04 Junho 2025
O desmantelamento da agência de desenvolvimento dos EUA é um golpe letal para a ajuda a milhões de pessoas.
A vida da humanidade, disse o historiador americano William H. McNeill, tem sido uma luta constante entre as pessoas e os patógenos que as perseguem, uma dinâmica que deixou cicatrizes profundas no tecido social, cultural e econômico. Doenças como sífilis, cólera, varíola e malária atormentaram milhões de pessoas durante séculos. Esse legado permanece vivo na África do Sul, o epicentro da maior epidemia de HIV do planeta, onde quase 13% da população adulta (cerca de 7,8 milhões) vive com o vírus. Hoje, a situação se agrava com a retirada de verbas da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) para centenas de organizações de ajuda humanitária e centros de pesquisa que buscam algum tipo de resposta para enfrentar este e outros desafios do mundo em desenvolvimento, que foi deixado de lado.
A reportagem é de Óscar Granados, publicada por El País, 04-06-2025.
O corte de 83% no orçamento anunciado em março pelo secretário de Estado americano, Marco Rubio, terá um impacto significativo na África. Esta região tem sido a segunda maior beneficiária do orçamento da USAID em todo o mundo, atrás apenas da Ucrânia. Lá, 40% do orçamento de 2023 foi alocado, o que totalizou mais de US$ 42,45 bilhões (cerca de € 37,26 bilhões nas taxas de câmbio atuais), de acordo com o ForeignAssistance.gov. Os cortes impactam severamente os programas de HIV na África do Sul, o que pode levar a mais de 500 mil mortes e até meio milhão de novas infecções na próxima década, de acordo com a Fundação Desmond Tutu para o HIV. Da mesma forma, dezenas de ensaios clínicos foram interrompidos e centros de saúde que atendem populações vulneráveis foram paralisados. O impacto foi tão severo que até mesmo o fornecimento de preservativos foi interrompido.
“Foi um choque enorme”, diz Patrick Arbuthnot, diretor da Unidade de Pesquisa em Terapia Gênica Antiviral do Wits. Sua equipe de biólogos moleculares estava desenvolvendo um projeto para vacinas de RNA mensageiro contra a infecção pelo HIV. O grupo incluía cientistas de oito países africanos, com um orçamento de cerca de US$ 50 milhões, abrangendo desde a pesquisa pré-clínica básica até os ensaios e a divulgação para a comunidade. “Estávamos aguardando os resultados das vacinas de primeira geração, que haviam sido usadas em coelhos, quando o financiamento da USAID foi suspenso no final de janeiro”, explica. “Arrecadamos dinheiro de uma fundação filantrópica sul-africana chamada ELMA, que nos fornecerá financiamento por seis meses, mas eles não têm os recursos para sustentar o projeto”, acrescenta.
Cerca de 10 mil contratos da USAID foram cancelados, segundo estimativas da Associação Espanhola de Captação de Recursos (AEFr). Em 2023 (o ano mais recente para o qual há dados praticamente completos disponíveis), o país norte-americano desembolsou US$ 71,9 bilhões em ajuda externa (dos quais cerca de US$ 20 bilhões são para assistência militar). "A dissolução interromperá significativamente a resposta e a vigilância de doenças infecciosas na África Subsaariana", afirmam especialistas da Think Global Health em um relatório. Somente no ano fiscal de 2023, a assistência externa dos EUA investiu US$ 10,6 bilhões no combate ao HIV e mais US$ 1,5 bilhão no enfrentamento de ameaças emergentes à saúde pública, como ebola, malária e tuberculose, principalmente naquela região.
A ajuda e o trabalho de grandes organizações estão em risco. “O financiamento do UNICEF para a resposta humanitária está em risco”, afirma José María Vera, diretor executivo da organização na Espanha. “Sem novos recursos, os cortes planejados podem significar um déficit de mais de 40% do financiamento de emergência na África Oriental e Meridional, 35% no Oriente Médio e Norte da África, 30% na África Ocidental e Central e quase 50% na América Latina e no Caribe”, acrescenta. “Estamos analisando todos os aspectos de nossas operações, incluindo o pessoal, com o objetivo de nos concentrarmos no que realmente importa para as crianças: sua sobrevivência e desenvolvimento. A situação em que nos encontramos é de uma crise global de financiamento”. Para este ano, o UNICEF prevê uma redução de pelo menos 20% dos recursos dos doadores em comparação com os níveis de 2024.
Para a Ação Contra a Fome Espanha, a situação os obrigou a reestruturar suas operações, reduzir o pessoal local e interromper projetos estratégicos em três continentes. "Trinta por cento do financiamento da Ação Contra a Fome provém de financiamento direto e indireto dos Estados Unidos", observa Manuel Sánchez-Montero, diretor-geral da ONG na Espanha. "Por isso, tivemos que realizar uma reflexão profunda sobre os ajustes", comenta. A organização, como muitas outras, está trabalhando urgentemente para encontrar financiamento alternativo para manter seus serviços básicos de saúde, nutrição e proteção para populações vulneráveis. Internacionalmente, acrescenta Arbuthnot, fundações como a Fundação Bill e Melinda Gates, por exemplo, têm sido um tanto sobrecarregadas pela grande demanda por novas ajudas. No total, quase 50 programas da Ação Contra a Fome foram afetados, com suspensões totais ou parciais de programas essenciais na África, América Latina e Ásia, o que levou a uma redução geral de 10% no número de pessoas trabalhando na área.
“Num momento em que quase 200 milhões de crianças em todo o mundo dependem de ajuda para salvar suas vidas, alguns dos países mais ricos do mundo estão virando as costas para as crianças e cortando seus orçamentos”, diz Vicente Raimundo, diretor de Programas Internacionais da Save the Children Espanha. No total, quase 100 programas foram completamente interrompidos pela organização. “Muitos outros foram parcialmente suspensos, o que impactará cerca de 10,3 milhões de pessoas”, explica Raimundo. Mulheres que vivem em campos de refugiados tiveram que dar à luz sem qualquer assistência médica. Alguns programas de vacinação foram interrompidos. “Há casos como o do Sudão, que vive uma das maiores crises humanitárias do mundo, onde mais de um milhão de pessoas serão privadas de cuidados nutricionais e médicos. Ou na República Democrática do Congo, centenas de milhares de pessoas não receberão mais tratamento para doenças como varíola ou cólera.” A situação é alarmante: 25% do orçamento global da Save the Children International para projetos de ajuda e cooperação internacional foi afetado.
Javier Ruiz Gaitán, CEO da World Vision Espanha (que trabalha com crianças, jovens, famílias e comunidades para reduzir a pobreza e a injustiça), explica que o sistema multilateral das Nações Unidas, especialmente o Programa Mundial de Alimentos, pode ser afetado como um dos principais parceiros.