algoritmos. Como se sabe, são programas concebidos para fazer buscas em imensos bancos de dados, classificar essas informações segundo um critério previamente definido por seu autor e orientar sua destinação. Em tese, eliminariam distorções subjetivas, mas o que acontece de fato na internet é que os critérios não são conhecidos nem passíveis de sê-lo.
O artigo é de Frei Betto, escritor, autor de Tom vermelho do verde (Rocco), entre outros livros.
Cresce o número de suicídios de jovens vítimas de linchamento virtual. O ódio permeia as redes digitais, a cultura do cancelamento se alastra, e a defesa da honra torna-se impossível. As fake news provocam transtorno de estresse pós-traumático e depressão profunda. E os assassinos virtuais se escondem sob o anonimato.
Daí a importância de a escola, desde o ingresso de crianças, promover educação para o uso das redes digitais e da internet em geral. Caso contrário, crianças e jovens correm o risco de ficar vulneráveis à maior usina de ódio global já inventada pelo ser humano, e que assegura bilhões de dólares a cada mês na conta bancária dos proprietários das plataformas digitais, das big techs, e que têm por objetivo uma única conquista: money, money, money! Eles detêm o segredo para manter mais de 5 bilhões de pessoas, horas a fio, ligadas a seus celulares, conectadas às redes digitais, a ponto de sofrerem da doença da moda, a nomofobia – dependência da internet.
Faça uma pesquisa em seu entorno e verá que as pessoas guardam na memória mais ofensas que sofreram do que elogios recebidos. Portanto, quanto mais as redes destilam ódio, mais pessoas conectadas. Eis a receita do sucesso das plataformas.
A mais simples noção de psicologia nos ensina que nossa identidade decorre de nossas relações sociais, não apenas presenciais, como família e amizades, mas também das conexões virtuais. A diferença é que estas têm imensurável poder de ampliar uma acusação injusta, enquanto o acusado muitas vezes sequer tem a chance de se defender, pois é imediatamente cancelado, ou seja, apagado dos canais digitais.
Como se defender de um comentário maldoso que em menos de uma hora é multiplicado por mil? Frente a essa sinistra conjuntura vejo apenas dois antídotos: educar crianças e jovens no uso das redes digitais e do mundo virtual e o governo estabelecer uma rígida regulação para barrar a “fakeocracia” e impedir que a cultura do ódio prevaleça sobre a cultura do respeito e da solidariedade.
No Brasil, pesquisas apontam que crianças e jovens viciados em internet apresentam considerável perda de capacidade de memorização, de redigir e interpretar textos, de expressão oral e cada vez menos interesse por literatura. Sabem digitar, mas nem sempre sabem refletir.
Após carregarem pesadas pedras para erguer as pirâmides, arrastadas à tração animal, os escravos egípcios devem ter ficado agradecidos e, ao mesmo tempo, perplexos, quando um deles, na Mesopotâmia (atual Iraque) inventou a roda. Do mesmo modo, nossa geração se surpreende com a agilidade “mágica” da robótica para desempenhar tarefas com maior velocidade e precisão que a habilidade humana.
O algoritmo veio inaugurar uma era civilizatória ao nos oferecer uma nova “roda”: a inteligência artificial que, diga-se de passagem, nem é propriamente inteligência nem é artificial, pois é toda programada por seres humanos, embora tenha desempenho automático. Mas sem ela não poderíamos pesquisar os buracos negros nos longínquos espaços siderais, nem penetrar os diminutos recônditos da matéria graças à nanotecnologia.
A roda veio facilitar todo tipo de transporte, da mala de viagem, que já não temos que carregar, ao caminhão que leva pesados blocos de pedra. Mas se não existisse, não haveria tantos acidentes de trânsito. A culpa, com certeza, não é da tecnologia. É do uso que dela fazemos, e isso vale para a inteligência artificial. É programada pela inteligência humana, embora a supere em agilidade, mas não em criatividade. Pode fazer complexos cálculos matemáticos em milésimos de segundos, mas é incapaz de produzir um romance à altura de “Dom Quixote”, de Cervantes ou “Grande sertão, veredas”, de Guimarães Rosa.
Toda tecnologia encerra uma ambivalência. Como a política ou a religião. Servem para oprimir ou libertar. É o que pensadores como Lévinas e Bauman acentuam ao chamar a atenção para o modo como o ser humano trata a tecnologia, como se fosse neutra e, assim, se desinteressa sempre mais pelos valores éticos no seu modo de pensar e agir. Como o mercado, a tecnologia se tornaria uma esfera autônoma, “autorregulável”, com o poder de determinar a condição humana.
Na pauta de defesa da democracia há que entrar a regulação do uso dos algoritmos, de modo a amenizar o impacto do que a socióloga estadunidense Shoshana Zuboff chama de “capitalismo de vigilância”. Todos os dados que geramos ao utilizar o Google, por exemplo, são coletados em grandes bancos de dados e analisados por especialistas para detectar quais são as tendências em voga e as futuras potencialidades do mercado. O Google sabe, por meio do algoritmo, que o usuário A aprecia vinhos e, assim, entope o e-mail dele com publicidade desta bebida. O mesmo acontece quando o usuário B procura um novo par de sapatos. Quando capta informações sobre trânsito, de interesse público, cria um software e oferece aos governos. Software são os aplicativos que utilizamos no acesso à internet, como Word, calculadora, Spotify, TikTok etc.
O problema é que não sabemos o que é feito com esses dados. O que sabemos através do Facebook é porque alguém vazou um documento interno. As empresas não falam sobre seus modelos de negócio. Não existem dados consolidados, os termos de uso e as políticas de privacidades são muito confusas.
Qualquer governo que pretenda reduzir as desigualdades e promover a democracia e a justiça social deve se preocupar com a regulação do uso dos algoritmos. Como se sabe, são programas concebidos para fazer buscas em imensos bancos de dados, classificar essas informações segundo um critério previamente definido por seu autor e orientar sua destinação. Em tese, eliminariam distorções subjetivas, mas o que acontece de fato na internet é que os critérios não são conhecidos nem passíveis de sê-lo.
Além de tratar de capturar e manter o internauta conectado pelo maior tempo possível e motivá-lo a compartilhar, os conteúdos selecionados pelo algoritmo em função de uma infinidade de fatores, como acontece nas redes digitais, podem induzir à discriminação e desigualdade. É o que ocorre quando o algoritmo de uma empresa de seleção de candidatos a emprego exclui sistematicamente pessoas de determinado gênero ou etnia.
Esse “buraco negro” do ciberespaço precisa, urgentemente, ser mapeado, para não sugar a nossa cidadania e nos reduzir a meros consumistas.